quarta-feira, outubro 11, 2006





RITE RITA

O passeio e os passeios


Antunes Ferreira
Tropecei na beira do passeio e só então me dei conta que não era coxo. Há precisamente 33 anos, trinta e três, a idade que deus fez, mais uns pozinhos de semanas e escassos dias que claudicava sistematicamente e no consenso comigo próprio não tinha quaisquer dúvidas de que a mãe Natureza e, claro, os meus queridos e falecidos progenitores me tinham fabricado com uma perna mais curta do que a outra. Meide in Portugal.

De alguma forma e se estivesse mais atento, teria vai para cinco ou seis anos, compreendido a expressão de perplexidade que o senhor Reis, sapateiro de mester e de coração, afivelara na face glabra quando lhe perguntar se me faria um sapato com sola e tacão mais altos do que o outro. Deixe-se de merdas, sôr Fonseca, já não tenho idade para aturar brincadeiras de chavalos como você.

O digno artesão virara-me as costas de cifótico militante e nem mais um pio. O sacana é completamente parvo, pensei de Justino para Fonseca, isto é, de mim para mim. Mas, de imediato, a dispersão que me ladeia os lobos cerebrais entrou em vigor, sem publicação no DR. Cifose – curvatura anormalmente acentuada da coluna vertebral com convexidade posterior. Do grego kýphosis. A giba do Reis remendão era disso um atestado com assinatura reconhecida em cartório notarial privado.

Um dia houve em que decidi comprar uma bengala, uma a sério, com castão de alumínio (a prata está carota), não daquelas às riscas vermelhas e brancas com óculos escuros acoplados. Mas, como devem saber, eu, alem de introvertido por vocação, sou um tímido inconsciente e envergonhado concomitante. Toma. Por isso, não logrei avançar para o negócio. Não queria expor mais a minha atrofia, sobretudo a mental. E muito menos a uma trabalhadora balconista.

Daí que tivesse decidido continuar handicapado, ainda que a palavra me desse uma enorme e acintosa dor nas partes mais baixas do que altas. Continuei, portanto, um pé mais acima, outro mais abaixo – e fui-me habituando à ideia de que era marginal da meia-maratona, um paraolímpico quiçá mesmo um paraplégico encapuzado.

Meninas amai

Muitas vezes dei por mim a recitar uns versos que o meu idolatrado avô distribuía com o seu vozeirão tonitruante, a torto e a direito. Interiormente, está bem de ver, nem os lábios mexia, talvez a língua; ná nem esse órgão essencial para colar selos. Meninas amai um coxo; que um coxo também se ama; vede a graça que ele tem; de ir aos saltinhos prá cama. Reconfortava-me e fortalecia-me para aguentar tamanhas provações. Mesmo as de moscatel de Palmela.

Na minha rua havia a sede do Grupo Recreativo, Desportivo e Cultural do nosso bairro. Era por alturas do sem nunca e de quando em vez lá surdia o sarau da ordem. De resto, a ordem reinava no país, com a colaboração aliás prestimosa da ditosa PIDE. O Pinguinhas, especialista em tintos, brancos e assim assim, rosé não, que é sófete drinque, era o apresentador emérito das cenas do invento. Há quem diga evento, mas como não sei muito bem o que isto quer dizer, fico-me pela primeira forma.

O homem, viúvo da dona Ermelinda que falecera vai para uns tempos, engasgada com uma espinha craneana de cabeça de pargo cozida, para seis mânfios, mas que ela tentara denodadamente deitar abaixo só com o acompanhamento do amantíssimo esposo, à garrafa e à taça, declara-se a partir de então um ex-poso. Nunca tal palavra se aplicara tão perfeitamente a quem quer que fosse.

Dele se contavam estórias, qual delas mais safada do que a outra. Nos Jogos Olímpicos da asneira, o Pinguinhas ocuparia o pódio inteiro e ainda abicharia o quarto lugar, sem direito a medalha, obviamente, muito menos a ramo de flores e beijinho da Presidenta Honorária, Marquesa de Muitaflor.

Nos intervais e vens dessa meritória ocupação, o Pinguinhas não só locutava os saraus – mas era deles o organizador. Homem avisado, com um sentido organizativo mais apurado do que um curador de arquivo municipal. Aliás, contava-se que, um dia, aquando da substituição da vereação camarária, o novo dono do pelouro cultural fora visitar demoradamente o arquivo, onde o Pinguinhas, perdão, o Jerónimo Salavisa era ajudante de auxiliar de praticante do arquivador mor, o senhor Marcial.

Este último encontrava-se, adivinhem, de baixa, que já ia nuns onze meses bem medidos. Nas costas dele os subordinados insubordinados diziam que a baixa do Marcial não estava nada mal, ao que um que outro mais atiradiço acrescentava que o Marcial nem estava mal. Estava, apenas, de baixa. Jerónimo acompanhou o ilustre visitante e foi-lhe dando conta da falta de pastas de fecho metálico, marca Almor, cartonadas e cantos metálicos.

