sexta-feira, julho 20, 2007
HISTÓRIAS DA PJ
Aconteceu no Natal ...
José Augusto Garcia Marques
Era emigrante em França há cerca de 12 anos. Trabalhava, como operário especializado, numa fábrica de automóveis, em Orléans. Saíra, já com trinta anos, da sua Beira Alta natal, na segunda metade da década de cinquenta, em busca de melhor viver. Alguns anos depois, com um pé de meia razoável, o António decidiu tirar férias para arranjar companheira, de preferência no torrão que foi o seu berço.
Afinal, veio a encontrar a Sílvia na zona de Sintra, mais concretamente na Praia das Maçãs, de onde ela era natural. Mais nova do que ele uns bons doze anos, era uma estampa de mulher – alta, com belas formas, clara de pele e de cabelo alourado. Até parecia uma francesa! Namoraram com o recato próprio dos tempos – estava-se no começo dos anos sessenta, Portugal embarcava para Angola “rapidamente e em força” e vivia com alguma angústia o começo da guerra de África.A Sílvia foi conhecer a família e a terra do António – uma das mais modestas aldeias do concelho de Almeida, chamada Malpartida.
Ficaram noivos e decidiram que o casamento seria no Verão de ano seguinte, na terra do noivo. Assim foi. O António já tinha trinta e seis anos, a Sílvia apenas vinte e quatro. As fotografias do casamento mostram um par feliz – ele, moreno e radiante, vaidoso da beleza da sua jovem mulher. Todavia, na pobreza de Malpartida, a figura vistosa da Sílvia e o seu ar de Senhora não caíram bem entre os convidados em geral e, em especial, junto das irmãs e cunhadas do noivo. O inverso também terá sido verdade. Aquelas mulheres escuras, pequenas e precocemente envelhecidas, com ar de permanente sofrimento, desagradavam ao temperamento extrovertido e alegre da noiva. Passava o ano de 1963.
Com grande desgosto do marido, a Sílvia não se adaptou à vida em França. Faltava-lhe o Sol! Como, entretanto, engravidou, decidiram que ela viria para Portugal, ficando a viver em casa dos pais até que tivessem condições para comprar uma moradia, ou, ao menos, um terreno para construir a vivenda, com jardim ou, até, com quintal. Entretanto, nasceu o Daniel, filho único do casal, o qual, com dois anos de idade, foi viver para a moradia que os pais entretanto compraram num lugar perto de Torres Vedras.
Vir a Portugal
O António continuava a vir a Portugal, todos os anos, no mês de Agosto e, em regra, de dois em dois anos, pela época do Natal. Quando não podia vir passar o Natal com a Família, era a Sílvia que costumava deslocar-se à França, mas não se demorava por lá mais do que dez ou quinze dias, argumentando que não convinha que o Daniel, ainda muito pequeno, passasse muito tempo sem a presença da Mãe.
Com desgosto para os seus pais e irmãos, o António passou a aplicar as economias do seu trabalho de emigrante na região onde tinha a casa de habitação. As deslocações a Malpartida foram mesmo rareando, uma vez que preferia passar as férias entre Torres Vedras e as praias mais próximas – Praia de Santa Cruz, Ericeira, Magoito, Azenhas do Mar, Praia das Maçãs, Praia Grande, Adraga ...Para a família do António, a culpada era só uma – a estranha que lhes roubara o António, que se recusava a acompanhar o marido, como lhe cumpria - sabia Deus por que razão ...- e que o afastava daqueles junto de quem nascera.
A carta anónima
Perto do fim do mês de Novembro de 1969, o António recebeu uma carta anónima, remetida de Leiria, que o preocupou muito. Nela se dizia que a Sílvia lhe era infiel e era aconselhado a vir a Portugal com urgência. Para “defesa da sua honra”, concluía-se. Não estava previsto que, nesse ano, viesse passar o Natal junto dos seus. Todavia, a carta fê-lo mudar de ideias. De qualquer modo, era uma forma de poder estar alguns dias com o filho. Decidiu nada dizer e, obtida a anuência dos patrões, partiu de automóvel para Portugal logo nos primeiros dias de Dezembro.
Entrou por Vilar Formoso e dirigiu-se logo a Malpartida, distante não mais de 20 quilómetros da fronteira. Ali passou, com os Pais, Irmãos e Sobrinhos, cerca de uma semana: pôs a conversa em dia, visitou amigos e conhecidos, deu notícias acerca da sua recente promoção, falou dos projectos de reforma e passeou pelos campos da sua infância.
