terça-feira, janeiro 24, 2006

Camilleri: a descoberta

As coisas são o que são. Se assim não fosse, era o grande bocejo. Mesmo sendo assim, a vontade de escancarar a boca com a corresponde emissão sonora e sem se colocar a mão à frente, sem nenhuma pudícia, bastas vezes é tão desvairada que se pode dizer que bocejar alivia o intumescimento. Qual? Não vem ao caso, nem acrescenta o que quer que seja a este escrito. Como ultrapassar este niilismo de pacotilha? Como conviver com a crise? Como aceitar os resultados eleitorais? Descobri a receita.Tenho andado a ler o Andrea Camilleri. Não fora a proverbial oferta do meu filho Luís Carlos, pelo meu aniversário, de «O ladrão de merendas» e creio que nunca chegaria a este fantástico italiano, agora com 81 anos, que a partir dos anos oitenta passou a dedicar-se à escrita – e de que maneira. Os seus romances policiais com o comissário Montalbano como protagonista são um primor. Tem em seu poder diversos prémios literários. Merece-os.
A Difel 82, editora da nossa praça, na sua colecção Literatura Estrangeira, é a responsável máxima por estas prodigiosas aventuras dum siciliano na Sicília, paridas por um… siciliano. Camilleri planta os seus personagens com Savo Montalbano à cabeça em Vigàta, inventadíssima localidade, a par com as estórias que elabora.No entanto, acabo agora uma obra que considero mais do que prima: é tia, é mãe, é pai, é a família toda e adjacentes. Chama-se «A Concessão do Telefone», que, desta feita é dada à estampa pela Presença. Ambas as editoras são as culpadas da presença do siciliano escriba no nosso País. Este último livro não é de enigmas, muito menos de mistério a detectivar. É um exemplar magnífico, um encadear de situações, escritos, acontecimentos, ligações suspeitas e por aí adiante.Fez-me rir a gargalhadas. Mas, por igual, obrigou-me a pensar sobre questões tramadas, com a necessária e óbvia seriedade, A ironia venenosa que enforma as suas páginas é um verdadeiro milagre literário. Um tsunami de crítica impiedosa, sem nunca ela ser, sequer, enunciada. Mas que está em todas as linhas de todos os períodos de todos os parágrafos de todos os capítulos. Li-o em duas noites – mas podia ter sido apenas uma. Não aconteceu. Ainda bem. Frui dele mais umas boas horas nocturnas.Camilleri usa como cenário sempre a Sicília – que, assim, se torna omnipresente nas suas linhas preciosas. E com isso, naturalmente, temos a Máfia. Também omnipresente. E os criminosos. E os políticos. E os jornalistas. E os intriguistas. E os outros. E Montalbano gerindo, deglutindo, salivando as personagens para que elas o alimentem e nos alimentem.Se quiserem passar umas horas, tantas quantas acharem necessárias, façam o obséquio de ler este «jovem autor» com lugar cativo no Parnaso sem necessitar de passe para a terceira idade, muito menos de bilhetes pré comprados. É o caso, tal como a pescada ou o vestido que antes de o serem já o eram. Quanto mais tarde Andrea Camilleri se apear na última paragem – melhor. Mas nem precisa de chegar: já lá está.
Antunes Ferreira
************************
NB – Para contactos com as editoras podem usar-se os seus mails:

Difel 82 – difel@difel.pt

Presença – info@editpresenca.pt

Sem comentários: