sexta-feira, junho 01, 2007
HISTÓRIAS DA PJ
What happened to Mr. Hood?
(Conclusão)
José Augusto Garcia Marques
“O que é que o Senhor Dr. dizia se lhe dissesse que não fui eu que matei o Roy Hood?” “Mas, afinal, foste tu ou não?”, perguntei, por minha vez, num tom severo. “Fui, fui”, respondeu ele. “Então porque é que fazes perguntas parvas?” “Ah, era só para ver o que o Senhor Dr. dizia. É que ele apareceu com uma pedra atada aos pés por uma corda”, acrescentou o Hernâni. “E tu sabes que isso não podia ser, não é verdade?” Hesitou e disse: “Sei lá se podia ser ou não”.
Mas a dúvida ficou a germinar no meu espírito. Fiquei preocupado com a conversa. Já o disse: a única coisa que deve interessar à Polícia Judiciária é a descoberta da verdade – e não encontrar uma versão que possa render dividendos em termos de imagem, de opinião pública, mas que não corresponda ao rigor dos factos. No caso, atendendo à personalidade do Hernâni, tinha razões para ficar inquieto. Questionei-me: será que ele não resistiu à tentação de “simplificar” a vida aos investigadores ou será que sucumbiu à publicidade fácil dos célebres “quinze minutos de fama”?
Decidimos adoptar a seguinte estratégia: por um lado, identificar e interrogar o indivíduo que o vira em correria ao longo da muralha, depois de, alegadamente, ter empurrado o Roy Hood; por outro, contrastar o seu depoimento, o que implicava apurar quem seria o melhor amigo do Hernâni, em quem depositava mais confiança, de quem fazia confidente. Em seguida, haveria que o localizar, explicar-lhe a missão que lhe competia desempenhar e trazê-lo à Gomes Freire para, com total à vontade, falar com o detido, a fim de obter dele a versão dos factos ocorridos. Perguntado, o Hernâni, disse que o seu maior amigo era um tal Daniel, criado numa casa do Estoril, propriedade de uma conhecida família portuguesa ligada à alta finança.
Daniel e a busca da verdade
Dois agentes foram buscá-lo, tendo-lhe sido explicado o que se pretendia dele. O Daniel era uns anos mais velho do que o Hernâni, olhar vivo e inteligente. Entendeu perfeitamente que o que estava em causa era a busca da verdade, e, nesse quadro, percebeu a importância do seu papel. Foi-lhe dito que não tivesse preocupações de tempo, que falasse com todo o à vontade com o Hernâni, que lhe fizesse todas as perguntas que a sua curiosidade suscitasse e que, concluída a conversa com o amigo, relatasse com fidelidade aos investigadores o que lhe tinha sido dito. O Daniel revelou ter instinto policial, tendo “saído melhor do que a encomenda”, isto é, tendo excedido as nossas expectativas, mesmo as mais optimistas.
Ficaram ambos – ele e o Hernâni – a conversar numa sala, com o sistema de escuta interna accionado, para que os investigadores pudessem acompanhar a conversa entre ambos. O Hernâni confirmou ao Daniel a versão que nos narrara, tendo, inclusivamente, dado mais pormenores, até porque o outro era insistente e curioso. “Como é que tiveste coragem para fazer aquilo ao homem, pá?” “Ele ofendeu-me: disse que gastava o dinheiro todo em trapos e que ‘andava ao badejo’. Vê lá tu, um velho!” “Pois, mas ainda ´tava um belo homem e era um senhor distinto. Olha lá, e como é que tu o fizeste cair da muralha abaixo?”
“Dei-lhe um empurrão. Ele ´tava mesmo à beirinha. Mas eu não pensei...; não foi assim por querer, pr´ó aleijar ...” “Um empurrão como? Mostra lá como foi.” O Hernâni terá tentado reproduzir o empurrão, mas não convenceu o Daniel, que lhe ripostou: “Assim nem c´um miúdo, pá! ... o homem nem sequer se desequilibrava!” “Foi com mais força. Aqui é que não dá pra imitar bem, porque ainda partes mas é esse vidro.” Saído da sala, o Daniel repetiu com fidelidade o que ouvira do Hernâni – e que já era obviamente do nosso conhecimento.
Fiquei muito mais tranquilo. Em consciência concluí que os acontecimentos se tinham passado como o arguido os descrevera. Mas era, para mim, quase certo, que o Hernâni, em julgamento, iria negar tudo. Tornava-se, até por isso, indispensável instruir os autos com o maior profissionalismo e com todo o pormenor. Procedeu-se, assim, a uma rigorosa reconstituição dos factos com a presença do Hernâni, que reproduziu com fidelidade os momentos mais relevantes do seu comportamento, tal como o descrevera.
