sábado, abril 28, 2007



Lágrima de preta

Encontrei uma preta
que estava a chorar
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhai-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

António Gedeão



Hoje, deu-me para isto

Antunes Ferreira
Hoje, deu-me para isto. Vão uns tempos que não me encontro com o meu Amigo e camarada (creio que ainda posso utilizar a expressão) Alberto Arons de Carvalho mas, há poucas horas, ao consultar a colecção do «Portugal Socialista», para onde escrevi antes do 25 de Abril, e de que fui Chefe de Redacção e Director-adjunto de Manuel Alegre, encontrei umas linhas que escrevi a propósito de um Homem com caixa alta.


De seu nome Rómulo de Carvalho, mas dotado de uma dupla personalidade, também era o António Gedeão. Figura insigne das nossas Letras e das nossas Ciências, que faleceu já lá vão dez anos, ele era o pai do Alberto que eu conheci ainda quase de calções, presidindo à Juventude Socialista.

A vida tem destas coisas. Falei umas três ou quatro vezes com Rómulo de Carvalho; li, reli, ouvi, gravei, saboreei António Gedeão. Tenho a sua obra literária completa e bastantes coisas da científica. Uma noite, pela década de setenta, no Largo do Rato, confessei ao Alberto Arons a minha admiração pelo poeta. O Alberto disse-me, no seu modo tranquilo de falar, que era o seu pai.

Pasmei. Já entrado nos trintas e nunca soubera dessa verdade que me era revelada. Só depois disso, anos passados, estava então no Diário de Notícias, falei essas vezes com o Dr. Rómulo de Carvalho, a quem referi a Amizade que me ligava aos seus dois filhos, o Alberto e o Manuel. Foram encontros lindos, que me ajudaram a entender o Homem com quem falava.

Essa curta e episódica convivência, levou-me a suplantar a qualidade de admirador de Gedeão, tendo-me transformado, pouco a pouco, num verdadeiro gedeodependente. Gosto muito de escrever, como talvez alguns saibam. Se bem, se mal, não me compete dizê-lo. Ninguém é bom juiz em causa própria, ensinaram-me na Faculdade de Direito.

Mais prosa, ainda que, por brincadeira, tenha ousado rabiscar umas versalhadas. Vezes poucas e a esmo. Adoro, porém, ler Poesia. Assim, também com maiúscula. Ouvir Poesia, como aconteceu recentemente quando reencontrei, durante as jornadas da FAÚMA, outro grande Amigo, o Zé Fanha.


Ouvir, igualmente, Poesia musicada e cantada. De Camões até Ary dos Santos. Mas, aqui o confesso, nada chega, para mim, ao êxtase que é a Pedra Filosofal interpretada pelo Manuel Freire. «Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso…» para mim é deleite, mas também é símbolo. Não preciso dizer porquê.

No entanto, um poema há de Gedeão, tão simples, tão singelo, tão sentido – mas, igualmente, tão profundo – que considero um texto fundamental da Língua Portuguesa. Donde, da nossa Literatura. Mais, da universal. É a Lágrima de Preta que publico em cima. Já usei adjectivos (quiçá desnecessários) e tenho medo de gastar os qualificativos merecidos desta pequena Obra Prima.

É assim. Hoje deu-me para isto. Relevem-me o intimismo. Mas, às vezes, sabe bem expressar o que normalmente não expressamos. E por aqui me fico.

2 comentários:

Anónimo disse...

Sou um fã incondicional do poeta António Gedeão. Do Camões até David Mourão Ferreira, passando pelo Pessoa, pela Florbela, pelo Cesário, pelo Régio, por tantos e tantos, o Gedeão é um dos maiores.

Não sabia, tal como o Senhor Antunes Ferreira, que o nome verdadeiro dele era Rómulo de Carvalho. Já fui ao google ler mais do que isso.

Assim, muito obrigado por esta deliciosa lágrima e pela revelação. Longa vida a este blog, que bem merece.

Anónimo disse...

A Lágrima de Preta é um verdadeiro hino do anti-racismo. Para mim, é uma das mais belas (e simples) poesias em língua portuguesa.

Musicada pelo José Niza - que é feito dele que nunca mais foi falado - resultou numa canção belíssima a que o Manuel Freire também deu voz.

Registo, emocionada, esta «exposição intimisma» do Antunes Ferreira que continua a dar a este blogue um sabor excelente. Levanto o meu polegar.