segunda-feira, outubro 15, 2007



SOMBRA DA GUERRA

Morteirada

Antunes Ferreira
E
stava na latrina quando caiu a primeira morteirada. O estrondo, que já se lhe tornara habitual, foi desta vez enorme. Agachado estava, agachado ficou, à espera de outros. Sucederam-se mais três. Nenhum lhe causara danos. Adão Francisco Mucondo sabia que haveria outro, uma norma de disparos do inimigo. E ele veio, aparentemente mais próximo, fazendo-o quase cair no buraco cheio de trampa.

Limpou-se, levantou-se, e puxou para cima as calças do camuflado. Se tivesse fugido, tê-lo-ia feito em trusses ou tê-las-ia primeiro vestido? Seria a dúvida um resquício de pudor? Para cavar, um sujeito até o podia fazer nu, como acontecera com o seu irmão Mateus, quase apanhado por marido cornudo, em pleno Marçal. O muceque tinha má fama, os moradores é que lhe faziam e dar às de vila Diogo era dia sim, dia sim.

Poça! Nestas alturas um homem não pensa nem se questiona. Agarrou a Kala que nunca abandonava e saltou para o meio do acampamento. Uns quantos buracões abriam as goelas ressumando nuvens de pó. Detritos espalhados por tudo o que era sítio e duas cubatas sumárias, de rama, ardendo. Uns camaradas jaziam no chão, aparentemente mortos. Teriam desaparecido todos? Os tugas lhes tinham descobrido.

De sob um ex telhado de folhas de palmeira saiu um gemido. Precipitou-se e levantou a ramaria. Era o Lucas Cangala, do Caxito, esvaindo-se em vermelho vivo. Guenta, rapaz, não desfaleça! A seu lado surgiu outro guerrilheiro, Francisco Silipa, do Huambo. Afinal, não era ele o único sobrevivente. Os dois ajoelhados sobre o ferido, que perdera uma perna e sangrava duma órbita vazia, pareciam entoar uma extrema-unção desesperada.

Levanta a cabeça dele, camarada, assim não sufoca, e deixa que ele morre. Garrote não pode, não tem que estancar é só ajudar nele a morrer. Adão sabia perfeitamente que era assim. Mas doía-lhe que o Lucas se fosse, bom companheiro, preto calcinhas, janota, roupa da Saratoga na Mutamba, nenhuma camisa de Macau, que rompe na segunda lavagem.

Alheados do que estava a acontecer? Olha, tem tempo pra tudo, tempo pra viver e tempo pra falecer. Os soldados devem vir pelo trilho, ainda que os nossos o tenham camuflado. Dá para assistir o Cangala nos últimos momentos e lhe acompanhar na terra já que na viagem é impossível. Ele abre muito o olho que lhe resta, dá dois esticões e já está. Bateu a bota.

Ouvem-se ainda longe sinais do inimigo. Haverá mais dos nossos salvos? Dão os dois uma volta por entre os destroços e aparentemente só eles escaparam, aiué. Então, vamos-lhes esperar. Destravam as espingardas, contam as granadas de mão. De repente passaram a falar em sussurro, boca de um encostada na orelha do outro. Adão, tem mina no caminho, foi o Cangalo que lhe pôs lá.

Não diz nada, camarada. Se tem, está boa, o Lucas era um especialista em armadilhas, fio esticado, castanho e verde, pra se confundir com o que está à volta. Não terá rebentado com os morteiros? Não, esta é das que precisa que lhe pisem pra rebentar. Boca calada, irmão, eles nem vai perceber o que lhes acontece. Depois, nós lhes damos cabo dos couros. Se não forem eles a limpar-nos o sebo.

Vêm porreiros, os militares de camuflado. Os sacanas dos turras devem ter entregado as almas sujas ao Criador, se é que as têm. Não escapou um, por certo, aquilo foi uma tempestade de obuses que dava cabo de um regimento inteiro, foi canja. Que sirva de lição aos outros gajos que por aí andam. Estes aprenderam que não podem atacar-nos de surpresa e fugir. Descobrimo-los e aqui vai disto. Puta que os pariu. Nem souberam do que lerparam.

