quarta-feira, outubro 10, 2007



Chega e sobeja


Marina Dinis
Pôr-do-sol sereno num terraço da medina. Clima ameno sem uma nesga de vento. Cores de bege alaranjado, branco e verdes escuros e secos das plantas. Um silêncio absoluto no coração de uma pequena cidade confusa e barulhenta. Gatos sem qualquer receio das pessoas, surgem-nos vindos de todos os lados. Gatos amarelos e brancos, pequenos, ágeis e elegantes.

Os riad são os locais ideais para um refúgio em Marrakesh, onde apetece permanecer para sempre. Os terraços estão dispostos em vários níveis, com acessos através de pequenas escadarias estreitas e tortuosas. Os espaços estão cobertos de buganvílias de várias cores, limoeiros, oliveiras, palmeiras e diversas trepadeiras.

Os riad são casas tradicionais restauradas, inseridas no âmago da medina. Numa viela surge uma porta de madeira escura e pesada, com grandes pregos de metal polido. Através desta acede-se a uma casa de três andares dispostos em torno de um pátio interior frondosa e acolhedor. No topo há um terraço com alpendre e grandes chapéus-de-sol de lona branca com camas, sofás e espreguiçadeiras em recantos intimistas, abrigados do sol.

O silêncio no terraço é inexplicavelmente total e quando cai a noite, o céu transforma-se num manto estrelado. Há candeeiros árabes com vidros coloridos, porém a iluminação essencial provem de pequenas velas espalhadas por recantos do chão. Pétalas de rosa vermelhas cobrem o chão em diversos pontos do riad.

Os quartos, sete no total, têm nomes e não números e à porta de cada um está uma pequena mesa baixa de madeira escura, com dois cadeirões também de madeira, com almofadas forradas a pano-cru. Aqui toma-se chá de menta. As portas dos quartos dão para recantos do pátio interior, onde existe uma abundância de plantas altas e frescas em grandes vasos bojudos, nos tons das paredes.

O riad possui uma pequena biblioteca e uma luxuriante sala de convívio, mas as refeições são tomadas no terraço sob as coberturas de pano-cru. O meu quarto chama-se DAMAS... não sei o significado e é-me irrelevante. Tem paredes altas, caiadas de branco, com três longos candeeiros árabes pendurados no tecto, donde jorra uma luz suave e ténue. Uma cama dupla simples, com uma coberta vermelha de tear tradicional e uma longa mesa de madeira escura aos pés da cama.
Aquela fica encaixada numa espécie de arcada em frente à pesada porta dupla de madeira antiga que fecha com uma simples tranca em barrote de ferro forjado. À direita há uma chaise-longue vermelha, ao lado da qual ficam três degraus de pedra que dão acesso à porta da casa de banho. Esta é um pequeno encanto, toda em pedra polida com um pequeno lavatório sobre o qual está pendurado um espelho emoldurado em ferro forjado trabalhado. Em recantos variados escavados na pedra, estão colocadas toalhas e cestas de verga grossa forradas a pano-cru.

Num recanto semi-isolado por uma parede de pedra arredondada está o duche, com um antigo chuveiro de latão de boca enorme. Na parede ficam duas minúsculas torneiras antigas, igualmente em latão. Do lado oposto, noutro recanto, escondida por uma pequena parede, está a sanita. A higiene é total e o aroma é sempre de rosas. Os pequenos sabonetes artesanais cheiram intensamente a rosas e num pequeno suporte de latão estão três tubos de vidro com gel de banho de aroma a amêndoa.

Pela manhã está fresco na cobertura do terraço, mas nunca frio ou vento. De madrugada acordo espontaneamente com o chilrear persistente de um bando de passarinhos que poisam numa das altas buganvílias do pátio interior, até que um

gato amarelo vindo de outros terraços, os assusta cessando o chilrear e deixando-me de novo dormitar. Não há relógios, telefones ou calendários, nem preços ou números. Todo o contacto com o pessoal é informal e pessoal, parecendo que estes apenas aparecem quando necessitamos de alguma coisa.

Estou no céu? Não, não acredito em céu, mas para mim isto chega e sobeja.

A doutora até escreve bem

Ora cá temos mais uma colaboradora, a Marina Dinis, psiquiatra e Amiga. A Marina não é de modas: «Presidenta» da FAÚMA, que tantas vezes tenho referido e a que também pertenço. Mulher de armas, pois deita a mão a tudo. Diz ela que gosta de ser agente de relações públicas, pois, no domínio das doenças mentais, é mais das ralações públicas (e privadas).
Viajante intimorata, a Marina ainda tem tempo, depois de se desdobrar em quefazeres os mais diversos, para dar consultas. Conheci-a por intermédio da minha Santa da Ladeira, a Alice Nobre. São duas queridas. Colegas de sempre, desde a faculdade até à especialidade médica. São verdadeiramente inseparáveis, muito piores do que gémeas. Férias compartilhadas, por exemplo; tanto quanto sei de fonte segura, os respectivos «caros-metados» não se queixam. Aqui fica o primeiro texto da Marina. Outros virão, estou certo. Porque, alem de tudo o mais, a doutora até escreve bem. A.F.

10 comentários:

Anónimo disse...

Fui doente da Senhora Doutora Marina Dinis e dela guardo a melhor impressão. Com atenção, competência e até carinho, fiquei-lhe eternamente grato. Estas coisas da psique são muito complicadas e, perdoe-se-me a expressão, também muito lixadas.
Obrigado Senhora Doutora, porque, alem de me ter cuidado da saúde com enorme categoria, também escreve muito bem, como refere o Senhor Antunes Ferreira. A quem também agradeço pelo que nos oferece no seu blog, de que sou leitor habitual.

ET - Perdoem-me não assinar com o meu nome verdadeiro, mas quero guardar o anonimato.

Anónimo disse...

Eu nunca fui a Marrakesh, mas senti-me lá através deste texto em que a autora parece realmente que esteve no céu! Agora compreendo melhor porque é que há algumas sextas-feiras atrás, uma sala que há ali para os lados do Saldanha esteve disponível para mim, que não viajei grande coisa este verão!

Anónimo disse...

Sempre ouvi dizer que ir a Marrakesh vale a pena. A pena (ou a pluma) da autora deste post, confirma.

Anónimo disse...

Tal como victor l., senti que o texto da dra. Marina me permitiu fechar os olhos e viajar até uma cidade onde nunca estive. Se viaja assim tanto não poderia ir escrevendo para quem não tem hipóteses de ir?

Anónimo disse...

Caro PF,fiquei babada de ter gostado do pequeno relato sobre Marrakesh. Prepare-se para fechar os olhos no início de Dezembro, quando regressarei de Sydney e Melbourne.

Anónimo disse...

Bonito

Anónimo disse...

Olá Drª Marina!
Cheira-me que no fundo, no fundo algo em si está mudando.
Com que então Castanhas da india?
poderia ser outra coisa qualquer.
O que importa é a partilha, seja do que for..alegria de dar sem possibilidade de nos retriuirem..( experimente) "fazer bem sem olhar a quem" e logo logo esse bem que fizemos volta para nós e nos enche de alegria e paz.
jinhos
"uma voz no deserto"

Anónimo disse...

Muito bem cara amiga.
Gostei muito das suas palavras, embora eu não acredite em muitas as suas são verdadeiras.
Alex

luisa disse...

Fantástico! Sim, fabuloso poder ler algo escrito pela minha médica favorita. Pena é, eu desconhecer em que outros locais poderia eu ler algo mais escrito por ela.

Dina Albuquerque disse...
Este comentário foi removido pelo autor.