quarta-feira, outubro 04, 2006



O atestado médico


José Ricardo Costa
Imagine o meu caro que é professor, que é dia de exame do 12º ano e vai ter de fazer uma vigilância. Continue a imaginar. O despertador avariou durante a noite. Ou fica preso no elevador. Ou o seu filho, já à porta do infantário, vomitou o quente, pastoso, húmido e fétido pequeno-almoço em cima da sua imaculada camisa. Teve, portanto, de faltar à vigilância. Tem falta. Ora esta coisa de um professor ficar com faltas injustificadas é complicada, por isso convém justificá-la. A questão agora é: como justificá-la?

Passemos então à parte divertida. A única justificação para o facto de ficar preso no elevador, do despertador avariar ou de não poder ir para uma sala do exame com a camisa vomitada, abandalhada e malcheirosa, é um atestado médico.

Qualquer pessoa com um pouco de bom senso percebe que quem precisa aqui do atestado médico será o despertador ou o elevador. Mas não. Só uma doença poderá justificar a sua ausência na sala do exame. Vai ao médico. E, a partir este momento, a situação deixa de ser divertida para passar a ser hilariante.

Chega-se ao médico com o ar mais saudável deste mundo. Enfim, com o sorriso de Jorge Gabriel misturado com o ar rosado do Gabriel Alves e a felicidade do padre Melícias. A partir deste momento mágico, gera-se um fenómeno que só pode ser explicado através de noções básicas da psicopatologia da vida quotidiana. Os mesmos que explicam uma hipnose colectiva em Felgueiras, o holocausto nazi ou o sucesso da TVI.

O professor sabe que não está doente. O médico sabe que ele não está doente. O presidente do executivo sabe que ele não está doente. O director regional sabe que ele não está doente. O Ministério da Educação sabe que ele não está doente. O próprio legislador, que manda a um professor que fica preso no elevador apresentar um atestado médico, também sabe que o professor não está doente. Ora, num país em que isto acontece, para além do despertador que não toca, do elevador parado e da camisa vomitada, é o próprio país que está doente.

Um país assim, onde a mentira é legislada, só pode mesmo ser um país doente. Vamos lá ver, a mentira em si não é patológica. Até pode ser racional, útil e eficaz em certas ocasiões. O que já será patológico é o desejo que temos de sermos enganados ou a capacidade para fingirmos que a mentira é verdade.

Lá nesse aspecto somos um bom exemplo do que dizia Goebbels: uma mentira várias vezes repetida transforma-se numa verdade. Já Aristóteles percebia uma coisa muito engraçada: quando vamos ao teatro, vamos com o desejo e uma predisposição para sermos enganados. Mas isso é normal.

Sabemos bem, depois de termos chorado baba e ranho a ver o "ET", que este é um boneco e que temos de poupar a baba e o ranho para outras ocasiões. O problema é que em Portugal a ficção se confunde com a realidade. Portugal é ele próprio uma produção fictícia, provavelmente mesmo desde D. Afonso Henriques, que Deus me
perdoe. A começar pela política.

Os nossos políticos são descaradamente mentirosos. Só que ninguém leva a mal porque já estamos habituados. Aliás, em Portugal é-se penalizado por falar verdade, mesmo que seja por boas razões, o que significa que em Portugal não há boas razões para falar verdade. Se eu, num ambiente formal, disser a uma pessoa que tem uma nódoa na camisa, ela irá levar a mal.

Fica ofendida se eu digo isso é para a ajudar, para que possa disfarçar a nódoa e não fazer má figura. Mas ela fica zangada comigo só porque eu vi a nódoa, sabe que eu sei que tem a nódoa e porque assumi perante ela que sei que tem a nódoa e que sei que ela sabe que eu sei.