Manuel Tomás, soldado, apontador de morteiro, é de uma terra de onde não é ninguém: Freixo de Espada à Cinta. Dizem os próprios transmontanos que, uma vez, um senhor doutor conversava, no Porto, com uns amigos. Bota pra cá, bota pra lá, segue-se que um deles, já não se sabe a propósito de quê, talvez de nada, afirmou que o que fora dito nem um gajo de Freixo de Espada à Cinta o diria. E acrescentara no meio da galhofa – isto porque não há ninguém dali.

E o senhor doutor: eu sou. Você é – de quê? De Freixo de Espada à Cinta. Olhares duvidosos, deixe-se de brincadeiras, isso nem parece de um homem da sua posição, até assistente universitário foi e anda a preparar o doutoramento. Não estou a mangar com nenhum dos senhores. Mostro-vos o meu Bilhete de Identidade, querem ver? E lá estava, atestado pelo Arquivo de Identificação de, natural de Freixo de Espada à Cinta. Emudeceram os contrincantes.

Manuel, o Zimbro, como é conhecido pela malta e até pelos superiores. Tipo pachola. O pai era ferreiro, daqueles de fornalha e ferraduras para calçar as bestas. O cachopo habituara-se, desde catraio, ao calor da forja e às marteladas nos sapatos metálicos das alimárias. E, claro, aos cravos, iguais aos que tinham sido empregues para pregar o Cristo na cruz. Só que estes usavam-se nos cascos.

Escolhera mester de metal, mais precisamente funileiro. Era o rei dos pingos nos fundos das panelas mais renitentes. A solda era para ele uma seiva que escorria, fundida, lhe percorria uma circulação em cano de chumbo e que manuseava a preceito. O ofício começava a rarear, os alumínios e os aços inox tomavam corpo e dimensão, o ferro de pingar ficava no canto da oficina. A latoaria, que o Tomás também dominava com fluência, ainda se safava. Mas.

Conversa com o Gomez, filho de espanhol e de alentejana, vivia em Olivenza ou Olivença, ao gosto do freguês, mas decidira vir às sortes a Elvas. Foi logo apurado e ele todo inchado: era português, falava e escrevia, tinha apelido a terminar em z – mas era do pai. Pero chaval, puede que te vas a la guerra colonial. Quédate con nosotros, que no pasa nada. Tu mama y yo mismo estamos muy preocupados contigo, por supuesto. ¡Vaya con Dios! Tu tranquilo. Pobre Sancho que nem pança tinha, apenas Gomez Peralta. Essa estranha mania que os castelhanos tinham de pôr o apelido do pai antes do que era o da mãe.

Pedro Gomez, o Fronteira, e Manuel Tomás, o Zimbro, tinham feito a recruta juntos. Quando iam começar a especialidade, chegaram os papeis, certidões, certificados, anotações que davam ao primeiro a equivalência dos estudos espanhóis aos portugueses. Passou para o CSM, o Curso de Sargentos Milicianos, e saiu furriel, ao passo que o transmontano se quedara pela soldadesca.

Quando isto acabar, ó Fronteira, que vais fazer? Eu, por mim, não quero voltar para o ofício, o funil vazou, não há pingo que o arranje. E tu? O hispano-luso sorria. Eu vou meter o chico, vou continuar na tropa. O pré não é mau, sobretudo aqui no Ultramar, o rancho deixa-se comer, abicham-se umas garrafitas de uísque e de gin. E a farda impressiona as muchachas. Saio sargento e mais uns anitos estou em Águeda para passar a oficial. Simples, como vês.

