quinta-feira, setembro 28, 2006
Pintado de sangue - fresco
Antunes Ferreira
Tem sangue que chega. Por toda a parte. Os filhos das putas dos tugas tinham levado para contar. Mas nós também. Um cheiro enjoativo a ovos podres envolvido em enxofre e misturado com pólvora q.b., evola-se daquele esterco espezinhado, fazendo chegar as tripas à boca e vomitar de sarjeta. O nosso comandante tinha mandado contar as baixas. Cabeça de coluna como eu sou, logo me calhara a merda da tarefa.
Causa náuseas virar um corpo destroçado e descobrir que pertenceu a um camarada do Uíge, o Sambano Manuel, pai de cinco filhos e com 24 anos completados há duas semanas. Mas, logo de seguida, é o Jacinto Catumbe, ele dizia que tinha 18 anos, mas não teve mais que 15. Ficou sem as pernas e a coisa de baixo pende, obscena, no vazio. E o Julião do Quicabo e o Calcinhas do Marçal, Luanda, nunca soube o nome do gajo, nem o primeiro quanto mais o apelido. Um quadro pintado de fresco, de sangue fesco.
Nasci no Golungo Alto, terra do camarada Presidente Agostinho Neto Chamo-me Francisco Adão, para os amigos Chico, para as miudas boas, Chiquinho amorzinho. Fiz o sétimo ano no Salvador Correia, minha mãe veio com nove rebentos para a capital e ficou no Casa Branca. É lavadeira, a minha velha, Leocádia de seu nome, o meu falecido pai sempre lhe chamava a Leoa, dele, está claro, não de qual leão sem juba e satelizado de moscas.
Servente de primeira no Hospital Maria Pia, o mais velho sonhava que eu fosse médico. Tou-lhe vendo, na bata branca, camisa de Macau fresquinha, co estetotoscopo no pescoço, deitando receita nos doente, apalpando as minina enfermeiras, mulatas de três assobio, cuequinha e sutiã malé, por baixo, só a pele nua mesmo, algumas de fazer perder a cabeça de cima num homem. E levantar a de baixo.
Até um fato de lã
Juntando todos os angolares possíveis e impossíveis eles compraram-me a passagem para Lisboa, no Moçambique, segunda classe. O meu filho num viaja nos porão, soletrara entre os dentes ralados a minha velha. Eu já tinha um enxoval como se fosse de casamento, tal era o entusiasmo de seguir para a cidade a que chamavam de Ulisses. Até um fato de Inverno, de lã cinzento-escuro, comprado na Saratoga, ali à Mutamba.
Uns dias antes da partida, o meu primo Jeremias convidou-me para ir com ele no Avis, cinema a céu aberto, ali para os lados de Alvalade. Um tio era porteiro de uma vivenda ou antes de um palácio da Diamang, que ali tinha vários. O tio Joaquim era um pobre diabo, um meia-leca, ninguém dava nada por ele. Só na Cuca é que era campeão. De Luanda, Cacuaco e demais arredores até à Mabubas.
Tio Joaquim tinha um segredo. Era dos nossos e ninguém sabia. Muito menos eu, que até ia no Puto, para estudar Medicina; donde, um maricas feito com os brancos. Tudo indiciava que era assim – mas não era. Primo Jeremias, filho dele, quem sabe se calhar só da tia Catarina, nestas coisas o soba é que a sabe toda. Sucessor dele na sanzala era o filho da irmã. O filho da mãe, como a malta dizia na brincadeira. A mulher do soba podia ter muito pai de muito filho…
O cinema era o pretexto para conversar. Antes de sentar, a baía lá no fundo com miríades de luzinhas a tremelicar, mais pareciam cus-de-lume ou pirilampos em língua de branco, barcos de pescadores que saiam noite fora para a faina, tudo lhes sussurrava como os N’goleiros do Ritmo que aquela cidade era linda, era de bem querer, minha cidade é linda, hei-de amá-la até morrer.
Médico da guerrilha
Primo Jeremias ficou de boca aberta quando eu lhe disse que queria ir na Faculdade de Medicina de Lisboa para me licenciar e voltar como médico para a guerrilha. Então tu não é um reles traidor da Pátria, pois não? Jeremias é marçano da mercearia do patrão Santos, no Sambizanga. Nem sei se tem a quarta classe, mas creio bem que não. É um patrício entroncado mas baixinho. Usa óculos de aro grosso de plástico a imitar tartaruga
Eu sabe que sou cambuta e caixa d’óculos diz ele. Você, primo Francisco, que aprendeste com os tugas no liceu, tens de saber mais do que aquilo que nós pensava, aka. Mas eu nunca imaginou que eras patriota. Tu vai viver uma grande aventura só para voltar e ajudar os combatentes. Primo Joaquim franze o cenho e endireita as lunetas que lhe escorregam na cana do nariz.
