segunda-feira, julho 30, 2007




HISTÓRIAS DA PJ

Aconteceu pelo Natal ...

(2ª parte)

José Augusto Garcia Marques
O António tinha sido emboscado na estrada florestal, à saída de uma curva, quando seguia de bicicleta a caminho de casa. A ténue luminosidade do crepúsculo desaparecia lentamente para dar lugar a uma tranquila noite de Dezembro. Os sinais de calçado deixados na terra batida denunciavam a presença provável de, pelo menos, três assaltantes. A pedrada na cabeça deve-o ter derrubado do veículo em que seguia. Os golpes nos braços denunciavam a desesperada tentativa de defesa perante os ataques desferidos. Os resultados da autópsia vieram a revelar que, no assalto, foram utilizadas, pelo menos, duas facas diferentes. Um golpe fatal atingiu-lhe o coração. Descobriram-se no terreno sinais reveladores de que o corpo teria começado a ser arrastado para fora da estrada, provavelmente para ser escondido numa mata próxima.

Todavia, o eventual receio de serem surpreendidos terá levado os assaltantes a desistir desse propósito, tendo acabado por abandonar o corpo, sem preocupações de ocultação, alguns metros além do local do assalto, na berma da estrada. A cerca de trinta metros, à entrada da mata, foi encontrada a carteira que o António trazia consigo. Ali foram recolhidas algumas impressões digitais bem nítidas, que, de imediato, foram enviadas para a sede, bem como a bicicleta desconjuntada. Paralelamente, iniciámos a recolha dos depoimentos relevantes.

A GNR local informou acerca da presença na zona de três ciganos com aspecto nada tranquilizador. Tinham sido vistos a comprar pão numa padaria e outros mantimentos em estabelecimentos das redondezas. Dois deles, com cerca de vinte e cinco anos, davam particularmente nas vistas: um, moreno e muito alto, com mais de um metro e noventa de altura e uma ligeira malha branca no cabelo; o outro, muito mais baixo, de pele e olhos claros, com barba crescida procurando disfarçar o lábio leporino. O terceiro era muito mais velho – andaria pelos cinquenta anos - e tinha estatura média.

Alguma coisa mexeu com o Chefe de Brigada, polícia que vivia a tempo inteiro a vida da Polícia, quando se falou num suspeito com “o lábio superior aberto”. Um telefonema para o ARI (Arquivo de Registos e Informações), serviço que, nesses tempos ainda sem computadores, era a verdadeira “memória da PJ”, permitiu-nos, dois dias depois, ter acesso à respectiva ficha policial. Tratava-se de um tal Ângelo de Jesus, também conhecido pelas alcunhas de “o Beiço Rachado” ou “o Fanhoso”, com os dados nominativos e sinaléticos conhecidos. A segunda alcunha resultava da deficiência na fala provocada pela fenda congénita do lábio e do palato.

Irmãos de leite, irmãos de sangue

N
ão era de etnia cigana. Fora abandonado à nascença junto de um acampamento de ciganos, então sedeado perto de Fátima. Foi “adoptado” por uma cigana, Berta de seu nome, uma jovem robusta que dera recentemente à luz um filho, a quem amamentava. O filho da Berta e o Ângelo cresceram assim como “irmãos de leite”, alimentados, acarinhados, repreendidos e castigados pelos “pais” como se fossem “irmãos de sangue”.

A natureza violenta do Ângelo e a sua capacidade de liderança levaram-no, por volta dos dezoito anos, a enveredar pela senda do crime, tendo já antecedentes penais pela prática de alguns assaltos, com roubos e ofensas corporais. À data do crime de Torres Vedras era uma figura em ascensão no “mundo do crime”. Uma mensagem/rádio da PJ dava-o como suspeito, em co-autoria, de um assalto a um casal de namorados dentro de um veículo automóvel, na região da Lourinhã, com a prática de graves ofensas corporais na pessoa do homem.

Obtida a identificação, foram cotejadas algumas das impressões digitais recolhidas na carteira da vítima com as impressões digitais do Ângelo. A comparação não deixava lugar a qualquer dúvida – o resultado foi positivo. Faltava, ainda assim, no plano da investigação, percorrer um longo caminho. Além da identificação dos restantes elementos do grupo de assaltantes, havia que averiguar a possível implicação da Sílvia, viúva do emigrante, enquanto mandante ou autora moral do crime.

