terça-feira, junho 05, 2007




Boca calada

Antunes Ferreira
Tentou levantar-se, mas caiu para o lado, como um saco de café desamparado. Fechou, de novo, os olhos castigados e passou a língua pelos lábios inchados, gretados e secos. O sabor adocicado do sangue não lhe tirava a sede. Estava acampado por todo o seu miserável corpo em crostas escuras que sobressaíam da cor da pele. Levara muita porrada, aiué.

No entanto, o filho da puta do inspector e os três flechas que o tinham massacrado não haviam tido o prazer de ouvi-lo cantar alguma coisa. Gritara, isso sim, um homem não é de pau. Mas conseguira calar-se, emudecer quanto às perguntas, acompanhadas de murros, pontapés, pauladas. Até lhe tinham ligado o coiso a uma ficha eléctrica, com um fio.

Aka, isso doeu mesmo. Foi um raio que ziguezagueou até ao esqueleto. A corrente eléctrica era danada. E ele sabia-o perfeitamente. Era mulato, mas também enfermeiro. Aliás, estudara em Lisboa, para onde viera com os pais, catraio vindo de Angola, trabalhara no Hospital de Santa Marta, o doutor Figueiredo até lhe dissera um dia – Malaquias, tens de ir para a Faculdade. Com o que já sabes e com o que lá aprenderes, vais sair um bom médico.

Não fora. O pai, viúvo da mãe Zeferina, também insistira com ele. Vai, Jorge, vai. Deixa-te dessas trampas da Casa dos Estudantes do Império e ganha o teu futuro. Sei que és homem para isso. Era. Mas, não ia. Podia aprender mais umas coisas no hospital, mas muitas mais na Casa. Com toda a malta porreira que o introduzia no Marx, no Lenine no Mao, que discutia dialéctica, que coleccionava cartazes do Che e do Comandante Fidel, colados pelas paredes.

Um dia veio a PIDE e fechou as instalações por ser um cóio de subversivos. Portugal que era uno e indivisível, do Minho a Timor, não podia permitir que um grupo de garotelhos conspirasse nas barbas da guardiã política do regime. Todos para o xelindró. Jorge Malaquias foi enrolado nos outros. Em Paço de Arcos, o quartel da Polícia Móvel, um tipo lingrinhas disse-lhe para se pôr na alheta. Se voltas cá, nem sabes o que te faço.

Uns quantos foram directamente para o Aljube. Decidiu ir visitá-los quando pudesse ser. Carlos Almiro Saraiva, da Camabatela, filho dum fazendeiro de café podre de rico, tentara dissuadi-lo. Olha lá, ó pá. Tu só te vais lixar com essa merda da visita. E para já, nem sabes quando a autorizam. Os chuis são uns javardos, toma cuidado.

O passeio da merda

O tanas! Tretas, Almiro, tretas. Mal possa, vou logo. Está-me mesmo a pular o pé para a dança. Eles precisam da nossa solidariedade, aquilo é um nojo, o pessoal não tem quaisquer condições, os nossos cagam e mijam em baldes que depois levam a despejar, com carcereiros a guarda-los. Mesmo assim, disse-me o Soares, é a única altura em que saem das celas. Chama-lhe o passeio da merda.

Acabara por não ir. De modo algum porque o de Camabatela o tinha alertado. Estava-se borrifando para a advertência. Conselhos nem do pai Malaquias, quanto mais do filho dum cabrão dum roceiro. O facto foi que, após umas galhetas a sério, a maior parte dos detidos saiu para a rua e os poucos que ficaram ala para Peniche, onde não havia visitas para ninguém.

Quando voltou ao hospital, a Lena com quem saía há uns tempos, loira de Moimenta da Beira, de onde viera catraia, ainda falava de quando em vez axim, disse-lhe que o Dr. Figueiredo andara à procura dele e soubera umas coisas. Queria falar-lhe. Jorginho, vê lá no que te metes, amorzinho. Calminha jéjé. A sorte não é eterna, bem pelo contrário. E eu quero-te para voltarmos às nossas noites «de serviço».

A Madalena era auxiliar de radiologia, tinha umas pernas de sonho e umas mamas de alto lá com o charuto. Os biquinhos, tesíssimos, eram de um vermelho escuro, mais carregado do que a pele de ele. Ela, pelo contrário era muito branca, só os mamilos, as axilas e a cova do amor coloriam o alabastro acetinado em que ela fora esculpida. Mas, sardenta, clara.


