terça-feira, outubro 16, 2007

Comoção as coisas

Braz Ferreira
O vento fresco do capim elefante (gigante) faz parecer a condução em estradas zambianas menos dificil. Os 32 graus aquecidos pelo calor reflectido pelo asfalto por vezes nos adormecem fazendo-nos esquecer as regras de trânsito. Sem prestar atenção no painel do carro, dirigia olhando as palancas à beira da estrada, que por sua vez tambem me olhavam curiosas. Tudo me levava a crer que a tarde ia acabar como tinha começado, tranquilamente nos tons vermelhos e laranja deixados pelo Sol preparado para se despedir até ao dia seguinte. E foi nesta tranquilidade que vi de imediato porque as palancas me olhavam.

Só tive tempo de ver uma especie de poste eléctrico mandando parar o carro que dirigia.
Um representante da lei, magro como uma espiga de trigo minguada pelo calor alentejano, me convidou a estacionar o veiculo. As calças eram agitadas pela corrente de ar provocada pela passagem dos automotores. Acredito que ele e a comida ha muito tempo deveriam ter cortado relações. A magreza era tanta que até me arrependi de não ir a 150 à hora. O cara tinha voado sem ler o mostrador do radar.


Mas como não o tinha feito, parei o carro e fui descendo em direcção do controlador do tráfico. Dois olhos enormes me olharam, tal como as palancas, com curiosidade. Foi neste preciso momento que me lembrei, não sei porquê, do velho ditado....tem mais olhos que barriga. O agente, colega do Bucha dos anos 50, tinha um quépi que mais parecia uma antena de televisão. Grande, enorme, gigantesco demais. Se o portador tivesse que dar meia volta o quépi ficaria no mesmo lugar. Por debaixo dele as duas orelhas tentavam vislumbrar o cenário que as rodeava. E ainda bem que elas lá se encontravam, senão o boné impediria o pressuposto a cumprir a sua missão, pois os olhos tampados pelo dito cujo não poderiam ler o painel do radar.

Ao aproximar-me, o representante da lei, com um ar sério, bateu-me uma continência. As mãos cobertas por luvas brancas mostravam uma rigidez militar. De imediato perguntei porque tinha sido parado. Deve-se ter picado pois gritou “High speed” - Excesso de velocidade... Neste troço só pode transitar a 65 e ia a 75. Pronto 10 km a mais.

Perguntei ao individuo, como se poderia resolver o problema amigavelmente. A cara de poucos amigos, quase tampada pelo quépi, (as orelhas estavam lá desempenhando a sua função) mostrava quase uma vontade de ferro de não querer entrar em negociatas.
O quase é importante neste cenário. Dando meia volta, o agente mas não o quépi, indicou-me uma viatura parada debaixo de uma mangueira. Sombrinha convidadora. No tal carro apercebi duas cabeças, mas nenhuma sentença.

Quando ia chegando mais perto pude na realidade verificar que um agente e uma agente estavam descançando dos problemas e fadigas do dia anterior. Já bem perto do veiculo, o agente abriu um olho, abriu a porta, abriu o bolso da camisa para pegar uma caneta e abriu um livro de contravenções. Era a operação portas abertas da policia zambiana. A agente feminina, ela sem abrir os olhos, continuava a sonhar em alta velocidade. Se o seu colega apontasse o detector de velocidade na sua direcção ela seria multada com certeza.

O seu colega começou a activar a esferográfica, com uns estalidos quase musicais. Fazia de conta que ia começar a preencher o livro de multas. Sem me olhar informou-me que o excesso de 10 km/hora eram só 67500 kwachas, isto é 17 dólares americanos. Observando esta encenação, digna de um Spilberg em época de ET, fui logo informando de que não precisava de papel algum. O representante honesto da lei, desta vez olhou para mim sizudo. Sem deixar o tempo de ele pensar, disse-lhe que não tinha essa quantia (nem prima diga-se de passagem).

Em uma fracção de segundo, pois era um segundo tenente, um sorriso comecou a esboçar-se nos labios inchados e rosados do policial. Não sei porquê a policial, nesse dado momento, despertou dos sonhos da cor dos seus emblemas, dourados. Antes de meter a mão no bolso pensei umas trinta vezes (sem exagerar) e me lembrei que deveria ter uns oitenta kwachas no bolso. Como precisava de uns quarenta para por gasolina, anunciei: Quarenta kwachas ou seja 5 USD. Tal um prestigitador o policial conseguiu fazer desaparecer a caneta e o bloco de multas em fracções de segundos.

Olhei para traz e o tal poste electrico ambulante, olhava da estrada a cena da negociata. O tal segundo tenente me pediu cinquenta kwachas. Recusei pois precisava meter combustivel. Sem desviar o olhar, me apercebi de que o tal poste era o manda chuva da operação “bolsos abertos”. E lá fomos discutindo entre 50 e 40 kwachas. Num dado momento o chefão magricelas, fez um movimento aprovador com a cabeca, que quase lhe fazia cair o tal de quépi.

E pronto fechámos a negociação em quarenta kwachas. Com um sorriso lembrei ao tenente que lhe tinha feito economizar uma folha de papel. Ele sorriu tambem. Paguei e ao iniciar a volta ao meu carro, não é que a agente feminina e o segundo tenente se despedem de mim. Ela acenando a mão com as luvas brancas dizendo-me adeus, como antigamente quando em Portugal se abalava de férias. E ele batendo-me continência, a mim que nem sequer o servico militar fiz.

Passei ao lado do leitor de radar e ele tambem me acenou dizendo-me adeus.Quase que uma lágrima me corria pela face, de tão comovido que estava. Depois de meter gasolina e voltando pela mesma estrada, o poste telegráfico reconheceu-me e mais uma vez me disse adeus. Senti-me comovido. Por apenas cinco dólares... olhem comoção as coisas.

3 comentários:

Anónimo disse...

Tiveste muita sorte, olha se operaçao se chamava "Ida e Volta" ! La desembolçavas mais uns trocos.

Anónimo disse...

o ser humano é sempre fantástico. Adorei o seu relato.

Anónimo disse...

E o maninho que não viesse com as histórinhas racistas sobre africanos!