Não te preocupes, primo. Eu vou, mas daqui a sete anos estou de volta. Não volta não, primo Francisco. Você arranjas lá uma tuga loira lhi namoras lhi saltas na espinha se casa com ela e vai ter muitos filhos, uma menina mulata de carapinha amarela. Não se engane, primo Francisco, tu não enganas a mim, porque eu sei que você não vais voltar do Puto.
O bar do cinema ia fechar. A Revolta na Bounty já dera o que tinha a dar, criados varriam o chão de cimento afagado, apanhavam as piriscas, adeus dizia o Marlon Brando, farto de fragata mas cheio de mulheres bonitas. Primo Joaquim escorropichou o último Constantino e disse que ia contar no tio Joaquim. Conta, primo, conta. É bom que a malta saiba com que conta em relação a mim. Ainda agora não sei se ele percebeu. Mas foi. Contar no tio.
O mais estranho é que nem sequer embarquei. Um amigão, o Jofre, branco de Angola, veio contar-me que o inspector Albuquerque, da PIDE, dissera na Portugália que me ia catrafilar, pois eu andava metido com os apoiantes dos turras do MPLA, que por ali muitos havia. E acrescentara que quando ele (eu) estiver em São Nicolau, campo de prisioneiros no deserto, nem pelos pentelhos o (me) haviam de safar, os cabrões dos pretos.
O Jofre, tão angolano como eu, meu companheiro de carteira desde a primeira classe até ao sétimo ano do liceu, dera-me uma dica. Estivesse eu, de madrugada, em frente à Liga Nacional Angolana metido na sobra e uma carrinha Datsun azul escura me apanharia e seguiria ao seu e meu destino. O mais difícil era enganar os pides até à madrugada.
Na cama da Manela
Não foi. Nem vale a pena pormenorizar mas entre o fim da tarde e o começo da noite, a cama da Manela ajudanta de cabeleireira enchera-se de mim e ela aconchegara-me ao peito rijo, de mamilos castanhos e escuros, e eu em troca enchi-a de seiva branca, de árvore de borracha não. Minha, quente, espessa, viva. Por tudo o que de buraco tinha ela. Ninguém, mas mesmo ninguém sabia sequer que eu a conhecia e com ela pinocava. Segredo absoluto. Logo, a PIDE também não.
Datsun, Mabubas, Quitexe e por aí fora, nada a empanar a viagem, só um furinho de merda no pneu direito da frente, nem foi preciso usar a bomba, mais solavanco menos solavanco lá seguimos mancando automobilisticamente. Chegados ao destino, em plena mata, conheci os camaradas que ali tinham a base deles. O negrume de nova noite espalhava-se por entre as árvores. Deitei-me num pano de tenda estendido sobre capim seco.
Foi apenas o começo. De semanas e meses e semanas e um ano e dois e mais semanas de jogar ao jogo mortal da guerra. Habituei-me ao perigo e quando me quiseram promover a comandante disse que não, pela primeira vez na guerrilha. E foi preciso explicar que havia de ser médico para cuidar do nosso povo, tão maltratado e amesquinhado durante séculos. O pessoal parece-me que me entendeu.
E agora, por entre a sanguineira amaldiçoada, aqui estou eu, tentando verificar se algum dos nossos abatidos ainda tem réstia de vida. Os feridos, mesmo os mais graves, já seguiram de padiola a fazer de maca para a base. Tem um médico cubano lá. O camarada doutor Mariñon já salvou gajos em pior situação do que a da maioria destes.
Acabados, esfarrapados, grotescos
Os que jazem estão acabados, esfarrapados, escorridos de sangue, braços e pernas sem dono, até uma cabeça caída no chão, grotesca, com os olhos muito abertos e o teclado fechado, entre os dentes uma meia língua decepada por eles, quais lâminas afiadas ou presas de tubarão. O curandeiro de Havana, devidamente encartado, dera-me um estetoscópio que eu usava como amuleto. Não sou, nunca fui, creio que não virei a ser supersticioso, no entanto.
Sirvo-me dele para tentar saber se em alguém ainda bate o coração, entre os mortos não é fácil, mas, às vezes. Tarefa macabra, diligência fútil e desnecessária, Sem razão. Vou aproveitando para contar as baixas mortais. Porra, são 14 ou 15, talvez menos, talvez mais, pela confusão e o sangue é complicado chegar a número certo, tal é a mistura da enxurrada da morte.
Identifico quase todos, falta um ou dois, que estão irreconhecíveis. As bazucas e os morteiros dos soldados de camuflado desta vez trabalharam muito e bem, à mistura com as rajadas ziguezagueantes das Bredas montadas nos Unimogues. É verdade que eles também levaram porrada de criar bicho; mas nós, mais. Na guerra é assim. Dizia a sôtora Maria Helena, no Salvador, a propósito dos combates na mata, Deus guarde os nossos soldados, que havia um ditado muito antigo: quem vai à guerra, dá e leva.