Ouvidos os promitentes-compradores das propriedades do falecido, confirmaram a entrega, como sinal, de cerca de trinta contos, correspondentes a vinte por cento do preço acordado para a venda. E exibiram os recibos correspondentes, datados e assinados pelo António. O emigrante metera o dinheiro na carteira, que voltou a guardar no bolso interior do casaco. Perguntados, disseram que não era provável que alguém tivesse presenciado o acto de entrega do dinheiro, uma vez que estavam sentados num local retirado e tinham agido discretamente.

Mais informaram que o emigrante constituíra, no Cartório Notarial, o procurador que o iria representar na celebração das escrituras de compra e venda, já marcadas para o mês de Janeiro. Das informações recolhidas e das circunstâncias do assalto, podia-se ser levado a pensar que se estava perante uma emboscada premeditada, planeada com antecedência por assaltantes informados de que a vítima traria consigo uma considerável soma de dinheiro. O que, mais uma vez, nos remetia para a necessidade de investigar a jovem viúva.

Fomos falar com o procurador, Francisco Lopes de seu nome, natural da Freineda e comerciante estabelecido em Torres Vedras. Tratava-se de um patrício e velho amigo do falecido, sendo de presumir que estivesse bem informado sobre os acontecimentos que antecederam a tragédia.

Descontente com a vida

Começámos por lhe perguntar quais eram os propósitos da vítima, ao desfazer-se do património amealhado ao longo dos anos. Disse-nos que o António estava descontente com a vida, que “as coisas não andavam bem lá por casa” e que projectava vender tudo o que tinha “cá para baixo” e, com o produto das vendas, investir na sua região natal. Falou-nos da carta anónima, prevenindo acerca da eventual infidelidade da Sílvia.

Sem ser conclusivo, referiu um antigo romance de adolescentes entre a Sílvia e o Rodrigo, seu colega de Escola. Romance entretanto interrompido com o casamento dela e com a mobilização do jovem para Angola, de onde regressara, porém, havia já alguns anos. A Sílvia e o Rodrigo teriam voltado a conviver e, segundo alguns, as relações não seriam só platónicas.

Perguntado sobre a fonte do seu conhecimento dos factos relatados, o Francisco disse-nos que o essencial lhe fora contado pelo próprio António, poucos dias antes, quando lhe pedira para ser seu procurador. Estava bem lembrado das palavras amargas e misteriosas proferidas pelo amigo: “Olha, Chico … Não deve o remendão ir além da chinela”. Para melhor esclarecimento, o António teria acrescentado: “Ela não era forma para o meu pé. Sonhei alto de mais e paguei por isso”.

De qualquer modo, o Francisco estava convicto de que a Sílvia não era pessoa capaz de se envolver num esquema criminoso visando o assassínio do marido. Falámos com ela. Era efectivamente, e apesar dos anos passados sobre o seu casamento, uma bela mulher. Engordara alguns quilos em relação às fotografias do casamento. Mas a sua estatura suportava bem aquele aumento de peso, que apenas lhe modelava as linhas sob o vestido preto, tornando mais audaciosa a sensualidade daquela mulher ainda jovem, a caminho da maturidade.

Não se tinha oposto ao desejo da família do marido de que o funeral seguisse para a aldeia natal. Não disfarçou, porém, as más recordações deixadas pela deslocação. Ao desgosto da perda, somava-se a incomodidade da antipatia evidente para com ela. Valera o pequeno Daniel para “fazer a ponte” e derreter o gelo.

Perguntámos-lhe por que razão decidira o marido pôr à venda os seus bens. Respondeu, com aparente tranquilidade, que isso resultaria de ela ter recusado ir viver para França. Admitia, por isso, que o marido, homem de poucas falas, mais de agir do que de falar, estivesse a pensar separar-se dela. Explicava assim a razão da mudança de atitude do António para com ela: “Foi a família dele que o infernizou!”. Confirmou, todavia, que o marido nunca foi violento e raramente usou de linguagem ou modos agressivos. “Era um homem manso”, rematou. E, ganhando, talvez, consciência da associação induzida pelo adjectivo, apressou-se a esclarecer: “pacífico e boa pessoa”.

Mas não podíamos deixar de a interrogar sobre as suspeitas de infidelidade …

(continua)

3 comentários:

Anónimo disse...

O próximo fasciculo já está no correio?

Anónimo disse...

Caro Conselheiro

Continua em grande. Já não o dispenso. Aguardo, curioso e atento, a terceira parte.

Aproveito para felicitar o Dr. Antunes Ferreira, pois creio que é da responsabilidade dele a escolha das ilustrações, igualmente muito boas. Continuem, meus Senhores!

Anónimo disse...

Estou a gostar.
Continuação da história, já!!!