Surpreendentemente, antes de partir, “fechou” o negócio de compra de uma garagem em Almeida, com papel escrito e assinado, servindo como contrato promessa. De acordo com uma das cláusulas, e como contrapartida do sinal por si deixado, o filho da sua Irmã mais velha, que enviuvara recentemente, passava a trabalhar na garagem como mecânico aprendiz. Prometeu que, no regresso, voltaria a passar pela sua terra e reforçaria então o sinal da garagem. Até talvez comprasse uma vinha na Vermiosa, freguesia a meia dúzia de quilómetros de Malpartida, com terras barrentas e xistosas, boas para a cultura do vinho. Partiu então para o Sul.
A sua chegada a casa constituiu motivo de forte surpresa. A mulher já estava intrigada, por não obter resposta telefónica. Censurou-o asperamente e ficou incomodada quando soube do desvio que fizera por aquelas terras “danadas” em que nascera, que ficam “lá por trás das pedras”, e “onde só se vai de propósito”. Aparentemente, o marido terá omitido a Sílvia o negócio da garagem.
Todavia, as surpresas não se ficavam por aqui ... Na verdade, para estupefacção geral, o António revelou a intenção de levar consigo para França, logo no fim das férias do Natal, a mulher e o filho. A oposição da Sílvia foi imediata e veemente, tendo-se seguido uma discussão muito viva, com ameaças de abandono do lar por parte da mulher. O António quis saber a razão daquela obstinação, que levava a Sílvia ao incumprimento de um dever fundamental por parte dos cônjuges. A resposta era sempre a mesma: ela não gostava da França, o Daniel era muito pequeno e os pais precisavam dela perto deles.
Perante aquela recusa, o António decidiu então que, com excepção da casa morada de família, iria vender todas as propriedades que adquirira na região, começando pelos prédios rústicos. O regime de bens do casal – separação absoluta de bens – permitia-lhe fazer isso, sem necessidade de consentimento da mulher, uma vez que os prédios eram exclusivamente seus. E, se bem o disse, melhor o fez. Deu publicidade à intenção de vender, identificou as propriedades e fixou o preço da respectiva venda. Preços genericamente tidos como muito acessíveis para quem estivesse interessado.
Alguns dias depois, ficou apalavrada a venda de dois prédios rústicos, que estavam de renda, sendo compradores os respectivos rendeiros. Estava-se perto do dia de Natal. O negócio ficou fechado por volta das quatro horas da tarde, à mesa de um restaurante, próximo de Torres Vedras, a cerca de três ou quatro quilómetros da casa do António.
Assassinado
Cerca de duas horas depois, o corpo do António era descoberto sem vida perto da berma de uma estrada de terra batida, crivado de facadas, com golpes visíveis nos braços, no tronco, abdómen e pescoço.
Não se descobriram no local as armas brancas utilizadas na prática do crime. Uma pedra ensanguentada e com cabelos colados estava caída perto do corpo. A bicicleta em que o emigrante se transportava também jazia, toda retorcida, por ali perto. O António não tinha dinheiro consigo. Por se tratar de homicídio praticado por desconhecido(s), a GNR de Torres Vedras pediu a intervenção da PJ, detentora da competência exclusiva para a investigação do caso. Distribuído o processo à minha Secção, partimos de imediato para o local do crime.
(continua)
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4 comentários:
Já me sentei... espero que chegue rápido à cena do crime e que o pessoal da sua secçao seja rápido na dactilografia para que esse ralatório salte cá para fora!
Exmo. Senhor
José Augusto Garcia Marques
Um destes dias terá de partilhar com os leitores da Travessa onde aprendeu a mestria do suspense. Fique sabendo que já li alguns policiais na minha vida, mas o senhor tira-me do sério! Desculpe a expressão.. mas é isso mesmo. Sou mãe de família, também trabalho fora e não posso vir à Travessa sempre que quero. Tenha pena e siga a crónica. Rápido, senão faço queixinhas ao Chefe Antunes Ferreira.
Uma sua fã do Barreiro
AS
Venha o continuado, Conselheiro. Um destes dias, quando for a Lisboa, hei-de fazer por conhecê-lo pessoalmente. Muito bem.
Boa, Dr. Garcia Marques! Já estou à espera da continuação, e não me faça sofrer mais. Melhor diria: não NOS faça sofrer mais.
Outra coisa: creio que a Maria Lúcia Garcia Marques é da sua família. Pelo menos o apelido. Felicite-a. Também gosto muito do que escreve.
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