Comandante Linguiça João chega na mortandade, ergue o sobrolho, nele um sinal de espanto, quase de incredibilidade, coça o cocuruto e anda em volta, passos leves de bailarina de pontas, parece que não quer estragar mais o capim e o folhedo. Chico – não começa por camarada, algo está mal na sua cabeça, ou será no coração? – Chico, manda apanhar essas coisas e depressa que os sacanas voltam. Por favor.
Continua-me o sobressalto com aquele por favor. Nem comandante lhe chamo. João, estás bem? Não, não estou. Estava se entre esses estivesse, esquartejado, exangue. João andou no Seminário de Luanda, conheceu pessoalmente o bispo Moisés Alves de Pinho, a que a matula dos muceques chamava Dom Moisinho Alves dos Pés, só não foi ordenado porque saíra a tempo para a luta armada. Alcunhavam-no o Jesuíta. Taciturno e impassível.
Hoje, não. Hoje, agora mesmo, corre-lhe o sangue nas veias, nas artérias, nos afluentes mais pequenos. Não há espaço nem tempo para a insensibilidade, aliás aparente. Está, mais do que chateado, comovido. Da cabeça aos pés, ou melhor, às botas. Ele não o diz, limita-se a negar que esteja bem. Assim mesmo, negativa absoluta, sem motivo para dúvidas por não ter rodeios. O comandante Linguiça João não está bem. Ponto. E o cabeça de coluna Francisco Adão também não.
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7 comentários:
Caro (Amigo) AF. Chefe!
Regressado (de novo, finalmente) ao seu melhor. Tava cum soidades.
Um abraço do JS
Caro Senhor
Não tenho o prazer de o conhecer, mas tenho o gosto de o ler. Também andei por terras de angola com a G3 na mão, como alferes miliciano. Portanto, não quero que fiquem dúvidas a ninguém, pois o senhor sabe disto, por ter ali andado.
Penso até que nos devemos ter cruzado e, quem sabe, conhecido. Mas já chega de «prefácios». Senhor Alferes miliciano Antunes Ferreira, o que o senhor é é um escritor. Por certo já consagrado como jornalista, manej a língua portuguesa de uma forma admirável.
Os termos verdadeiros, pois era assim que falávamos, palavrões em muito maior quantidade que palavras normais. Nomes de lugares e de sítios impecáveis. Vê-se que os conhece de lá ter estado ou ter passado.
Ambientes perfeitos. Quem esteve na mata, experiência má, mas empolgante, revê-se nos seus textos espantosos.
É esta a primeira vez que venho aqui. Um acaso de sorte, bendita seja ela. Só no euromilhões é que não me safo... Vou continuar a visitá-lo para me deleitar com o que tão bem escreve. Um abraço deste seu admirador que nem o conhece
O senhor saiu-me uma boa rês. Não tem vergonha nessas trombas? Tanto sofremos para aguentar as nossas Províncias Ultramarinas e vem você, seu pulha, cintar histórias de terroristas!!!!!!!!!!!!
E o sangue dos nossos militares, herdeiros de um Decepado, de um Dom Nuno Álvares Pereira, de um Gualdim Pais, de um Paiva Couceiro? Desse não fala você, seu sacana!
Como não posso partir-lhe as ventas deixo-lhe aqui no seu blog um aviso: Deus escreve direito por linhas tortas... Talvez te lixes e mais cedo do que pensas
Já fazia uns tempos que nao esgrimias a pena, digo, que nao davas umas cacetadas no teclado.
Boa
Nestas coisas de guerras há sempre quem esteja a favor e também quem esteja contra. Uns porque gostam, outros porque não gostam como em tudo nesta vida.
Eu que nem gosto de guerras, tiros, sangue, mortos e feridos e principalmente entre quem não tem culpa nenhuma disso, ou sejam os civis, acho apenas que este artigo, como outros deste senhor está muito bem escrito. Mesmo com o sangue e tudo.
Apenas uma critica ao tal «xpto 28 anos nacionalista e salazarista»: não é preciso insultar ninguém, mesmo de quem se discorda. A boa educação e o civismo dizem assim. Tome juizo senhor anónimo xpto.É um conselho de quem não gosta de palavrões.
Posso meter a minha colher? Só para dizer que adoro estas histórias da guerra colonial que o Dr. Ferreira conta e escreve de forma divinal. E tenho de o dizer, sem falso pudor: elas excitam-me muito, chego a ficar molhada. Desculpe Dr. Ferreira a confissão que é verdadeira
Caríssimo Chefe
Estou com o Joliva. Correspondentes à parte, já chegava de "sombra da bananeira". Toca a escrever e a despertar sensibilidades. Tenho de confessar que fico sempre alarmada com os xptós cá do burgo. Para compensar, vem a Joaninha e, sem x nem ós, mas com todas as outras letrinhas diz de sua húmida justiça!
Da minha parte só e mais uma vez, obrigada.
AS
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