Na cama, era uma perdição. Ele, que se julgava uma autoridade na matéria e andara a rapar atrás dela, quando se viu nu agarrado a tudo o que ela, nuinha também, tinha, decidira ensina-la, instrui-la nas práticas do amor. Falsa partida, pois ficara-se nas boxes. De imediato quem conduzira fora Lena, artista, malabarista, contorcionista .

Aluno obediente e esforçado, Malaquias nem queria acreditar que tal tivesse acontecido. Um hospital, que de certo modo se pode considerar um espaço concentracionário, era o local ideal para se saber tudo. Quando fora falar com o médico, os assistentes dele, os internos estagiários, os enfermeiros segredavam apontando-o entre sorrisos e insinuações. Sortudo. Com uma gaja daquelas...

Eu bem te avisei

Albano Figueiredo, especialista em ortopedia, com o eterno estetoscópio ao pescoço, não fora de modas. Eu bem te avisei. Da Lena? Perguntara Jorge entre o acanhado e o satisfeito. Deixa-te de fitas. Sabes bem que não. Da ramboia da politiquice. Quando devias andar a tirar o canudo, vais-te meter com malta de má fama, para estes gajos que estão no poder. Penso que nem são, apenas idealistas, mas para o caso tanto faz. Para os pides – são uma cambada de comunas. Juízo, caraças, juizinho.

Estava farto de admoestações. Lisboa, a partir de então, já era. Cidade bonita, gente gira, os eléctricos para o Carmo, os passeios empedrados, a ponte que levava o nome do abutre agoirento. Porque era assim que já tratava o malandro de São Bento. Mas que passara a não lhe dizer nada, ele que se considerava alfacinha quanto mais não fosse adoptivo. Ou melhor, adoptado.

Os navios da Colonial e da Nacional andavam transportando tropas. Para Angola, rapidamente e em força, bramara o fradalhão de Santa Comba. Arranjou de enfermeiro no Uige. Cunha do pai Saraiva, para isso eram os amigos dos amigalhaços. A escada de portaló foi o início da aventura, no porto de Luanda.

Em seguida a Marginal espreguiçando-se na baía. Uns dias depois, poucos, entrava na base do MPLA, seu destino final. A malta da Casa dos Estudantes era organizada, não eram em vão as ligações com o PC. Nem queria acreditar na facilidade com que tudo decorrera. Na cabina do camião Dodge, ao lado do Raul camionista, até tinham discutido o Benfica e o Eusébio, que já não era o que fora, quando em 1966 encantara os bifes, mas que ainda ia à selecção.

Na fazenda Maria Fernanda, tal como estava marcado, afastou-se para urinar e – até depois que se faz tarde, adeus minhas encomendas. Foi uma enorme mijadela. Começara então uma nova vida para Jorge Malaquias. Esteve no acampamento uns quantos meses, como enfermeiro e a fazer de médico, do médico que não havia. Mas, a dada altura, não aguentou mais aquela sacana de nova situação confinada.

Disse que queria ir para a guerrilha, na mata, nas picadas, onde quer que fosse. Até em Luanda, sendo caso disso. O comandante Trovão no Escuro, ainda que lamentando a falta que faria na base, os camaradas já se tinham habituado a ele, às suas resoquinas, aos seus adesivos, à sua tintura, ao seu mercurocromo, aceitou. Perdia um homem que dava, assim, a sensação de que lhes cobria a retaguarda. Mas ganhava um combatente.

Mulato Vermelho

E que combatente, diziam os outros. Corajoso, destemido, sabedor, e ao mesmo tempo cauteloso, prudente, excelente analista de situações difíceis, planeador e comandante. Em breve era o melhor da zona, ganhou de golpe a qualificação, chefiou, naturalmente. E os êxitos foram-se sucedendo, aumentando, até chegar a mito. Mulato Vermelho. Só.

A carne é e será sempre… carne. No quimbo ali mesmo ao lado encontrara uma menina de 16 anos, gazela de pernas esguias mas cheias e seios pontiagudos, a Rosinha. Coisa daquelas teria levado um santo – se é que eles existissem – a sair do altar para ir deitar-se com ela. Ao longe, muito longe, cada vez mais longe, a Lena ia-se dissolvendo, liquefazendo, reintegrando-se no plasma universal do esquecimento.

Até já combinara o alambamento a dar ao futuro sogro, de resto o soba do povo, duas cabras, três mantas coloridas, uma bicicleta e uns óculos escuros. Estava tudo bem. Para concretizar a combina tivera de ir a Luanda. Nada de receios parvos. Ninguém o conhecia na capital. Passara, apenas, por lá. E estava informado que nas Ingombotas poderia comprar quase tudo, excepto obviamente as cabras, o que se resolveria na mata.