E vai caminhando, tranquilamente, ainda que não muito atento, como todos. Não é uma tropa fandanga, mas quase. E o Zimbro continua. Passarás a vida a saltar pela África, que Goa, Damão e Diu já foram. Podes safar-te ainda em Cabo Verde, tudo tranquilo, falaram-me dum tal Tarrafal, nem sei bem o que é. Sorte boa é ires parar a Timor, um paraíso. Mas a taluda do Natal é abancares em Macau, chinesas por todo o lado, jogo, casino, tudinho.


E não te queixas com as gueixas. Parvalhão. As gueixas são no Japão, Macau é encostado à China, foi uma oferta dum mandarim qualquer a quem nós safámos dos piratas que quase lhe davam cabo do canastro, depois de lhe levarem a fazenda. Pedro Gomez sabia muito. Até que as tais meninas eram japonesas. Aliás, para ele, Manuel, que diferença tinham as chinesas das japonesas. Olhos em bico, as duas. E, dissera-lhe até o Fronteira que tinham as coisas atravessadas, ao contrário das nossas.

Então, como seria dar uma cambalhota com elas? Um homem não está preparado para essas manigâncias. O malandreco sempre lhe foi impingindo que um sujeito, depois de se ter deitado com uma e de a ter lambido por baixo, até vinha com a cabeça a dizer que não, de um lado para o outro. Carago, homem! Eu cá não faço coisas dessas. O Pedro, nas calmas, olha pá, quanto a isso, só há os que fazem – e os que dizem que não fazem.

Adão e Silipa, escondidos no capim, também conversam. O plano está desenhado. Quando os militares pisarem na mina, poucos escaparão, ainda que sejam muitos. Já chegaram a acordo sobre as artes do falecido Lucas. É uma anti-pessoal, daquelas que soltam metralha toda à volta, mas está ligada a uma bomba de avião portuga, que não rebentou ao cair na lama. De duzentos e cinquenta quilos, aka!

Terá efeito devastador. Por isso, os que se safarem, atordoados, borrados de medo, aparvalhados, eles vão lhes abater a rajadas de Kala. Não tem que enganar, porque não tem nada de saber. Vingarão os seus, principalmente o do Caxito. Adão diz ao camarada que não lhe dá nenhum prazer matar soldados tugas. Ele próprio já foi, antes de desertar. Mas como não pode limpar o sebo ao Salazar… Esse sim, esse é o culpado de toda esta maka.

Alheia-se, os dedos sobre os lábios, pede silêncio ao Chico Silipa, bailundo mas porreiro, e diz-lhe que quer pensar. Camarada, sabes. Eu precisa mesmo de meter na casquimónia tudo o que nós vai fazer pra receber bem esses gajos. Não fala, não, deixa-me endrominar tudo, cada coisa no seu sítio, é como jogar ao galo com bolinhas e cruzinhas. Nós com as bolas, eles com as cruzes.


Não se trata disso. Mas, a verdade é que lhe deu de repente para recordar os dias de Luanda, o RIL, primeiro, a CCS do QG, depois. Não só. A sua meninice, primeiro no Casa Branca, da Dona Maria Rangel, depois no Marçal, onde fora na escola, mas não fizera muito, a terceira classe nem completara, fartara-se dos livros e dos cadernos de duas linhas, pr’aprender a calugrafia ou lá o que é, por mando da Dona Marmela, assim chamada pelos peitos enormes, quase nem lhe chegava o sutiã. Só de cimento armado, galhofava o Simão carpinteiro de cofragens.

Gente bonita, aquela do Casa Branca. Tinha muitas meninas lá. Davam o que era delas aos homens que pretendiam despejar os sacos cheios. Rapazes sem namorada, até com, maduros mesmo com mulher, até velhos de carapinha branca sem grandes esperanças. Contavam-se estórias de fazer abrir as goelas, de espanto. O que aquela fazia, quando demorava, o que a outra e a outra e as outras. Uma havia que se dava ao luxo de escolher parceiro de ocasião entre os candidatos ao vale dela e dos lençóis.

