terça-feira, outubro 30, 2007




HISTÓRIAS DA PJ

Coincidências ...

José Augusto Garcia Marques
Costumo dizer que não acredito em coincidências. No entanto, a vida profissional, designadamente, o tempo passado na PJ, proporcionou-me, por vezes, a demonstração de que as “coincidências” existem. Uma noite, a minha Mulher recebeu, em nossa casa, um telefonema do padre N .... Tratava-se de um Sacerdote, antigo colega dela da Faculdade de Letras, que, tendo conhecimento de que eu trabalhava na Polícia Judiciária, lhe expôs o caso que passo a relatar em resumo.

Uma senhora, de seu nome Isabel, amiga e paroquiana do referido sacerdote, travara, há alguns meses, conhecimento com um indivíduo que se encontrava em cumprimento de pena no estabelecimento prisional de Paços de Ferreira. Na tentativa de lhe prestar algum acompanhamento espiritual, começara a corresponder-se com ele. Depois da troca de algumas cartas, e a pedido insistente do preso, chegaram ao conhecimento pessoal. O detido começou então a pedir-lhe pequenas quantias em dinheiro, para fins diversos – normalmente, segundo dizia, para gastar em saídas precárias, tendo em vista a preparação de condições para uma reintegração na sociedade, como elemento útil e sério que se propunha vir a ser.

Aproveitando algumas dessas saídas precárias, marcaram encontros e passeios, continuando a Senhora a prestar ajuda económica ao seu protegido, que não deixava de lha solicitar, com os mais variados pretextos. A relação entre ambos foi-se estreitando, tendo passado a tratar-se com maior intimidade à medida que o afecto recíproco parecia ir crescendo.



Um belo dia, já em liberdade, o referido indivíduo teria mesmo proposto casamento à Isabel, a qual, algo desconfiada da fartura, tratou de recolher elementos mais detalhados acerca do passado prisional do pretendente. Constatou, então, que se tratava de um burlão com casos semelhantes no currículo. Era um sedutor encartado, especialista em “promessas de casamento”. A minha Mulher pediu ao seu interlocutor, como normalmente fazia, as “coordenadas” do “cavalheiro” – designadamente, o nome, idade aproximada, aspecto físico ou sinais característicos, dados que o sacerdote lhe transmitiu.

Acabada a conversa telefónica, veio então para o escritório, onde eu estava a trabalhar, e contou-me o que se tinha passado. Disse-me que se tratava de um indivíduo com idade compreendida entre os trinta e cinco e os quarenta anos, com bom aspecto, chamado Valentim Gregório Moreira. Nessa altura, interrompi-a, dizendo-lhe que esse era o nome de um funcionário da PJ, mais concretamente, do Laboratório de Polícia Científica (LPC), onde era tido como uma unidade exemplar.


A minha Mulher retorquiu-me que não podia ser, uma vez que o burlão referenciado tinha estado em cumprimento de pena até há pouco tempo. E que, além disso, era portador de um sinal característico: tinha um defeito numa perna, que o fazia coxear. Ao que, cada vez mais surpreendido, lhe disse que também o Valentim Gregório Moreira do LPC coxeava, aliás, de forma notória. Como é natural, pensei na possibilidade de usurpação de identidade por parte do burlão, o qual, eventualmente, pretenderia fazer-se passar por um homem de bem, portador de uma deficiência física semelhante à sua, de mais a mais, funcionário da PJ.

No dia seguinte de manhã contei o sucedido ao meu saudoso Colega e Amigo Dr. Eduardo Baptista, que logo me disse que já tinha ouvido falar num indivíduo com cadastro, de nome Valentim Gregório Moreira, facto que, tanto quanto sabia, era já do conhecimento do “nosso” Valentim Gregório Moreira. Manifestei a minha estranheza pela circunstância de poder dar-se a coincidência de existirem duas pessoas com o mesmo nome, sendo que não se tratava de um nome comum ou frequente. Na verdade, temos de convir que, designadamente, “Valentim” e “Gregório” não são nomes muito correntes. Então, a combinação dos três nomes é muito invulgar. Acrescendo a circunstância de ambos coxearem.