Na primeira noite luandense, decidira aproveitar a viagem para dar um salto ao Miramar, ver a Revolta na Bounty, com o Marlon Brando. No intervalo, quando as luzes se acenderam, duas mãos pesadas caíram-lhe nos ombros. Ainda tentou levantar-se, opor resistência. Quieto, cão. Mexe um dedinho do pé dentro da bota e enfio-te um tiro nos cornos.

Quem fora o bufo?

Na PIDE, ali ao pé da Meteorologia, tentara fingir que não era nada com ele, tratava-se de um engano, talvez alguém parecido com ele, chipala igualzinha. Seu safado, julgas que nos comes por parvos? Denunciaram-te, apanhámos-te, estás fodido e mal pago. Nem sabes no que te meteste. E agora, deita cá para fora tudo. Tudinho!

O inspector, limpando o ouvido com uma unha comprida e escura, em tons de tabaco e cerume, gozava. Ouve lá, o filho dum cabrão, sabes qual é a diferença entre um branco, um preto e um mulato? És mesmo matumbo, não sabes. O branco é filho de deus; o preto é filho do diabo… e o mulato é filho da puta. Gargalharam. Vá, já chega de recreio. Vomita!

Medo tinha. Muito. Mas vomitar, não. Pelo contrário; engolira o cagaço e fechara a boca, transformada numa linha dura colada a Pattex, dali não saía nada. Falas? Pela última vez – falas? Nós sabemos tudo. Só queremos confirmar. Abres as goelas e cantas meu seripipi do caralho. Senão, cortamos-te as ditas goelas. Mas, antes, arrancamos-te os colhões, ficas capado, lá tem a Rosinha que fazer umas pívias, antes de te pôr os cornos.

Fora tudo muito arrastado, muitíssimo lento, para que o «tratamento» fizesse efeito, os flechas eram especialistas. Porrada atrás de porrada, os olhos iam-se enevoando, o chão a fugir-lhe debaixo dos pés. Mato-te, avançava o chefão, que usava a mesma unha encardida para palitar os dentes. Matamos-te como um cachorro, que é o que mereces.

Horas a fio seguiu aquele tormento. Amanhã há mais, melro. Não perdes pela demora. E as pústulas e as nódoas negras e as dores malditas até na piça. Quem teria sido o bufo? No Puto, os métodos eram iguais. Todos da mesma escola. Mas jurou para si próprio que não diria nem um milímetro. Nem que lhe arrancassem o coração pelas costas como fizera o Dom Pedro aos assassinos da Inês. O Cru.

6 comentários:

Anónimo disse...

Antunes Ferreira no seu melhor. Estas histórias da guerra colonial são imperdíveis e incontornáveis. Tal como há dias escrevia o Conselheiro Garcia Marques, é urgente que sejam publicadas em livro. Que será um best-seller, tenho a certeza.

Anónimo disse...

Ora aqui está o que os Americanos chamam de short story - que adoram. Eu, vindo pela primeira vez a este blog, por via de amigos que mo recomendaram (e ainda bem!)fiquei d e s l u m b r a d o !

O Senhor Antunes Ferreira é um escritor de mão cheia. Do melhor que tenho lido. Já tem livros publicados, por certo. Gostava de o saber, para os poder comprar e ler.

Muito obrigado pelos momentos excelentes que me proporcionou.

Anónimo disse...

Muito bom. Que venha o «tal» livro. E mais não digo.

Anónimo disse...

Seu bandido! Isso é que é ser português! Inventar (ou contar, quem sabe?) histórias dos turras que nos combateram para depois dar com Angola de pantanas. E com as outras Províncias Ultramarinas, e diz que foi Oficial miliciano. Assim se conhecem os malandros!

Anónimo disse...

Estou totalmente de acordo com o XPTO! Este AF devia levar das boas! Traidor miserável! Palhaço!Um destes dias ainda te partem os cornos, madraço!

Anónimo disse...

Muitas vezes não pensamos, mas temos que fazê-lo: os situacionistas da outra senhora não desapareceram por um passe do Luis de Matos. Muitos ainda andam por aí... E há novos; neonazis e neofascistas há por toda a parte, porque motivo não haveriam por cá?

Por isso, passe à frente, Antunes Ferreira. Despreze-os e continuie a escrever estas maravilhosas histórias de uma guerra que fomos obrigados a lutar, eu também em Moçambique.

Venham, portanto, mais e muito obrigado