quinta-feira, novembro 08, 2007




O SS e a artrite

Antunes Ferreira
S
everino Sereno ia aos arames com a graçola que os amigos (& similares) faziam com as iniciais do seu nome. Saíste-me um verdadeiro SS, ó SS. Coisa esta que o deixava podre de estragado, o que não impedia que a malta continuasse com a galhofa. Um dia, lá viria um dia, o tal, havia de os enxovalhar como eles persistiam em o fazer. Gente sem eira nem beira, nem pé de estribeira.

SS, perdão, Severino Sereno, andava já no terceiro ano do Técnico, vencera as dificuldades iniciais com brio, pundonor, trabalho, disciplina e empenhamento, a matemática não lhe era um bicho de sete cabeças, quando declarou aos pais que iria para o Seminário, pois queria ser padre. Justo Sereno, TOC, abstémio e falho em religião, passou-se.

Andou um homem a esfalfar-se a vida inteira para lhe proporcionar o curso superior, para dar nisto, comentou de olhos esbugalhados, quase apopléctico para com a cara metade, Adozinda da Purificação Sereno, trabalhadora da Função Pública, no quadro, ainda que quase no fundo da carreira administrativa. Que ganda sacana me saiu o gajo.

Deixa lá, filho, vocação é vocação, Deus chamou-o, e ele ouviu-o. Estaria guardado para outros cometimentos, e quem diz isso diz paramentos ou mesmo sacramentos. Ó mulher, se continuas por aí, ainda acabo a chamar-lhe sacrana em vez de sacana. Eu à espera de que me desse uns netos, pensava três, dois putos e uma… menina e saiu-me um gajo de saias.


Tens de ser justo, Justo. A carne é fraca… E o marido, a interrompe-la, come-se peixe, ainda que esteja pela hora da morte, num País como o nosso com mar a perder de vista e costa acolhedora tal não era possível, isto está cada vez pior, democracia lhe chamam os gajos. Antigamente é que tudo andava na linha, havia respeito, ordem e sossego, agora nem o bacalhau se pode pagar.

Fiel amigo, uma porra! Já fora. Nos dias de crise que se viviam, nem carapau de gato. Joaquinzinhos com açorda? Um luxo, Zinda, um luxo, quase ao preço da lagosta, não é que ele soubesse a cotação do crustáceo, mas lá que era caro, era. Justo, atenta homem, o nosso Severino vai ser um padre de estalo, quem sabe se bispo, upa, upa, quiçá cardeal. Há mais coisas para alem das mulheres…

Ouve, minha sonsa, sabes o que o meu falecido avô Felismino dizia ser um padre? Pois um gajo vestido de negro e com a braguilha até ao pescoço. E venham para cá com essa da castidade, chiça, isso era um castido, perdão, um castigo e nada mais. Que eu saiba, nos Seminários não capam os que para lá vão, um homem é um homem, o prior da nossa aldeia tinha oito afilhados, oito, sabe-lo bem. Cinco eram a cara chapada dele e as três cópias a papel químico da menina Rosalinda, criada de dentro. Afilhados… Oito…

Mas, a vida, com mais solavanco daqui, mais empurrão dacolá, patinanços nas subidas, destravanços nas descidas, foi seguindo e o Severino, cada vez mais sereno (com caixa baixa, para que conste e os revisores não metam o bedelho), lá foi recebendo as ordens mais diversas, canonicamente falando, está bem de ver, de menores a cada vez maiores, até chegar à prostração. Eclesiástica, obviamente.


Enquanto os dois mancebos se prostravam no chão, à espera de que o Espírito Santo os cobrisse, salvo seja, prostrado estava o Técnico Oficial de Contas, que não tinha maneira de conseguir superar a frustração dos hipotéticos netos desconectados. Dona Adozinda limpava lágrimas de comoção com um lenço de papel Renova, gabe-se a produção nacional e passe-se a publicidade.

A cena meteu copo de água nos Olivais, as famílias dos recém sacerdotizados tinham-se esmerado, só não existia bolo de noiva, por falta, óbvia, desta. Porém, a panóplia pantagruélica era um regalo. Das gambas de Moçambique, enormes, até aos leitões, divididos entre a Bairrada e Negrais, tudo de bom enchia as mesas. As meninas em idade de penduravam-se dos braços dos novos curas. Primas, diziam. O Guedes promotor de vendas sempre ia chalaceando, quanto mais prima, mais se lhe arrima. Ímpio.

Depois viera a paróquia, as beatas, as conferências de São Vicente de Paula, as catequeses, os baptizados, os casamentos, mesmo os funerais e, principalmente, os confessionários. O padre SS, digo, Severino Sereno, em passo, se não de corrida, verdadeiramente célere, viu-se prior, com novas responsabilidades e novas habilidades nos sermões e nas missas cantadas. E aí passaram a chamar-lhe de novo SS mas significando Sua Santidade. Sereno também não gostou.

Corria uma tarde outonal, e o padre Sereno ia sentado no metro, tinha o carro na oficina a fazer a revisão dos 20 mil, quando se lhe juntou no assento ao lado, acabadinho de ser desocupado por uma ucraniana boa, ou seja, com ar de quem dava esmola aos pobrezinhos e assim, um sujeito bêbedo como um cacho.

O recém-chegado abriu com mãos tremelentes o Destak, e começou, ainda que com alguma dificuldade a ler o jornal gratuito. O pároco censurou-o in mente. Uma alma perdida, uma ovelha fora do rebanho, dar-se assim ao álcool, uma tristeza, ainda por cima um tipo com excelente moldura, fato italiano, camisa azul de colarinho branco, até botões de punho. A gravata de seda estava um tanto desgravatada – mas não se pode ter tudo.

De repente, com uma voz entaramelada, o ébrio voltou-se para o sacerdote: o camarada sabe, hic, o que é artrite? Eu não sei, arrooot, mas vem aqui no periódico e o Senhor, hic, que usa batina e cabeção deve saber o que é. Penso, arrooot, que não deve ser coisa de comer..

Sereno, severo: Olhe, de beber também não é. Trata-se duma doença provocada pela vida pecaminosa e sem regras; mulheres, promiscuidades, farras, excessos alcoólicos - e outras coisas que nem digo! No nosso dia-a-dia é cada vez mais frequente. Ataca as articulações, provoca dores imensas, encrava as nossas dobradiças, enfim. Arrepie caminho, irmão, arrepie caminho. As vias da perdição são horrendas, há que remar contra a maré, combater o pecado.

O bêbedo, um tanto assarapantado, calou-se e voltou os olhos para o jornal.
Alguns minutos depois, o padre Severino achou que tinha sido muito duro com o seu companheiro de assento, disse-lhe, tentando amenizar a intervenção anterior: Pronto, não se fala mais nisso, desculpe a maneira como lhe respondi. E olhe, irmão, há quanto tempo o senhor está com artrite?



- Eu? Eu não tenho artrite! Segundo este jornal, quem tem é o Papa…


(Com a colaboração muito especial do meu cunhado Raul Palhau. Um gajo bué de fixe)


1 comentário:

Anónimo disse...

Mestre em fazer de uma pequena anedota uma historia quase plausivel ... Boa