quinta-feira, maio 22, 2008





NA ROTA DO CALENDÁRIO

Um coração em Maio

Maria Lúcia Garcia Marques

Um coração ou o coração? O Dr. Fernando Pádua, benemérito clínico, chamou a Maio “o mês do coração”.

O que, usando o artigo definido, quer dizer algo de muito concreto: coração – órgão, aquele músculo bruto que bombeia a nossa vida que, por tal facto, parece não passar de um latejo incessante. E se/quando ele cessa, morre-se!

Numa breve viagem ao meu querido dicionário de Rafael Bluteau, datado de 1712, respiguei, do extenso artigo que lhe dedica a seguinte descrição:
CORAC, AM – A parte mais necessária, a mais calida,  a mais nobre do corpo do animal [...]. A substancia do coração he uma carne dura, densa, firme e solida, para conservar o calor natural, para ter mão na penetrante sutileza dos espíritos  para resistir às violentas palpitações e outros preternaturaes movimentos. E dá como sinónimos: centro, meio de alguma coisa; intento, pensamento; ânimo, valor; espírito, alma.

Porque, quando se diz: “aquele homem não tem coração!” e ele continua vivendo, estamos de facto a falar de “outro coração”. É aquele lugar do Ser, misto de alma e sangue, de fervor e memória, de ímpeto e sacrário, âmago e berço, a partir-se de dor ou a afogar-se de júbilo, espiando erros ou pressentindo aconteceres (“diz-me o coração que ...), sede entranhada de todo o sentir, casa do amor e do ódio, bem como de outros sentimentos que por menos clamorosos não deixam de ser igualmente arreigados. Tal a “nossa” Saudade que nas palavras do nosso Rei D. Duarte lá pelo século XV se definia: A ssuydade ... he huu sentido do coraçom que vem da senssualidade, e nom da razom, e faz sentir aas vezes os sentidos da tristeza e do nojo (in Leal Conselheiro).

Da sua polivalência nascem cachos de palavras com raiz no “coração”: coragem, cordura, cordato, cordial e cordialidade, concórdia e discórdia, acordo e desacordo, concordata, recordação e recordar, saber de cor e, vejam bem, recorde e recordista!

Mas bater forte, forte mesmo, é por amor que ele bate! Amor-procura, amor-ternura, amor-tortura ... é, na voz dos poetas que ele se solta. Nos populares:



Toma lá colchetes d´oiro
Aperta o teu coletinho
Coração que é de nós dois
Deve andar conchegadinho.
(Canta-se num fado tradicional)

Lá se vai meu coração
Partido em quatro pedaços,
Meio vivo, meio morto,
Quer acabar em teus braços!
... (Chora-se numa “modinha” do Brasil novecentista)

Porém é com Camões que, omnipresente, o Amor se expande e se busca no seu difícil entendimento. Oiçamo-lo neste final de soneto:
Mas, enquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê,

Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sem onde,
Vem não sei como e dói não sei porquê.





Ou neste soneto todo inteiro:

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente, choro e rio;
O mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
(Ag)ora espero, (ag)ora desconfio,
(Ag)ora desvario, (ag)ora acerto.

Estando em terra, chego ao céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar um´hora.

Se me pergunta alguém por que assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

“Senhora” que descreve assim, ainda noutro soneto:


Um mover de olhos, brando e piedoso,
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;
Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;
Um encolhido ousar, uma brandura
Um medo sem ter culpa, um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento (...)



Mulheres que nunca existiram assim. De tão virtuosas só virtuais. Travando-nos de razões que só o coração conhece, mas sempre lindas de morrer ... De fazer parar esse coração, atabalhoado e sôfrego, que nos leva pela vida ao sabor dos seus palpites ...

Mas quando ele pára, para onde se vai? Para onde vamos, “de alma e coração”? Pode ser uma resposta a de Frei Bento Domingues, numa das suas crónicas:
[...] onde estarão as pessoas que amamos e morreram? Não aconselho ninguém a ir ao cemitério. Creio que estão no coração de Deus, a casa definitiva de todos. Se me perguntam onde é e como é, atrevia-me a dizer que é tão grande como o amor de Deus, tão invisível e presente como Ele. Não procuro outro Céu.

Amen.

4 comentários:

Anónimo disse...

Também me chamo Lúcia. Lúcia Maria, para ser mais precisa. Gosto tanto dos seus artigos que leio todos desde que começou a sua colaboração aqui. Hoje não pude mais. Não percebia como isto se põe aqui, mas a minha neta Lúcia ensinou-me.
Um beijinho e parabéns.

Anónimo disse...

Artigo muito bonito. Como sempre muito bem escrito e muito alegre. E as citações de autores estão perfeitas. Quero mais. Sou seu leitor e seu fã.

RENATA CORDEIRO disse...

Muito bonito. Tudo.
Postei sobre um filme que não se vê só uma vez.
wwwrenatacordeiro.blogspot.com/
não há ponto depois de www
Espero por você.
Beijos,
Renata

Anónimo disse...

Minha Senhora

Em boa hora nos voltou a presentear com as suas crónicas maravilhosas. E as ilustrações, creio que do Sr. Antunes Ferreira acompanham muito bem o «Um coração em Maio».

Penso que já nenhum leitor pode passar sem a sua presença neste blog. Eu, pelo menos, não. Cumprimentos a seu esposo cuja ausência neste blog muito me tem penalisado.