Pelo sim, pelo não

O senhor vereador, moita, carrasco. Chegados à última dependência, um salão tipo pista de dança dos Alunos do Apolo, deparou-se-lhes, ou mais precisamente lhe, ou seja ao senhor vereador. Os Himalaias de papeis amarelecidos iam do soalho encardido ao tecto aspas. O que vem a ser isto, ó Salavisa.

Explicou o funcionário cumpridor que se tratava de minutas, apontamentos, contas de nada, memorandos, tudo antigote, do tempo da pedra lascada – e sorrira. Ó Salavisa, vai-se deitar fora toda esta cagada que só ocupa espaço e não traz alegria, muito menos vantagem a ninguém. Estamos entendidos? Bem precisamos de instalações para coisas importantes e esta é ampla. Bem iluminada vai ficar um mimo.

Saiba Vocelência que assim se fará. O espaço é cada vez mais precioso e ainda agora os ditos soviéticos vermelhuscos o conspurcaram, ao lançaram para lá uma pobre cadelinha de nome Laika. Só tais safardanas seriam capazes de tal pulhice, perdoe-me a expressão, senhor vereador, mas um homem não é de pau. Adiante. Apenas uma sugestão: antes de dar cabo desta papelada toda não será melhor fotocopiá-la. Nestas coisas, homem prevenido.

Na sequência, o senhor vereador também ficou de baixa, na Baixa, ali pelo Nicola, tratando-se a Mosca e Constantino, cuja fama já vinha de longe. O Salavisa, por seu turno, baixara de posto e de funções: passara a estagiário de ajudante de auxiliar de praticante de segunda. Encarregado da manutenção da pulcritude das instalações, para o que lhe fora debitada a correspondente vassoura, o balde e afins.

Foi precisamente nessa altura que a topada passeiral me acontecera e pusera a nu o autoludíbrio em que sempre vivera. Abençoada? Maldita, maldita, maldita. Um cidadão impoluto, neste caso eu, desce da virtual convicção de que era um exemplar diminuído para cair na mais atroz e comezinha realidade de que se tratava dum vulgar de Lineu, sem direitos, regalias ou, mesmo, mordomias. Filho da puta de tropeço.

Agora, eu tinha de vender o chasso adaptado que tinha o privilégio de conduzir, o pedal do acelerador mais alto do que o do travão, o da embraiagem neutro, para não destoar. E quando entrar na repartição, até o Januário Pinguinhas-Salavisa se vai rebolar a rir. Sei lá se o chefe me chamará à secretária, púlpito imponente e impar de onde dirige as operações para me dizer que estava na rua, embusteiro de merda, mentiroso.

Quando, no fundo, eu sou tão só um pouco despassarado. Lancis há muitos, tal como chapéus e um individuo não sabe onde põe o pé a toda a hora e momento. Basta um cagajésimo de segundo e lá se vai o convencimento, lá se soltam as convicções, lá emigram os princípios de que um se pode – e deve – orgulhar.

Assim por assim, vou dar o salto. Nada, não se trata do salto do sapato em cunha para ser mais alto do que o esquerdo. Refiro-me ao exílio voluntário, ao ostracismo, ao deserto, ao eremita, às raízes de erva daninha para mastigar. De preferência com uma pitada de Savora. Se ela se aninha nos pregos, porque bulas não há-de?

De tal local desabitado e desumano, nunca alguém pensará que alberga um sujeito que durante 33 anos e picos, 33 que, relembro, é a idade que deus fez, coxeou convictamente. E que, de supetão descobriu que era um coxo desvirtuado. Aparente. Acresce que por tais bandas não há beiras de passeio. Nem passeios.

3 comentários:

Anónimo disse...

Ó Chefe

Com três penadas apenas... e a reinar com a malta... personagens com corpo, cara e tudo; lugares com cheiro; situações de ir às lágrimas (a rir ou não)...
Como?! Caramba?! Há anos que pergunto. Como?!

AS

Anónimo disse...

Deixe-me dizer-lhe Antunes Ferreira, como todo este avontade, embora não o conheça ,que este é um exemplo típico da universalidade da internet. Através dela encontrei um GRANDE escritor. Como é possível que não tenha obra publicada?
Os contos sobre a guerra em África, já os li todos. Óptimos. Este agora, porém, é um espanto. Acabei de ler uma obra quase prima, O Código de Avintes. O Antunes Ferreira deveria ter enfileirado com os sete autores. Bem o merece. Vou continuar a ser seu leitor total.
Peelo que me tem proporcionado de prazer e de aprendizgem, bem haja.

Anónimo disse...

Senhor Ferreira deixe que lhe diga que com esta gente a dar-lhe manteiga, um dia destes tem de dar corda às sapatilhas e desaparecer. Está cada vez mais presumido e de nariz arrebitado. Lá porque escreve umas coisinhas decidiu que é o melhor do mundo e arredores.
Não me lixe, senhor AF. Blogs há milhões e o seu é só mais um. Nada de gabarolices. E fique-se com esta: quem me elogia hoje, amanhã apunhála-me