O Marçal era diferente, as barracas iguais mas as pessoas tinham outros ares, outras necessidades, outros desejos. Também trabalhavam lá mulheres, que, deitadas, olhavam mais nos tectos de madeira ou de folha de zinco, pouco nos fregueses, que lhes pagavam. De uma, a Mariquinhas, fã incondicional do Elias diá Kimuezo, se contava um episódio, não se sabia se era verdadeiro, ela há tanta invencionice.

Um branco, soldado do Casão Militar, fora na Mariquinhas para os devidos efeitos. Branco apessoado, camisa de manga larga, de quando em vez gravata, mais no cacimbo, mas dessa não levava. Acostumara-se a ser frequentador do muceque e das raparigas. Um dia entrara na casa da Mariquinhas (ele dissera que lhe lembrava um fado de um não sei quê) e fora no quarto com ela.

Não demorou nada a função. O homem saiu disparado, quase caiu por causa das calças em baixo, nem as chegara a despir, estava só no começo. Tropeçou no empecilho de tecido, mas se aguentou. E atrás a Mariquinhas, combinação amarela rendada enrolada na cintura, sacana de merda! Na minha cu de cagar, no meu boca de comer – nem se foras tenente! Inventado ou não, o episódio grotesco ficou registado nos anais do bairro. E nos orais, comentou o Juca vendedor de ginguba torrada, muito dado a piadista e tocador de marimbas nas horas semi vagas.

Uma tarde, na paragem do maximbombo da carreira 9 nas Ingombotas, Adão Francisco fora abordado pelo irmão Mateus, homem de fazer nada, ajudante de auxiliar de praticante, volúpia do mulherio, sobretudo do casado e herege contumaz para os cônjuges adulterados. Mano lhe venho perguntar se você achas bem que eu me case com a Mariquinhas. O Mucondo mais velho olhou nele. Repara só. Ela é puta.

Mateus soltou risada, olha, calha bem, tem muitas por aí que também são, só ela diz que é, de resto aprendeu com o protector dela, o patrão Rodrigues da Casa Inglesa que é prostiputa, lhe disse o chulo que é mais civilizado e de boas maneiras. Ou então mulher de vida fácil. Eu não entende como uma dona que está todo o dia deitada abrindo os perna pra muitos homens pode ter vida fácil.

Olha Mateus, o problema é teu, se o nosso pai Sebastião ainda vivesse, você lhe devias perguntar essa pergunta. Não a mim, que nem sou casado. Ainda, acrescentara Mateus, carregando no aí, em tom de acrescento que pretendia completar a transitoriedade do estado civil do irmão. Casamento tem que se lhe diga, prosseguiu Adão Francisco, é responsabilidade, tem de dar alambamento e criar as crianças que vão chegar.

Vê só, mano, casamento de papel, com padre e tudo no Igreja, não é coisa fácil, não é mesmo. Você tens de pagar os certidões, esses documentos todas, tens de pagar no sacristão que vai ajudar o cura, tens de pagar no ourives para comprar alianças, tens de pagar nos mulheres que vão fazer o pirão, o funje, o feijão de óleo de palma, o saca-folha, o arroz e os galinha do mato que são mais gostosas. E os cacussos. E o gindungo e o sal e o gengibre e essas coisas todas.

Para não falar já nos bebida. Vinho de capacete, aguardente, cachipembe, muita cerveja, quem sabe uns uísques, tem SBELL que é mais barato. Mateus puxa fumaça do cachimbo de cana. Essa aí não. Não? Porquê? Lhe perguntou Adão. É puro veneno. Você sabes o que quer dizer SBELL? Depois que os escoceses chegaram no Lobito, todo o Mundo sabe: Sociedade de Bebidas Espirituosas do Lobito Limitada. E o mano mais novo continuou arreganhando a cepa. Não, irmão. É Se Bebes Este Líquido Lixas-te, SBELL, você tás a entender? Riram-se os dois de tal tamanho que uns patrícios que passavam a caminho dos muceques comentaram que o que faz o álcool nos bêbado, pópilas!...

