domingo, julho 01, 2007



HISTÓRIAS DA PJ


A morte do cauteleiro

José Augusto Garcia Marques
Eram aproximadamente duas da manhã de uma noite abafada do mês de Junho de 1969 quando fui acordado pelo chefe de piquete da PJ. Tinha sido encontrado um corpo sem vida, num descampado para os lados do Lumiar. Combinámos que uma viatura com dois agentes das secções de homicídios e um técnico do laboratório viria buscar-me a casa. Chegados ao local – ermo e sem iluminação -, dirigimo-nos a dois guardas da PSP que, munidos de uma lanterna, estavam postados junto de uma pequena elevação do terreno.

Perto deles encontrava-se o corpo de um homem magro, de cinquenta e tal anos, deitado de barriga para baixo, tendo ao lado uma tesoura comprida e pontiaguda, manchada de sangue. Tinha uma ferida profunda no pescoço e uma poça de sangue ao lado da cabeça, que se misturava com vomitado com forte cheiro a vinho. O corpo encontrava-se estendido numa rampa de terra batida, havendo, porém, no terreno seco e duro, sinais de calçado de diversas origens, rastos com diferente definição, mais claros uns, outros mais indefinidos e alongados.

Nos bolsos das calças do morto havia algumas notas de 20, 50 e 100 escudos, além de um porta-moedas com algum recheio. Por sua vez, no bolso da camisa, algumas “cautelas da Santa Casa” denunciavam a actividade da vítima: tratava-se de um vendedor de lotaria. Além destas peças de roupa, o homem vestia ainda, apesar do tempo quente, um casaco leve e muito gasto. Não trazia qualquer documento. Feitas as recolhas de vestígios e as fotografias da praxe, o corpo foi removido para o Instituto de Medicina Legal.

Um dos agentes da PSP, melhor conhecedor do local, deu-nos conta da existência de uma taberna nas imediações. Apesar da hora tardia - ou matutina, dependendo dos pontos de vista -, fomos ainda bater à porta, tendo sido atendidos pelo patrão que vivia ao lado do estabelecimento e que, mal encarado, tinha vindo informar-se do que se passava.

Cheirar o ambiente

Perguntámos-lhe a que horas tinha fechado na noite anterior e se lá tinha estado um cliente, vendedor de lotaria, com sinalética correspondente à da vítima. Foi altura de o homem perguntar: “Quem? O Ti Jerónimo?” E logo informou: “Chegou tarde, comeu pouco mas bebeu mais do que de costume. Tive que o pôr na rua, porque estava implicativo por causa dos copos e eu queria fechar”.

Recolhemos a identificação do nosso interlocutor – Raul (nome fictício) - e, depois de explicarmos o que nos levava ali, informámo-lo de que voltaríamos no dia seguinte à hora de almoço, a de maior movimento do estabelecimento. Ainda protestou, alegando que era a pior altura para nos prestar atenção. Interessava-nos, porém, respirar a atmosfera, cheirar o ambiente e conhecer alguma da clientela habitual.

No dia seguinte, de manhã, com mais tempo, voltámos ao local. O terreno foi minuciosamente analisado, recolhendo-se indícios que depois seriam cotejados com os resultados médico-forenses e de polícia científica. Na taberna, à hora do almoço, encontrámos o Raul, acompanhado pela mulher e mais meia dúzia de fregueses. O assunto da conversa era, como não podia deixar de ser, a morte do “tio Jerónimo”. Dos elementos recolhidos pudemos traçar-lhe o retrato. Era um homem solitário e estimado, não lhe sendo conhecidos inimigos. Vivia numa barraca próxima, para onde se devia dirigir quando a morte o ceifou.

Procurámos saber se, na noite da véspera, o “tio Jerónimo” tinha tido alguma discussão com alguém. Reparámos com estranheza que a mulher olhou para o marido, ao mesmo tempo que um e outro baixavam o tom da voz, evitando responder directamente à pergunta. Limitaram-se a dizer que o Jerónimo estava quezilento e mais nervoso do que era costume.

Insistimos. Pedimos à patroa que nos levasse à cozinha e aí, fora do olhar dos fregueses, confirmou-nos que o Jerónimo tinha discutido longamente com um vendedor ambulante que, de longe em longe, parava por aqueles sítios. Gaspar de seu nome. A desavença incidira em redor de uma tesoura para cortar a lotaria, que o outro lhe tinha vendido tempos atrás. Queixava-se de que tinha sido enganado e que a tesoura se tinha estragado ao fim de pouco tempo. A desavença subiu de tom, tendo levado o patrão a zangar-se com os dois. Todavia, como tudo continuasse na mesma, resolveu pô-los na rua, tendo fechado a porta da taberna pouco antes da meia-noite. Mais nos disse que tinham sido os últimos clientes a abandonar o estabelecimento, tendo saído juntos e prosseguido a discussão no exterior até que deixou de lhes ouvir as vozes.

