quinta-feira, junho 07, 2007




À RODA DOS DIAS

Junho

Maria Lúcia Garcia Marques
A meio do ano, Junho parece nascer da paixão violácea dos jacarandás em flor. Incendeiam as ruas da cidade, juncam o chão num tapete festivo. Talvez por isso, este seja um mês em festa. Ele é o Dia de Portugal … Ele são os Santos populares … Ele é Portugal a cantar!



O Hino, à sombra da Bandeira, as mais das vezes desentoado e desencontrado, por estádios de futebol, em jornadas de Taça – agora que já o não ouvimos a despedir os nossos soldados, num cais de angústia para uma guerra escusada, mas a encher-nos o peito de lusitana alegria, tal como e quando nos vemos figurados nos nossos Carlos Lopes, Rosas Motas, Vanessas Fernandes e outros, que galhardamente nos têm levado aos pódios do mundo.

Hino que aprendíamos na escola primária e que, no meu tempo de liceu, servia para escolher quem entrava ou não para o orfeão e para que naipe de voz. Era, à sua escala, um momento emocionante: cantar sem acompanhamento e a solo, para um professor bisonho, à frente da “malta” da turma, sem falhar a letra, na voz traiçoeira da “idade ingrata”, era, de facto, uma “operação de risco”. Por isso ficou para o anedotário familiar a história do desempenho, na circunstância, de um primito meu. Filho e neto de gente da música, ele sabia que não era nenhum Pavaroti. Mas vendo-se sem escapatória, puxou dos seus brios e decidiu esmerar-se.

Postou-se firme em frente do Mestre, tossicou para aclarar a voz, abriu a goela e vá de cantar. Cantou os “heróis do mar”, levantou como pôde o “esplendor de Portugal” e, da sua ainda pouco “brumosa” memória (caramba, tinha só dez anos …) tentou chamar a si a voz dos avós – que ele não percebia de todo por que lhes chamavam “egrégios” – para “levar á vitória” aquela Pátria que ele invocou com uma espécie de berro, “marchando” sonoramente “contra os canhões”!

Acabou exausto, mas convencido de que cumprira a contento. Convicção, porém, não partilhada pelo Mestre que lhe perguntou, sarcástico: “O menino tem a certeza de que isso é mesmo o Hino Nacional?” E logo ali o dispensou de quaisquer outras futuras prestações vocais.

Desventuras numa Pátria que canta com unção um “fatum” triste, mas que não deixa de ser um País com-vivente em que os dias de trabalho são “feiras” e os dois que restam são “feriados”: Sábado para repousar, segundo os judeus, Domingo para louvar, segundo os cristãos, em doses iguais, para não estragar a festa …

Porque ela está aí, a Festa, para celebrar os feitos dos homens como os santos do céu.
E então é ver o povo-povo, de alegria na lapela, riso no olho e boca gulosa de caseiros acepipes, regados com o generoso sangue da terra que ainda lhes faz bater o coração. E nesta celebração devotada dos seus santos (por tal chamados “populares”) se conforma o retrato médio do português, médio e nédio, que festeja com o corpo todo, na libação e na libertação (do cansaço e das mazelas com que o trabalho o marcou) em discurso directo com a cidade, alguns dias – ou noites – de alegre comunhão.

Foi um “à la minuta”, desse “português à solta” que Carlos Paião, cantor e poeta popular, nos deixou, solfejado e sofrido, na sua “Marcha do Pião-das-Nicas”. Aqui ficam, por prova, alguns desses versos que, na gíria e no gesto castiço, sem corantes nem conservantes, no lo dão ao natural:

Anda p´la vida à futrica
O estica-larica
O “Mangas Portuga”
Fecha-se em copos e copas,
Cafés e cachopas,
Trabuca e manduca.

Galfarro afiambrado
Pachola, arremelgado,
De grimpa levantada e garrafal.
Amigo do amigo
Farelo e muito umbigo.
Vestiu-se e veio a pé pró arraial.

És tu “pião-das-nicas”
Das bocas e das dicas
Que pegas nos calcantes e te vais
Adeus, leão dos trouxas,
Chupado das carochas,
Que foste no embrulho uma vez mais!

REFRÃO: Viva o Santo António,
Viva o São João,
Viva o 10 de Junho e a Restauração,
Viva até São Bento
Se nos arranjar
Muitos feriados para festejar!

Junho desta “ditosa Pátria minha amada”. Pátria/mátria – aquela parte de nós, indizível e sem data, aquele fio de sangue que vem não importa donde, que nos sustenta e nos sustém. Aquele orgulho inexplicado e íntimo que é nossa amarra e nosso lastro.

3 comentários:

Anónimo disse...

Gosto muito de a ler, Maria Lúcia. Este Junho está um primor. Os Santos Populares para nós, alfacinhas, resumem-se ao casamenteiro. E este lembra-me sempre a quadra marota que se contava nos meus tempos de rapazinho:

Dos dois Antónios
de que Lisboa disfruta
Um é filho da Sé...
e o outro... também é!!!!!!!!!

Bem haja Maria Antónia. E quem lhe agradece é um dos que vieram de África, felizmente sem o caixote de pinho.

Anónimo disse...

Há muito que não "boto" um comentário no brilhante blogue que o meu amigo Dr. Antunes Ferreira elaborou.

Motivo: é que nem sempre estou inserido na matéria publicada.
O cântico entoado ou desentuado do Hino de Portugal, seja no Dia de Portugal ou noutro dia que seja é agradável ouvi-lo.

Eu já estou habituado há 45 anos a ouvi-lo na "estranja", fifiado, arranhado e até pronunciada a primeira palavra "herois" por "helois".

Mas quando o ouço, na estranja claro está, sinto arrepios no corpo e a exaltação da alma.

É a alma lusa que reside dentro de mim e de todos os outros que estamos fora da pátria onde nascemos.

Alma que contagia, igualmente, os nossos filhos vindo de mistura de sangues.

Não gostei do que diz: "agora já não ouvimos a despedir os nossos soldados, num país de angústia para uma guerra escusada....."

Recomendo-lhe que deve perguntar ao Dr.Antunes Ferreira (soldado de Portugal em Angola na mata) se, se deveria escusar essa guerra e deixar matar (como um aerosol limpa moscas),a gente branca, preta e mulata no norte de Angola.

Ela que não cometeu crime algum, apenas o de ter nascido portuguesa, ouvirem o Hino Português, fifiado e em língua "pretoguês" (entenda que não escrevo esta frase em termo pejorativo), no dia 10 de Junho, Dia de Portugal e bem chamado Dia de Camões.
Fico por aqui.
Saudações de um dos "Camões" residente na Tailândia.
http://aquitailandia.blogspot.com

pedro oliveira disse...

Gostei muito do «post» e de um comentário, vou fazer um «link» pois a inspiração não abunda e basicamente os Carlos (Paião e Tê) já disseram tudo (o segundo na valsa das medalhas).