Nós, portugueses, adoramos viver enganados, iludidos e achamos normal que assim seja. Por exemplo, lemos revistas sociais e ficamos derretidos (não falo do cérebro, mas de um plano emocional) ao vermos casais felicíssimos e com vidas de sonho. Pronto, sabemos que aquilo é tudo mentira, que muitos deles divorciam-se ao fim de três meses e que outros vivem um alcoolismo disfarçado. Mas adoramos fingir que aquilo é tudo verdade.

Somos pobres, mas vivemos como os alemães e os franceses. Somos ignorantes e culturalmente miseráveis, mas somos doutores e engenheiros. Fazemos malabarismos e contorcionismos financeiros, mas vamos passar férias a Fortaleza. Fazemos estádios caríssimos para dois ou três jogos em 15 dias, temos auto-estradas modernas e europeias, mas para ver passar, a seu lado, entulho, lixo, mato por limpar, eucaliptos, floresta queimada, barracões com chapas de zinco, casas horríveis e fábricas desactivadas.

Portugal mente compulsivamente. Mente perante si próprio e mente perante o Mundo. Claro que não é um professor que falta à vigilância de um exame por ficar preso no elevador que precisa de um atestado médico. É Portugal que precisa, antes que comece a vomitar sobre si próprio.


Nas colunas de «O Torrejano»

O autor deste escrito é um professor de Filosofia que escreve com regularidade no jornal «O Torrejano». Chegou-me às mãos por intermédio de um Amigão, o António Manuel Reis, sempre atento a coisas destas e a quem envio o primeiro dos obrigados. O semanário de Torres Novas, que também tem uma edição on line, vai nos 13 anos de publicação, o que já não é pouco. Mais, a persistência da equipa que o faz, encabeçada pelo director, o jornalista Joaquim da Silva Lopes, e a correspondente determinação, aliada a uma idade não despicienda, é bem exemplo do que é hoje a informação regional.

O texto parece-me muito interessante, a roçar as raias do notável. Por isso o publico neste blogue, como já tem acontecido em muitas outras ocasiões. Em conversa telefónica com Silva Lopes, dei-lhe conhecimento da minha intenção, ao que ele correspondeu imediatamente com a cordialidade própria da maioria dos que fazem parte da grande família da Comunicação Social. Muito obrigado.

Aproveito para aqui referir que, durante a troca de impressões com o director de «O Torrejano» o convidei para dentro do tempo de que dispõe, seja mais um correspondente do travessadoferreira.blogspot.com. Também neste particular Silva Lopes não disse que não. A espaços, talvez, retorquiu-me. Fico, assim, com a esperança de o ter na nossa equipa. Outro agradecimento. E quedo-me por aqui nos agradecimentos.

Muitas felicidades para «O Torrejano», para quem nele trabalha e para quem o dirige. Exemplos destes vão, sendo, felizmente, cada vez mais frequentes em Portugal. Continuem, pois, na senda do sucesso – e do progresso.

Antunes Ferreira



4 comentários:

Anónimo disse...

Se isto fosse um concurso de fotografia, esta ganhava o 1° prémio mais 3222 menções honrosas.

Anónimo disse...

Aqui temos um Senhor que escreve bem e principalmente tem ideias. Estou de acordo com o Senhor Raulzinho da Macoun, pois esta fotografia de Portugal é perfeita. Quando é que este país mudará? Por este andar, nunca!

Anónimo disse...

Tenho de lhe dizer ilustre Senhor que anda toda a gente muito afobada com o caso dos invertidos e quase ninguém liga a este artigo primoroso. Vou começar a ler o jornal TORREJANO que, com colaboradores destes, vai longe. Ainda bem que o Senhor o publicou. Oxalá mande mais. Todos ganharemos com isso.

Anónimo disse...

Chefe

Eu, funcionária pública, me confesso. O sistema apela à fraude, ao "esquema", ao "chico-espertismo" e ao "salve-se-quem-conseguir"!
Para mudar... só cortando amarras! Perdão Portugal, ainda não consigui fazer a diferença!
AS