Um ruído despertou-o do devaneio. Parecia bota pisando no capim; não era. O Silipa cochichou: os tugas devem estar a entrar na zona da morte. Tapa as orelhas, camarada, que o barulho vai ser grandalhão. Mas, de rebentamento nem um pum. Vamos sair de fininho, Silipa. Eles podem dar a volta e nos apanhar descalço. Quando saltarem, saltaram. Já lhes chega. Já nos chega.

Abandonaram o ar empestado do esqueleto do acampamento, carregando três Kalas que estavam pouco avariadas e dois pares de botas que se safavam. Não enterraram ninguém. Os bichos lhes comem, camarada. Não faz mal, eles já foram, estão mortos, falecidos mesmo. Os gajos nunca vão nos apanhar. Nem pelos tomates, sibila Silipa, nem pela pele dos tomates.

Foi o pisteiro Julião quem descobriu o fio. Alertou só com a mão levantada, nem disse alto, o gesto suficiente. Gomez chegou-se à frente da malta que ia desfazendo a bicha de pirilau. E o Zimbro ao lado. Pessoal, tudo para trás. Afastar uns largos metros, esta merda parece ser potente. O furriel ainda miliciano, vai espetando devagarinho o terreno coberto de erva. Cum escafandro, é grande, deve ser bomba de avião.

O Fronteira organizou as coisas, de seguida. Recuou ele mesmo e foi dispondo os soldados em filas como se fosse um anfiteatro, uns duzentos e picos metros atrás. De preferência escudados por árvores mais robustas. Todos deitados, canhotas destravadas, culatra atrás, dedo no gatilho. Tomás, tu plantas a plataforma do morteiro e prepara as granadas que o Severino te passa. O rotineiro. Com estes filhos das putas, cuidado.

Cordão detonante? Havia. Está aqui, meu. Não é muito comprido, mas chega. Eu encarrego-me de fazer saltar esta cabronada. Olha, veio-lhe o castelhano à cabeça. Na volta, irá passar uns dias com os pais na cidade portuguesa ocupada pelos espanhóis – e de Espanha nem bom vento, nem bom casamento. Começou a desenrolar o fio, estendendo-o. Ó Zimbro, deixa-te de merdas, vai lá para trás como os outros, não me fodas.

Resmungando, o transmontano cumpre a ordem. Preferia ajudar o amigo a desactivar a armadilha, fora uma sorte o Julião ter olho de lince, de contrário teria sido uma mortandade do caralho. Há momentos assim. Num deles, o Sporting eliminou os lampiões na Luz, com um autogolo do Germano, vejam bem, logo o careca, barrando-lhes a final da Taça no Estádio Nacional. Os encarnados tinham ficado a rogar pragas aos de Alvalade, baba e ranho que chegava.

Aqui, porém, a eliminatória poderia ser outra – mas não era, quem sabe, graças ao Santo Padre Cruz, trazia uma relíquia dele na carteira ensebada, fora-lhe dada pela mãe, ele protege-te, filho, tem fé. O pai Sancho, pues que sí, si no te hace bien, tampoco te hará mal. ¡Hombre, cuídate, con santo o sin santo, coño!

Pedro Gomez vai desempenhando o seu papel com todos os cuidados. O cabrão que montou isto sabe da poda, diz de si para si. Tínhamos ido todos pró galheiro com o esticão. Concentração e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém. E por algum motivo ele foi o primeiro classificado no pelotão de minas e armadilhas. Capim esmagado, à volta, sinal que por aqui pisaram pés, logo sem perigo. O Lucas, onde quer que estivesse riu-se, escarninho, da artimanha.

