terça-feira, outubro 23, 2007

Castanhas da índia




Marina Dinis
Há mais de vinte cinco anos que conheço ambas. Somos colegas de profissão e estudámos na mesma faculdade, todavia durante uns anos perdi-lhes o rasto, tendo vindo a encontrá-las mais tarde quando, por circunstancias do acaso e na sequência dos diversos concursos inerentes à nossa profissão, voltamos a trabalhar juntos nos edifícios deste parque.

Trata-se de um caso muito especial e a meu ver, algo inédito: duas mulheres adultas com uma amizade sólida desde, segundo as próprias se orgulham de afirmar, há mais de vinte anos. Não quero ser mal interpretado mas desde há alguns anos que me dá imenso prazer observá-las. Divertem-se com as coisas mais simples e falam entre si, incessantemente. Para quem como eu as observa com cuidado, não se pode deixar de ter alguma inveja no gozo quase infantil que colocam nas situações do quotidiano.

Por vezes surpreendo-me desejando que se zanguem pois a sua alegria é tão efusiva que me enraivece. Lamento ter passado já mais de metade da minha vida e ter gorado manter com alguém uma amizade assim. Ambas muito diferentes, raramente cedem uma à outra, mas segundo me têm já dito “ negoceiam-se as divergências e cada uma fica na sua...haja respeito!” . Respeito e independência pois é incontestável que ambas são ferozmente independentes e muito senhoras do seu nariz. Aliás, a sua teimosia ou persistência é lendária e exasperante para todos nós.

Hoje encontro-me dentro do meu carro ao final da tarde no parque, fazendo tempo para ir buscar o meu filho a uma festa, quando as vejo ao longe virarem a esquina vindas dos pavilhões. Deslizo um pouco para baixo para que não me vejam e fico a observá-las. O que farão aqui a esta hora?

Caminham devagar, falando sempre. De repente param e a loira vira-se para a morena e gesticula acintosamente enquanto esta baixa os olhos e arrasta um pé pela relva. Subitamente a morena larga uma gargalhada sonora e feroz e contorcem-se ambas a rir de tal forma que dou comigo também a rir sem saber porquê. Passa um carro e ambas acenam um adeus sem por isso pararem de rir. Que fará com que estas mulheres sejam capazes de tanto prazer tirar da vida depois de uma semana de trabalho árduo, diariamente confrontadas com tanta miséria humana, frustração e cansaço?

Passam mais alguns minutos até que a morena começa a vasculhar insistentemente na sua mala enquanto continua a falar. A loira vira-lhe as costas deixando-a no meio da rua a falar sozinha enquanto se dirige para o relvado e olhando atentamente para o chão, começa a apanhar algo que não consigo identificar. A amiga vem juntar-se-lhe e coloca-se de cócoras sobre o relvado apanhando algo para dentro de um saco de plástico que acabou de retirar da mala. Ficam nesta actividade pelo menos mais quinze minutos e entretanto eu vou ardendo de curiosidade.

Uma vez por outra a loira, mais prudente, olha à sua volta verificando se estão a ser observadas, mas eu estou suficientemente longe para que não se aperceba da minha presença. Sem aviso, a morena perde o equilíbrio e rebola sobre o relvado levando ambas a contorcerem-se novamente de riso. Acabam ambas por se sentar no banco do jardim à beira da estrada, entretidas com os objectos da sua colheita. Eu não resisto mais. Ponho o carro a trabalhar e conduzo até ao local onde ainda se encontram a rir e a falar, dividindo entre si o que aparentam ser castanhas.

(Mulheres - Picasso)

“O
lá meninas, então que pouca vergonha vem a ser esta, já fora da hora de trabalho?” Explicam-me que uma está de chamada a urgências internas enquanto a outra lhe faz companhia por solidariedade. Quando lhes pergunto o que andam a apanhar na relva a morena pendura-se na janela do meu carro e apresenta-me quatro castanhas dizendo: “Toma lá invejoso. Quatro castanhas da índia. Sabes para que servem?” Devo ter feito uma expressão de desconcerto pois passaram ambas a falar ao mesmo tempo explicando-me as variadas utilidades e virtudes das tais castanhas da índia.

Nada me apetecia mais neste momento do que ficar sentado no banco do jardim entre as duas. Estão tão bem com o mundo e movem-se ambas com serenidade e uma certa languidez de fim de tarde que a mim me faz parecer que por aqui o tempo não passa. Mas tenho compromissos a que não posso faltar e sobretudo sei que estou de fora desta cumplicidade. Ao afastar-me olho pelo retrovisor observo-as dizendo-me adeus e balouçando os pés no banco de jardim e parece-me que uma delas usa umas meias com uns porcos cor-de-rosa. Deve ser engano meu.

Que nunca me levem a mal, mas passarei anos a observá-las sempre que essa oportunidade surgir e manterei as castanhas da índia, não pelos seus poderes e utilidade mas para me lembrar de quem mas deu .

6 comentários:

Anónimo disse...

Já julgava que tinha parado. Ainda bem que o não fez, querida Doutora. Estou muito satisfeito. Um beijo de agradecimento

Anónimo disse...

Dra. Marina....mas que tristeza numa escrita que parece ser a mais levezinha do blog!

Anónimo disse...

Parafraseando anterior comentário... a Drª até tem jeito! Ao ver a quantidade de mentecaptos que por aí andam a publicar "livros", porque não a publicação de um livrinho de contos? Quem sabe porta de entrada para outros voos.
Anón. do SLB

Anónima Salina disse...

Muito prazer em conhecer a sua narrativa. Por favor, continue.
Curiosidade: porque utilizou um narrador masculino?
AS

Anónimo disse...

Porque sou um homem, cara salina.

Anónimo disse...

Porque razão o apelidam de Doutora e se identifica como Marina, uma vez que diz ser um homem?