
Macau no mundo lusófono
Pa tudo genti genti
di lusofonia
ung-a abraço
di Macau
Esta mensagem, em “patois” (o crioulo local), representa o afectivo abraço de Macau – que a si próprio orgulhosamente se qualifica como “uma flôr de lótus na Lusofonia” - para toda a gente do mundo lusófono.
***
José Augusto Garcia Marques
Na verdade, como alguém escreveu, Macau representou um desafio para Portugal e para a comunidade lusófona pela possibilidade única de um processo negociado e pré-definido de transferência de poderes. De facto, nunca como em Macau foi possível uma intervenção atempada e estrategicamente enquadrada por um tratado internacional, no qual não só foi definido um processo de transição ao longo de doze anos, como também se estabeleceu o quadro de referência para o modelo político e as estratégias a desenvolver no Território, nos cinquenta anos subsequentes.
A Declaração Conjunta Luso-Chinesa, assinada em 1987, teve por paradigma uma ideia de permanência e continuidade dos sistemas económico, jurídico, e social que entraram no ano 2000 praticamente inalterados excepto no que se refere à mudança do Estado que passou a exercer a soberania sobre Macau – já não Portugal, mas sim a República Popular da China.
Macau não é um Estado, sendo antes, desde 20 de Dezembro de 1999 uma Região Administrativa Especial (RAEM) da República Popular da China, dotada de um elevado grau de autonomia, que usa (também) o português como língua oficial. A RAEM é dotada de poderes executivo, legislativo e judicial independentes, incluindo o de julgamento em última instância, ou seja, de autonomia administrativa, legislativa e judiciária, e ainda de autonomia económica e financeira, de um específico regime de protecção de direitos fundamentais e da liberdade de definição das políticas de cultura e educação e de um estatuto linguístico próprio do bilinguismo oficial.
No final do já longínquo ano de 1988, tive a oportunidade de me deslocar a Macau onde efectuei um estudo que constituiu uma contribuição para a reforma do modelo judiciário do Território, tendo os Tribunais continuado a obedecer, com algumas adaptações, ao sistema judicial português. O mesmo se pode dizer no domínio da legislação fundamental, continuando a vigorar em Macau, também com adaptações, os grandes Códigos de matriz portuguesa.
Espaço multilingue
Macau é um espaço multilingue onde coexistem o cantonês, o mandarim, o português, as diversas línguas da região e o inglês. Sendo a população de Macau em ampla maioria de etnia chinesa, tem o cantonês como língua materna, tendo a língua portuguesa sido até 1999, língua da Administração. Para a comunicação entre as comunidades portuguesa e chinesa foi indispensável a existência de falantes que soubessem as duas línguas. Neste contexto, o macaense foi elo de comunicação entre portugueses e chineses.

Como já se disse, sendo uma comunidade de Estados, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), tal como foi criada, não foi concebida para integrar Macau no conjunto dos seus membros. Creio, porém, que é do interesse recíproco da CPLP e de Macau, extensivo, obviamente, a todo o espaço da lusofonia e, segundo cremos, à República Popular da China (RPC), o incremento de relações de Macau com a CPLP ou, até, da CPLP com a RPC. Assim tem sido entendido pelas autoridades políticas de Macau, com a óbvia concordância do Governo Central da RPC, sendo disso exemplo eloquente o êxito que representaram os 1ºs Jogos da Lusofonia recentemente realizados em Macau, sob a organização da Associação de Comités Olímpicos de Língua Oficial Portuguesa (ACOLOP).
Em face do sucesso da convivência da RAEM com o sistema jurídico resultante da fase de transição, poderão alguns surpreender-se com os resultados obtidos. E poderão questionar-se sobre como foi e é possível a aplicação de modelos jurídicos plasmados em Códigos de raiz lusitana numa tão distante e tão díspar Região do Mundo, onde, não obstante as ligações históricas, não se pode falar – longe disso - em identidade de culturas.
Um País, dois Sistemas
Penso que tal sucesso radicou em parte na preparação que foi possível fazer no período de transição, à luz da Declaração Conjunta, texto que veio dar concretização à importante síntese de objectivos tão bem traduzida na máxima: “Um País, dois Sistemas”. A atestar esse esforço, pode referir-se o grande esforço, em grande parte coroado de êxito, que foi feito, nos anos finais da década de oitenta e se prolongou pelos anos seguintes, que permitiu levar à adopção de um adequado modelo para o sistema judiciário do “Território” e à elaboração de um conjunto de diplomas codificados que receberam a marca do direito português.
Mas tal sucesso deveu-se a uma outra circunstância: ao sentido pragmático desta população, falante ou não falante do português, dispondo de uma diferente cultura, mas aceitando as regras de conduta social que, no âmbito do Direito, visam disciplinar as relações jurídicas privadas e comerciais entre as pessoas e entre comunidades e ordenamentos tão diversos como os da República Popular da China, de Hong Kong e de Macau.

Independentemente dos valores, era essencial que a economia e o comércio funcionassem. Respeitaram-se as liberdades “de primeiro grau” – a propriedade privada, a liberdade de estabelecimento, de comércio, de circulação, os princípios da liberdade negocial, da autonomia da vontade e do sinalagma contratual. Numa economia sólida, respeitam-se generalizadamente os valores do trabalho, do lucro e da boa fé negocial. Honram-se os compromissos à luz do princípio pacta sunt servanda (os acordos devem ser respeitados).

Durante a minha deslocação, na visita que fiz ao magnífico Museu de Macau, eu próprio pude constatar a marca genética que, para esta Região, reside historicamente na pujança da actividade mercantil, assente na liberdade de trocas comerciais e na interacção entre as culturas oriental e ocidental, no caso representadas pela China e por Portugal.