Voltou, seguindo atentamente o seu próprio trilho, para junto do engenho. Detonador, fita adesiva, mãos suaves, limpou-lhes o suor para serem mais sensíveis no contacto com o metal. Aqui meto o estopim, isto vai dar tudo cert!!!... O estampido gigantesco, levou os homens a esmagarem-se contra a terra barrenta e vermelha. Ganda porra!

Quando se levantaram e a medo se aproximaram da cratera, ainda ela fervia. Um vulcão não teria feito melhor. Isto é, pior. Manuel Tomás vê na sua frente a imagem açoriana dos Capelinhos da sua infância.
Fotos no Diário de Notícias, nuvens escuríssimas, a jorrarem do mar. Mas, agora, o que tenta descortinar é o Pedro, seu amigo, seu irmão. Ficaram só as solas das botas, nem os polainitos escaparam. Uns sangues por aqui e ali, umas coisas nojentas, uns restos de gente. Puta de sorte!

No quartel comenta-se o acontecido. Tinham voltado de rastos, escorropichando os últimos cantis vazios, amaldiçoando a vida, filho da puta, paneleiro, cabrão, o gajo que montou aquilo. Zimbro, encarregado para o efeito, relatou ao capitão o ocorrido. Teria, depois, de assinar o depoimento que o Francelino, escrivão de autos ocasional, registaria. Agora, podia ir descansar.

Entrou na caserna metálica, mas saiu de seguida. Foi meter uns copos, sozinho, a boca amarga, amarga a alma. Já bem atestado, levantou-se e foi ao outro lado do jotacê. Onde dormiam os sargentos. Entrou e postou-se em frente da cama do Pedro Gomez Rodrigues, furriel miliciano, quem contaria aos velhos, lá em Olivença, o que lhe acontecera, nem corpo restara para meter no caixão. Para quê? Para manter a fé e o império? Sacanas!

O sonho da carreira esvaíra-se em fumo. Foi-se ao armário esverdeado, abriu a porta com uma chave que o Fronteira lhe tinha dado para o caso de que lhe acontecesse algo, longe fosse o agoiro. Na parte de dentro, entre umas quantas fotos coladas de mulheres nuas, mais mamas menos pelos, uma reprodução, pequena, do cartaz do Che Guevara, a boina ao lado, os olhos sonhadores mas faiscantes, o cabelo em guedelhas, a barba mal semeada. Por baixo, uma frase do gajo: Em caso de dúvida, mata!

10 comentários:

Anónimo disse...

Vais por bom caminho, vais... O Sebastião de Pevidem é que te topa, meu sacana! A verdade é como o azeite sobe sempre ao cimo da água. As tuas invencionices que trazem água no bico estão a ser desmascaradas. Vende Pátrias, traidor, Xuxialista!

Anónimo disse...

O sr. de 73 anos, sem desrespeito pela sua já provecta idade, poderia fazer um TAC para confirmnar o seu Alzheimer ou então aproveitar bem os poucos dias de veneno que lhe restam para ver o mundo real, nos dias de liberdade de expressão que correm. Já há quantos anos que só se ouve a si próprio, sr. Garcia?

Anónimo disse...

Estou de alma e coração com o Senhor Martins Garcia e só tenho 39 anos. Quero dizer que era um miudo de 6 anos quando aconteceu uma das maiores desgraças de Portugal, o dia 25 de Abril de 1974. Por isso não tenho a «provecta» idade de 73 anos, como diz essa tal «princesa», mas entendo perfeitamente o que diz aquele Senhor.
O Sr. Antunes Ferreira (que diz que tambem andou na guerra do Ultramar e tenho que dar-lhe o beneficio da duvida) bem podia dedicar-se a outras escritas, pois estas são um escarro nos sacrificios que os bons Portugueses fizeram para conservar una e indivisivel a nossa Pátria, dirigidos por aquele que foi o maior de todos nós, o Senhor Professor Doutor António de Oliveira Salazar.
Só um acto de tresloucados como foi esse «25 de Abril» podia ter dado num tal roubo ao nosso Portugal, privado pela força das suas legitimas Provincias Ultramarinas. Portanto, não só não concordo com o Sr. Antunes Ferreira, mais um vende-pátrias, como com os que o secundam e apoiam. Viva Portugal multi-racial e pluri-continental!