Chamei o Senhor Valentim Gregório Moreira que me confirmou ter já conhecimento da existência daquele tão inconveniente “homónimo”, que, no entanto, não conhecia pessoalmente. Sabia, porém, que era um delinquente cujo modus operandi preferido consistia na burla mediante “promessas de casamento”. Mais se constatou que o nome era, efectivamente, autêntico. Tivemos oportunidade de o confirmar, ao compulsar o registo existente no ACRI, que nos deu uma panorâmica do passado do indivíduo em matéria de delinquência.

Tratava-se de uma coincidência mais, a comprovar que, no trabalho de investigação criminal, não se pode recusar a priori qualquer pista, por mais disparatada, improvável ou, até, inverosímil que possa parecer. Lembrei-me do caso “Roy Hood” e da confusão dos “James”, que já relatei neste blogue. O mais curioso é que a história teve desenvolvimentos a breve trecho.

Numa noite, encontrando-se o Eduardo Baptista de passagem pelo Piquete - o que era prática frequente -, o telefone tocou. Do outro lado da linha, uma Senhora queixava-se de ter sido burlada pelo método da “promessa de casamento”. Esclareceu que tinha um encontro marcado, no Príncipe Real, para dali a uma hora, com o indivíduo que a defraudara e pretendia que a Polícia actuasse. Algo displicentemente – o trabalho de piquete era muito intenso e árduo e podia ocorrer a participação de crimes de maior gravidade a suscitarem necessidade de intervenção imediata -, o agente de serviço pediu os elementos de identificação do suspeito.

Ouviu o nome, que repetiu em voz alta: Valentim Gregório Moreira. O Eduardo Baptista, que ouvia a conversa um tanto distraído, deu ordens imediatas para que dois funcionários do piquete se deslocassem ao sítio do encontro e o conduzissem, sob detenção, à Polícia. E logo se organizou o esquema para a acção. Com a colaboração da queixosa, o Valentim foi detido em flagrante, no exacto momento em que recebia das mãos da vítima mais uma vultosa quantia em dinheiro.

Quando, dali a algum tempo, pretendendo ostentar o ar mais inocente do mundo, bem vestido e bem falante, a coxear levemente, entrou nas instalações do Piquete, exibindo o aspecto de cidadão exemplar, vítima de um lamentável engano policial, foi confrontado pelo Eduardo Baptista com dados detalhados e precisos acerca da sua pessoa e da sua actividade criminosa passada. O homem ficou siderado. A sua postura simpática de burlão caiu por terra. Nunca pela cabeça lhe passara que a PJ soubesse tanto acerca da sua vida de delinquente.
A coincidência do nome – se alguma vez lhe pôde ser útil -, foi-lhe, naquele caso, negativa e prejudicial, levando-o de novo ao cumprimento de pena num estabelecimento prisional.

NOTA: Como é de regra, nestas histórias reais da PJ, é fictício o nome dado ao autor dos delitos. Posso, porém, afiançar que o nome autêntico – dele e do funcionário do LPC – era, pelo menos, tão invulgar como o que foi utilizado.

3 comentários:

Anónima Salina disse...

Exmo.Senhor

Estas suas histórias são de se tirar o chapéu!
Uma grande fã
AS

Anónimo disse...

Estou satisfeitíssimo: o Conselheiro Garcia Marques está de volta com as suas interessantíssimas histórias da PJ. Uma sugestão, se mo permite: embora talvez isso lhe traga algum amargo de boca, porque não também de quando foi Secretário de Estado da Justiça?
Obrigado

Anónimo disse...

Caro Senhor Conselheiro, segundo o que diz o Dr. Sacadura que me antecede. Hoje estou numa de comentar... Adoro as suas histórias. Continue, por favor, que, consigo, ganha o blog e ganhamos nós. Obrigado.