O “engatatão” das arcadas
Faltava localizar o frequentador das arcadas, onde “engatava” turistas estrangeiros. Como habitualmente, os agentes encarregados da investigação cumpriram a tarefa com eficácia e prontidão. Tratava-se de um tal Rafael, um indivíduo com cerca de trinta anos, de aparência máscula, aspecto altivo e postura por vezes agressiva. Era casado e tinha um filho muito pequeno. Dedicava-se, sem que a mulher parecesse saber, ao engate de estrangeiros a quem prestava os favores sexuais pretendidos. Dessa actividade de prostituto provinham os seus rendimentos.
Foi justamente na esplanada das arcadas, sentado a uma mesa com um americano, que os investigadores da PJ o foram encontrar. Trouxeram-no para a sede e, durante mais de duas horas, interrogaram-no sobre o seu modo de vida, tudo com o objectivo de apurar se, naquela noite, tinha efectivamente visto o Hernâni a correr ao longo da muralha da praia do Tamariz. Só que era uma personalidade difícil. Ostentando uma máscara de aparente virilidade e grande arrogância, negava que tivesse contactos com homens, revelando-se uma testemunha nada colaborante.
Em dado momento, postei-me num local de onde, sem ser visto, podia ver o que se passava no interior do gabinete. O indivíduo estava sentado, a ser interrogado por um agente. O Chefe de Brigada, homem de forte compleição, passeava, como era costume, em silêncio de um lado para o outro. De repente, vejo o “Chefe” levantar o braço direito, fazê-lo descer num movimento rápido e aplicar uma estrondosa pancada no tampo da secretária, ao mesmo tempo que, gritava: “Basta de teatro! Põe-te em pé! Vamos lá a falar clarinho!”.
O clima estava tenso, não me sendo possível intervir de imediato. O Rafael levantara-se, mas, acto contínuo, sem conseguir aguentar a tensão nervosa, deixou-se cair de joelhos, chorando convulsivamente. A máscara de virilidade quebrou-se como por encanto. Num acto de quase instintiva descompressão, relatou os seus itinerários “profissionais” ... o seu modo de vida, os maus tratos que dava à mulher de quem tinha um filho pequeno, o que a Polícia já conhecia.
Perguntado sobre o que vira naquela noite, confirmou que tinha ficado muito admirado quando viu o Hernâni, correndo como se tivesse o diabo atrás dele, não tendo sequer respondido quando ele o interpelara para saber o que se tinha passado. Entretanto, o “Chefe”, alertado pela sinaléctica de um agente que sabia onde eu me encontrava, saiu do gabinete, dirigiu-se-me com ar contrito e justificou: “O Senhor Dr. desculpe, mas, se não lhe tivesse berrado, nunca mais saíamos daqui”. Censurei, como me cumpria, a atitude agressiva que presenciara. Embora não tendo havido violência física, tinha havido intimidação. Mas compreendi o que o Chefe – excelente polícia, experiente e intuitivo – queria dizer.
Restava a tarefa do enquadramento jurídico dos factos. O caso era extremamente interessante desse ponto de vista. Verdadeiro case study, podia mesmo ser apresentado como hipótese prática num exame escrito de Direito Penal. Não vou entrar em pormenores, que seriam fastidiosos. Estava obviamente afastada a hipótese de premeditação, tanto mais que, no Código Penal ao tempo em vigor, para que ela existisse, era necessária a persistência do “desígnio criminoso” durante um mínimo de 24 horas.
Também considerei excluída a intenção de matar, ou seja, o “dolo”. Ainda que tivesse querido derrubar Mr. Hood, não estava provado que a intenção do Hernâni fosse a de lhe causar a morte. Duas hipóteses se perfilavam então: ou a de homicídio culposo, em virtude da violação de deveres de cuidado, em acumulação com a omissão de auxílio – fuga a seguir à prática do acto; ou (preferível) a de “homicídio preterintencional” (“além da intenção”), a que corresponde hoje a “ofensa à integridade física agravada pelo resultado”.
Hernâni negou no Tribunal
O Hernâni veio a ser julgado no Tribunal da Comarca de Cascais, onde era Juiz um magistrado brilhante, jurista distinto, que eu viria a conhecer e a admirar alguns anos depois. Por sua vez, era ali Delegado do Procurador da República um Colega muito bem classificado, que, como eu, concluíra o seu curso em 1964, mas em Coimbra. Conhecemo-nos no decurso das investigações deste caso e viria a tornar-se um dos meus maiores amigos, tendo feito lado a lado grande parte das nossas carreiras.
Como eu previa, o Hernâni negou em Tribunal a autoria dos factos. Sei que os Magistrados chegaram a ter dúvidas, que depois ultrapassaram. Foi condenado a uma pena de quatro anos de prisão, que entendo ajustada ao que se passou. Mas, tantos anos decorridos, ainda penso no caso. E, de longe em longe, uma réstea de dúvida atravessa o meu espírito. Mas estou certo de tudo ter feito para a descoberta da verdade. Todos os cuidados tidos na confirmação da factualidade ocorrida deixaram-me de consciência tranquila, levando-me a entender que tudo se passou em conformidade com o que ficou a constar da acusação.