Anónimo disse...

Muito bem. Gostava de ter notícias sobre o eventual andamento de demarches para ser editado o livro. Acabo de ver o primeiro programa do Joaquim Furtado na RTP e cada vez mais acho importante que sejam dados à estampa estes contos.

Anónimo disse...

Deixa-os falar, Antunes Ferreira, deixa-os falar. Ou melhor, deixa-os ladrar, pois como diz o ditado, os cães ladram e a caravana passa.

Estás a escrever cada vez melhor. Força com o livro! Estou contigo!

Anónimo disse...

Para o Henrique

Conheci-o em desespero, desgostoso com a vida que se tornara cinzenta, sem programar o futuro, mas ainda numa espera passiva de ter uma pequena hipótese de prazer.
Reconheci um desenvolvimento intelectual escondido, que a tristeza tornara lento, empobrecido dos vocábulos que gostara de utilizar. Revoltado com a falta de autonomia e prazer da vida, não aceitava o que a ética me obrigava a transmitir. Que sim, havia esperança, que sim o prazer podia voltar, mas seria duro e eu fui dura. Vislumbrava-se que muito mais havia para conhecer, que o saber estava adormecido.

Alguns anos depois surge-me uma escrita que não conhecia, verdadeira, crua, sofrida, traduzindo o sofrer dos outros. Surge o vocabulário diversificado, rico, espontâneo, que uma longa vida, de experiências ricas, enriqueceu e que o sofrimento não apagou.
E ei-lo a concretizar um sonho, a tirar prazer de fazer o que quer, de contar, de nos dizer o que a memória de cada um de nós associa.

Era um Portugal cinzento, que todos ouvíamos estar a acontecer, mas não sabíamos, porque não nos deixavam saber. Colhiam-se algumas informações de boca em boca, pressentia-se que muitos estavam a ser heróis, sem para tal terem nascido, que muitos morriam. Nunca estive em contacto directo com essa experiência.

Conheci mais tarde, que os heróis, que os mortos, também tinham morto, também tinham participado numa guerra que ninguém comprara, que muitos sacrificara. Encontrei mulheres de preto que choravam, mulheres que esperavam. No Natal, via-os pela televisão - também cinzenta de então - a tentarem matar a saudade que a distância acentuava, que o risco fazia pressentir não acabar.

Vivi do outro lado, dos que não aceitavam a guerra, que não aceitavam a morte de um filho, que não aceitavam que um filho matasse e via os da minha idade preparados para estudar fora, para sair. Ouvia, “se fosses homem, hoje estarias a programar a tua saída”.
Soube depois que muitos ficaram e foram e não voltaram.

Não conheci terras de África, nem a vida da caserna ou a linguagem usada e eis que surge de forma clara, com memória mantida, o relato, pelas palavras de quem viveu e sofreu a guerra que não queria e começo a sentir e a poder viver uma nova experiência.
Transmite-nos um cheiro descrito, que nunca conheci, transmite a temperatura, a humidade da erva, o sobressalto, o calor do sangue espalhado. Enriquece-nos da experiência humana, de diferentes níveis de cultura, de diferentes níveis de saber. Dá-nos a conhecer alguns que sem querer (ou mesmo contrariados) foram transformados em heróis.

Foi assim a experiência dos homens que fizeram uma guerra da qual pouco se sabe. Por isso são bem-vindos os contos que contam o que está por saber, para que possam ficar na história. Mas, permitam-me, são particularmente bem-vindos, por neles reconhecer o restitutium ad integrum, que um dia pressenti poder ajudar a obter.

Com um grande abraço

Antunes Ferreira disse...

Vamos por partes. Antes do mais: tenho a certeza de que esta é a coisa mais linda que alguém disse ou escreveu a meu respeito. A minha Santa da Ladeira, como tenho a desfaçatez – sou um desfaçatezado, ou seja, um desavergonhado – a iconoclastia, a ousadia, a malandrice de assim a tratar (e já o disse em público, com todas as letras, mandou-me este comentário – e matou-me.

Assim mesmo, faleceu-me. Isto não é coisa que se faça a ninguém, muito menos a um doente e suspeito, como sou. Por mais psiquiatra que seja – e boa, e excelente, para mim a melhor – A Alice Nobre não podia nem devia fazer-me ruborizar, a mim que sou um envergonhado, um tímido, na verdade, um sacripanta do mais alto coturno.

Já não se pode confiar em ninguém, nem na nossa própria e querida psiquiatra, é o que é. Pronto, minha querida Alice, minha querida Amiga. Sem pedir autorização – se calhar, a paciente médica deste paciente mal comportado não ma dava por mor da sua modéstia e do seu recato… - aqui fica registado o melhor comentário a meu respeito, que algum dia me foi endereçado.

E, por força desta coisa de escrevinhar, de há muito me habituei a apreciações, umas mais ou menos boas, outras nem por isso, outras ainda más, diria mesmo péssimas. Com tudo isso, quem se habitua a que o seu nome venha para a praça pública sujeita-se. O que é muito bem feito!

Duas coisas, porem: uma; não me podem chamar – nem nunca chamaram, felizmente, - génio. Porque não o sou. Aliás, deles só ouvi falar do que vivia recluso numa lâmpada e que deu nome e notoriedade ao Senhor Aladino que descuidadamente o soltou. Claro, diz-se do Einstein, do Kant, do Da Vinci, do Maradona, do Cristiano Ronaldo, do Mourinho. Muito bem. Que o sejam e se regalem (ou regalassem) com isso. E eu ralado, como disse o Vasco Santana no Pátio das Cantigas.

Duas; nunca me vendi. Por outras palavras, nunca me deixei comprar. Adito já que, quiçá, nunca tenham chegado ao preço que a mim próprio atribuí. Um disse ao meu Amigo Fernando Teixeira dos Santos que eram trinta milhões de contos, pois ainda não tinham entrado em cena os euros. Porquê? Porque eu sou assim.

Bastantes, para não dizer muitas, foram as ocasiões em que me tentaram ou tentaram tentar. Recusei sempre, com maior ou menor veemência. Parvo? Talvez. Mas, de manhã, quando faço a barba frente ao espelho, o gajo gordo, caixa de óculos e de barbicha branca nunca me envergonhou. Nem eu a ele.

Os meus mais queridos também não se queixam disso. E calo-me, pois que elogio em boca própria é vitupério. De resto, lá pelos Direitos por onde passei, diz-se à puridade, que ninguém é bom juiz em causa própria. Pronto. Ponto.

Minha querida Lili: já não aguento mais. A minha Santa ladeirense deve ser a eminência parda de uma cabala contra mim. Os conjurados do João Pinto Ribeiro, que, Portugueses, não sabiam no que se metiam, pobre Miguel de Vasconcelos, não foram nada ao pé desta vil movimentação – que eu não mereço, juro.

Foi-se a depressão bipolar. Ficou a tripressão árctica e antárctica. Estou feliz com as duas. Com os Amigos, que são a melhor coisa que temos. E, neste caso, com a maior e melhor de todos – que me devolveu à vida normal. Melhor, à vida. Conseguiu que eu deixasse de estar parvo – para voltar a ser o que sempre fui, maluco. Obrigado. Só.

Anónimo disse...

Imaginação brilhante. Expressão excelente. Forma perfeita. OIsto em livro será um mimo. Quando o teremos nas livrarias?

Anónima Salina disse...

Depois do que disse a Dr.ª Alice...
Fiquei sem palavras.
Adorei este conto.
AS

Anónimo disse...

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