O “Paga-Pouco”

Perguntámos à nossa interlocutora como era a tesoura do “tio Jerónimo”, tendo-nos dito que era relativamente curta e romba na extremidade, ou seja, um objecto muito diferente do que encontrámos junto ao corpo – uma tesoura comprida e com as lâminas afiadas. Confirmámos esta informação junto de alguns clientes, que identificámos. As coisas pareciam, assim, apontar para um suspeito: o referido vendedor ambulante, mais conhecido como o “Paga-Pouco”. O mistério foi esclarecido no dia seguinte.

Localizado o Gaspar, confirmou-nos a discussão com o Jerónimo, que se queixara asperamente de uma deficiência no parafuso que devia permitir a junção das lâminas da tesoura que lhe tinha vendido em tempos. Para não o ouvir mais, propôs-se o “Paga-Pouco” emprestar-lhe uma tesoura nova – longa e muito afiada -, que o Jerónimo utilizaria, enquanto ele, antigo amolador de tesouras, procedia ao arranjo da velha. E assim foi. Deslocou-se, com o vendedor de lotaria, à sua “carripana” onde escolheram a tesoura nova que o Jerónimo guardou. Segundo disse na PJ, o Gaspar ainda teria prevenido o Jerónimo, dado o estado em que o viu, quanto aos cuidados a ter com um objecto perigoso a que não estava habituado. Ter-se-iam despedido cordialmente. Pedimos ao vendedor ambulante que nos exibisse a tesoura romba do falecido, o que ele fez sem demora, tendo o objecto ficado apreendido junto aos autos.


A importante Medicina Legal

O depoimento do “Paga-Pouco” pareceu convincente, tendo sido confirmado por uma testemunha merecedora de crédito. O mistério continuava por resolver. Foi aí que entrou a sempre competente intervenção do Mestre da Medicina Legal de Lisboa, o Professor Arsénio Nunes, amigo e precioso auxiliar dos investigadores da PJ: estava-se claramente na presença de um acidente e não de um homicídio. O falecido, talvez em consequência dos “copos” escorregara ao subir a rampa de terra dura e batida, tendo feito um movimento amplo com os braços em rotação para trás, para tentar manter-se em pé. Trazia a tesoura, que o “Paga-Pouco” lhe emprestara, no bolso de cima do casaco, do lado esquerdo. Ao fazer o referido movimento, empurrara a tesoura, comprida e pontiaguda, há minutos na sua posse, que fora espetar-se-lhe no pescoço perfurando a carótida, tendo provocado a hemorragia que lhe causou a morte.

O Professor Arsénio Nunes deu-se ao trabalho de fazer uma simulação com um manequim, tendo exemplificado o movimento que esteve na origem da morte do infeliz. Se conto este episódio, isso deve-se à circunstância de pretender prestar uma sincera homenagem a esta especialidade da Medicina – a Medicina Legal -, que é, por definição, área privilegiada de confluência da Medicina e do Direito. Por ela passam e nela se debatem temas e questões da mais transcendente importância para o homem, não só enquanto vítima ou autor de factos criminosos, mas também enquanto profissional daquelas ciências. No dia a dia das respectivas existências, Medicina e Direito cruzam-se e amparam-se nas suas respectivas competências, para melhor conhecer, defender e fazer respeitar o Homem integral, na intangibilidade dos seus direitos e na integridade da sua pessoa física e moral.

A Polícia Judiciária e a Medicina Legal devem caminhar, assim, irmanadas e sem desfalecimento na senda que possa conduzir à descoberta da Verdade e à realização da Justiça.

4 comentários:

Anónimo disse...

Muito bem. Temos o Conselheiro Garcia Marques de volta. E cá estou eu a agradecer-lhe, mais uma vez, o seu novo texto. Como sempre está muito bem escrito, é interessante e, sobretudo, verídico.

Tenho de lhe dizer, porém, que prefiro os outros, «em fascículos» que são exemplos acabados de suspense e que nos levam a aguardar a continuação na maior expectativa.

De qualquer forma, continuo e continuarei seu fiel leitor.

Anónimo disse...

Embora goste muito do que escreve, e este é um texto interessante e bem escrito, como é evidente, sou da opinião do «outro Sacadura»: venham mais «folhetins» em episódios. Entusiasmam-me!

Anónimo disse...

Aqui declaro que na data indicada nao me encontrava nas redondezas, ha!ha!
Um outro bom conto.

Anónimo disse...

Há já uns tempos que este blogue não anda. E tem de andar, sob pena de darmos, os que o lêem, um belo puxão de orelhas ao Dr. Antunes Ferreira. E também aos seus colaboradores. Dr. Garcia Marques, por exemplo: quando voltamos a ter o prazer de ficarmos na expectativa do próximo capítulo?

Não se atrase. Cuidado com os pavilhões... auditivos!