O que pensa o leitor, ou, como se diz no latim tão querido dos juristas, quid juris?
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9 comentários:
Isto só pode vir de quem vem , de um militar e , como toda a gente que eu conheci com carreira militar é assim, salvos raras
excepções . Estive e prestei funções de oficial miliciano antes do 25 de Abril no Continente e Ultramar e sei daquilo que falo.
Tenho curso superior , na altura não andava por lá perto , mas os oficias da academia eram por norma todos arrogantes
Luís Simões
Uma história real, muito bem escrita, com suspense, que nos deixou a quantos a lemos com ansiedade em ler os capítulos seguintes.
Só espero que o Dr. Garcia Marques nos possa presentear com mais histórias desta qualidade.
E que o faça sem grande demora.
Pela minha parte, parece-me que tudo foi feito para chegar à verdade.
Parabés ao Autor, ao Dr. Antunes Ferreira e ao blogue.
A propósito do comentário de "Portugalclub":
Isto é surrealista. O que é que eu e as minhas "histórias da PJ" têm que ver com a qualidade de "militar" ou com a arrogância dos "oficiais da academia"?
Haja juízo!
Quanto ao segundo comentário, cuja amabilidade agradeço:
O relato de outras histórias de "crime e mistério" no blogue depende do modo como forem recebidas, isto é, de agradarem ou não. Esse é o meu único barómetro. O termo de comparação será, para os leitores que se quiserem pronunciar, a hstória em três fascículos sobre o caso do Mr. Hood. Para mim foi um prazer voltar a recordá-la e a dar-lhe forma.
Sr Garcia Marques, cá ficamos à espera de outros bons escritos ...mesmo que em fasciculos!
Quanto ao comentário do "portugalclub" ... nao ligue a tais atoardas, é tempo perdido.
Viva Dr. Antunes Ferreira,
Interessantíssimo este seu blog.
É para ler com atenção, com o olho clínico de jurista. Por isso, talvez amanhã tenha tempo para me debruçar verdadeiramente sobre ele.
Um abraço e, de acordo com o repto que me lançou, aqui fica o meu contacto: 967944333.
Um abraço
Senhor Garcia Hitchkok Marques
Primeiro: Não ligue ao «Portugalclub». Um grupo inqualificável de fanáticos sem autoridade nem categoria. Outro tanto deve fazer o Senhor Antunes Ferreira que em boa hora criou este blog.
Segundo: isto é que são histórias, ainda por cima verdadeiras. Já sou sua fã ferranha. Estou ansiosamente à espera de outra, com continuados, se possível. Amentam a suspense. Muito e muito obrigado.
Venham mais estórias, caro Inspector. Aguardo-as cheia de vontade de as lar. A minha companheira Ana Maria pede-me para lhe dizer que também ela vibra com as aventuras verdadeiras.
Só um aditamento: vote ao despreso o portugalclub. O que é isso? Nada. Não ligue, passe adiante, peço-lhe.
Caríssimo Zé Augusto
O texto do sr. Luis Simões é para mim, naturalmente, não para ti. Ora bem: nem sou do QP, como muito bem sabes, e já passei à reforma, com o tempo de oficial miliciano a contar, cinco anos, cinco, que não renego, antes registo com muita saudade. Tudo nos termos da lei.
Por isso te peço para não ligares a coisas destas, aliás na sequência do que vários admiradores e, sobretudo, admiradoras das tuas excelentes prosas, aqui escreveram.
Fica o Travessa do Ferreira, ficam os leitores, ficam os teus admiradores, fico eu também, com toda a naturalidade, à espera de nova experiência vivida na PJ.
Recordo-me, aquando do trágico suicidio do meu irmão mais novo, o Ju, como lhe chamávamos em família, que fizeste tudo o que podias, já na qualidade de Subdirector da instituição, para que se averiguasse o que realmente acontecera, por forma a sossegar-me.
Nunca te poderei agradecer devidamente isso. A minha Amizade por ti, caldeada desde os últimos anos do Camões nas carteiras estudantis, nunca esmorecerá. Que sei retribuída. E à Admiração pelo teu brilhante percurso profissional, vem agora juntar-se a que me suscitam as tuas estórias vividas.
Por isso, aqui deixo testemunho de tudo isso. Acompanhado tão-só por um abração e um singelo muito obrigado.
Garcia Marques:
Como lhe disse. conseguiu criar um clima de suspense que, ao menos para mim, tornou irresistível conhecer o FINAL - acabei de ler e Gostei.
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