quinta-feira, novembro 01, 2007



GARGALHAR

Ai verdinho, meu verdinho

Antunes Ferreira
O
Santos, Adalberto da Cunha, e o Silva, Júlio Pintado da, eram amigos desde que andavam de bibe no jardim de infância. Bibe azul aos códradinhos, com o nome dos putos numa tira branca por baixo do nome do estabelecimento de ensino. As miúdas usavam cor-de-rosa. Enfim, tradições, mais ou menos estúpidas. Quer-se lá ver: cor-de-rosa são as camisolas de alterne do Benfica. Ou melhor, alternativas, não vá a Carolina chatear-se.

Continuaram pela vida fora, claro, sem bibe, essa amizade de quase fraldas. Chumbaram ao mesmo tempo na Faculdade de Direito e empregaram-se os dois na Santo Vinho, Lda., ali ao Poço do Borratem. Um como contabilista, o outro como ajudante de. Já eram também compinchas dos copos. Estavam, agora, no lugar mais indicado.

Só que o engenheiro (silvicultor) Saraiva, patrão com pedrigui não era de modas. Que se enfrascassem, lá fora – mas se viessem apenas toldados para o serviço, olho da rua, com comissão de trabalhadores, ou sem. A Santo era uma casa séria, vinhos das melhores proveniências, import-export, descontos a partir das 50 caixas de 12 garrafas, também tinha de seis. Representantes em todo o Mundo, ou quase.

No tempo da outra senhora dizia-se que beber vinho era dar de comer a um milhão de Portugueses. O Santos e o Silva, ou vice-versa, eram fieis praticantes do axioma, embora não soubessem muito bem o que era isso. Militantes das bóbidas, era vê-los pela noite dentro, entrar em capelinhas seguidas qual comboio correio que pára em todas as estações e apeadeiros. Assim a modos que um TGV à portuguesa, como o cozido.

Infelizes nos amores, ambos rejeitados pelas namoradas que iam coleccionando por mor dos excessos e do mau hálito, estavam a ficar para tios. De resto, tarefa impossível, já que eram filhos únicos. Botelha que viesse a lume, marchava. Verdadeiras gargantas fundas, sem intuito pejorativo, muito menos sexual. Longe ia o tempo das tardes no Capitólio com o filme porno no ecrã.

Uma noite vinham para as respectivas casas, dois apartamentos T2, naturalmente no mesmo prédio. Quarto e quinto andares, com elevador, homessa. Caminhava o relógio para a matina, eram já umas quatro e picos. O Gaspar, um amigalhaço bacana, tinha-os convidado para umas garrafósias sem rótulo, provenientes de uvas verdadeiras, a sério, que cultivava no seu quintal na Porcalhota.

Um forró de maravilha, malta porreiraça, vinho ainda melhor. Foram-se cinco garrafas. Duas meias sandes de queijo flamengo com manteiga, ena pá, tanto pão para tão pouco vinho. Rasgavam-se os elogios ao néctar e emborcava-se de vento em popa. À saída, o Guedes, nada, o Gomes, hic, perdão, o Gaaaaspar, hic, ameaçara que tinha lá mais na cave da sua vivenda e que, hic, voltariam logo que calhasse às libações previamente enunciadas, nunca programadas.

Amparados um ao outro, trocando pés e passos, deu-lhes para cantar. Ó Berto, hic, saaaabes aquela velhinha do vinho verde, hic? O Juca entre dois arrotos afiançou que sim. Vá de unirem vozes, decibéis para que vos quero, ai verdinho, meu verdinho, hic, esquecer-te não há maneira, hic; tu pra mim és pão e hic, vinho, e cor da minha bandeira. Qu’importa o verde ser verde, hic, se me faz dançar na rua, hic, ai verdinho, meu verdinho, não há cor igual à tuuuuuuua...

O agente da autoridade acorreu ao chinfrim, e depois de os mandar calar, como eles se estivessem nas tintas para o digno cívico, deu-lhes voz de prisão, os senhores acompanham-me à esquadra, estão num estado lastimável, embriagados como o Noé depois de sair da arca. O arvorado Fidalgo justificava o nome. Todo ele era coltura e palavras bonitas.

Antes porem, as vossa identificações, rapando do canhenho para os devidos apontamentos. Como se chama? Onde mora, com código postal? Ó sor guarda, eu cá, hic, chamo-me Silva. Morada incerta. Mau, Maria, o sacrista além de bêbado dava uma de brincalhão. Já veria, não perdia pela demora.

E você? Eu chamo-me Santos e vivo no apartamento, hic, por cima do dele, hic. E o Fidalgo, ora porra, logo me haviam de sair na rifa estes dois manguelas. Vá, meninos, calem o bico e vão para casa e não chateiem. Por esta vez, passam. Sim, hic, senhor. O chui, hic, era bué de fixe.

(Com a prestimosa colaboração das Selecções do Reader’s Digest)

Sem comentários: