domingo, janeiro 28, 2007




À VOLTA DO ANO

Janeiro

Maria Lúcia Garcia Marques
J
aneiro é lã e neve. No meu hemisfério, claro.

Lã daquela forte, honesta, natural. Lã poveira das camisolas dos pescadores, dos nossos homens de Vila do Conde, da barra de Aveiro, que vão morrer no mar a 20 metros da praia porque somos um desespero de um povo que só acorda com a enchente e com o braseiro e não sabe prever – nem suster – estas cóleras de Janeiro. Mas lã também que borda, gentil, fantasias trazidas nos desenhos de outras terras: um Oriente traduzido, em quente, nos tapetes de Arraiolos. Que povo tão pródigo somos que bordamos todo esse luxo para pôr aos pés! E as mulheres tecedeiras, e as mulheres bordadeiras, ponteando as cores macias ou profundas, as barras densas de flores e volutas, as aves suspensas, as simetrias, os realces e os matizes em fundos propícios, enchendo os olhos e os espaços de festa e aconchego.

Janeiro ...

Janeiro é neve. Também. Algures, que não no meu horizonte, que nunca vi nevar. Nevar neve como a dos invernos de Bruegel: imensas e profundas paisagens, pontuadas de figuras curvadas sob o peso de um frio que nos entra pelos olhos e nos deixa uma sensação de luto – luto branco, descarnado sentimento do trágico da vida. Talvez que haja aqui muito da memória que me vem (nos vem a todos, creio) da “Balada da Neve”, decorada na infância, ouvida depois glosada, a todos os propósitos, mas que ainda diz, na crueza da sua simplicidade: “mas as crianças, Senhor / porque lhes dais tanta dor, porque padecem assim?” Porque Janeiro é assim, duro e dúplice: do frio dos sem-abrigo aos jogos e luxos da neve dos ricos. Da paz imaculada dos campos à perfídia nocturna dos lobos descendo os caminhos da fome ao cheiro dos povoados.

Porque Janeiro é assim – fechado e sisudo, tempo de interiores e sabores seguros. Como a sopa, uma boa “sopa da pedra” bem quente e farta, familiar e antiga como a lenda.

Janeiro pode ser tempo de solidões confortáveis acompanhadas a chocolate, licor de tangerina, aguardente de medronho e frutos secos – televisão sem som à laia de lareira, manta nas pernas e um livro a gosto – tudo segundo e conforme os momentos e as inspirações.

Os silêncios de Janeiro pedem música de Brahms, ou uma ária de Verdi (porque não a de Filipe II no “Dom Carlo”, na desgarrada solidão do seu poder e do seu amor enjeitado – “amor per me no a ...”?) Talvez o “Romeu e Julieta” de Prokofiev, talvez a “Valsa triste” de Sibelius ...

Quando eu escrevia poemas de amor, lembro-me de um que se chamava Janeiro e que acabava mais ou menos assim:

[...] no inverno, o ritual da secreta germinação
a voz que hiberna
(porque paro no frio
e me comovo com um colo nu
ou uma fonte ao vento?)
mas subitamente o teu riso
é uma faiança antiga
um perdão intacto
e janeiro nele
uma amêndoa brava.

N R - Sim senhores: a Maria Lúcia começa aqui um texto que pretende que seja regular, mês após mês. Pretende ela e muito justamente - e exijo-o eu. Sem imposição - só persuasão... - muito menos látego (note-se que estou a ler as Memórias do meu grande Amigo Edmundo Pedro, obra acabada de sair e que, no I Volume, vai até à sua permanência de quase dez anos no «campo da morte lenta», o Tarrafal)... Longe vá a ideia negativa, absurda e abstrusa. Lagarto, lagarto, lagarto.

Cada vez mais sinto que este blog vai cumprindo, às vezes com dificuldades penosas, aquilopara o que o criei: um espaço de convívio, de colaboraão, de fraternidade, de solidariedade, em resumo, de Amizade compartilhada. Outros mais se nos irão juntando, penso e desejo. Por isso, o À VOLTA DO ANO tem de ser saudado calorosamente. Muitíssimo obrigadérrimo, Maria Lúcia. A.F.

2 comentários:

Anónimo disse...

Já tive a oportunidade de aqui escrever que a Maria Lúcia Garcia Marques escreve muito bem.
Registo com muito agrado que ela nos faça chegar todos os meses, pelo menos, um texto. Por mim, agradeço-lho, bem como ao Antunes Ferreira que em boa hora criou este blog. Não os conheço pessoalmente - mas reconheço que são dois valores da nossa língua, por vezes sujeita a complicações como é o caso do sinistro TLEBS.
Os meus melhores cumprimentos

Anónimo disse...

Também gostei muito do texto da D. Maria Lúcia. Seria interessante conhecer alguns dados biográficos desta Senhora escritora - formação de base, livros eventualmente publicados, idade, se fosse possível.
Fico à espera do comentário a respeito dos restantes meses. Com muito interesse.