Crónica vibranteO Ricardo Charters de Azevedo é boa praça. Não bastava já que fossemos amigos há mais de seis séculos, mais ano, menos ano, desde que nos conhecemos no nosso Lyceu Camões, que brincássemos com os primos deles, os Câmara de Oliveira, meus vizinhos no Restelo e também escravos do reitor Sérvulo Correia, e fomos reencontrar-nos por mor das Europas.
O (bom) malandro foi nomeado (e com todo o mérito) Representante da União Europeia em Lisboa, depois de um singular, por excelente, percurso na instituição. Herdou funções de um outro amigo, o goês António Menezes. E aqui serviu durante, nomeadamente, o processo do euro. No qual também participei, pois fui encarregado da Comunicação da Comissão Euro do Ministério das Finanças e, depois, da Comissão Nacional que aglutinou as duas, a das Finanças e a da Economia.
Isso levou a que tivéssemos tido muito que fazer em comum. A Amizade, mais do que qualquer outra componente, marcou sempre presença notória nas relações profissionais que tivemos durante três anos e picos. A velha cumplicidade dos bancos liceais voltou. Ricardo, porém, fez mais. Durante os cinco longos anos em que, logo a seguir, me embrulhei sobre mim próprio com uma maldita depressão bipolar, ele acompanhou-me na medida do possível. Os Amigos com caixa alta são assim.
É óbvio que não esteve à minha cabeceira, nem o podia fazer. Para isso estavam minha mulher Raquel, meus filhos, minhas noras, meus netos e mais alguns familiares e uns quantos Amigos. Um exemplo: a Bebé. Isto é a Maria Gabriel Abrantes, que marcou nesse dramático período uma porrada de golos no desafio da mesma Amizade, que ela ganhou – e de que maneira. Mas, embora de longe, o Ricardo acompanhou cuidadosamente a teia emaranhada em que me debatia.
Agora, continuamos cúmplices. Nas auto-estradas informáticas, então, é um vê-se-te-avias. Somos correspondentes de correio electrónico multi-quotidiano. A mim enche-me de prazer esta epistolografia computadorizada; a ele, penso que também. Penso, uma ova; tenho a certeza. Diz lá que não, companheiro – se fores capaz.
Mandou-me um texto notável que de seguida publico sem cuidar do copyright. Que se lixe. Com umas linhas introdutórias que não resisto a registar. Diz o caro marmanjo:
«Arnaldo Jabor é, para mim, uma das figuras mais interessantes do Brasil, nestes tempos que correm. Escreve umas crónicas semanais. É grande responsável pela manutenção de alguma lucidez. Minha e de muito boa gente, penso eu!».
Posto isto, registados os factos e documentados notória e notarialmente, dou minha fé de que o excelente pedaço de prosa que se segue mantém a grafia original para que o saboroso da língua portuguesa do Brasil não se perca. Já chega de parlapié. Segue-se o naco de escrita – magnífico.
A.F.
O consoladorArnaldo JaborUm dos sintomas do mundo louco é a masturbação. Sim, não me refiro à mera
punhetinha, à mera
coça na miúda, ao mero
estrangulamento de peles vermelhas, ou a doces
siriricas, românticos delíquios,
orgasminhos secretos de mulheres; refiro-me à solidão social reinante, que provoca a solidão sexual, mesmo dentro da permissividade total de hoje. Em meio a tanta liberdade, nunca fomos tão sozinhos. Tínhamos os pecados, tínhamos as proibições que perfumavam os prazeres deliciosos mas, hoje, com a crise do amor romântico, com tudo permitido, ao sexo foi designada a função de substituir frustrações políticas e sociais.
Eu pensava essas coisas graves, quando subitamente me surge uma serpente na TV: um reluzente e enorme vibrador! Sim, um pênis artificial que uma mulher exibia, elogiando os benefícios da masturbação contemporânea. Ela louvava com orgulho o chamado
dildo manejando-o com naturalidade e destreza, enquanto o inquietante objeto fálico ronronava como um gatinho angora. No dia seguinte, vejo no
Saiajusta um fino debate sobre as vantagens do bom e velho
ÍNgomsolator Tabajara. Aí, me bateu a verdade inapelável: o vibrador explica a solidão em que vivemos, no amor, na política, nas artes.
O pré-víbrador foi inventado na pré-história; há-os até de pedra, pênis artificiais
flintstones e, no início do século 20, foi recomendado no tratamento das histéricas frígidas. Tinha o romântico nome de consolador, ou seja, um consolo para damas solitárias, uma nostalgia, uma saudade. Hoje, não. Hoje o pênis natural é que ficou no banco de reservas. Hoje o
dildo não consola ninguém; veio para afirmar, para nos substituir e nos deixar a nós desconsolados. Nos tipos de vibradores, há um retrato de nosso mundo imaginário: há os em forma de coelhinhos infantis, há os negros de ébano, imensos, evocando a África profunda, há os árabes, terroristas, há os imperialistas, americanos, há os autoritários, ibéricos.
Com a inseminação artificial e os
dildos, cria-se uma civilização de abelhas sem zangões. E não há uma contrapartida do consolador para homens. As tais mulheres de plástico (como vi anunciadas numa revista, com o genial slogan:
She needs no food nor stupid conversation) não resolvem. É muito sinistro aquela pobre boneca sendo estuprada no silêncio da ignomínia. A mulher de borracha é uma metáfora analógica; já o vibrador é uma metonímia digital — a parte pelo todo. A mulher de borracha nos angustia com sua presença incómoda; ela nos inquieta, mesmo esvaziada no fundo do armário, como uma ocultação de cadáver. O pênis digital não; ele tem vida própria não tem inconsciente, não tem desejos e manias.
O consolador é uma coisa em si, já o homem é para si, cheio de projetos, opiniões. Ele não é um pedaço, está inteiro; o homem é que foi amputado dele.
O consolador não perua (com trocadilho,
please); ele é um amante dedicado, sempre pronto para satisfazer sua dama.
O consolador é uma fantasia feminina de auto-suficiência, mas é também um velho sonho masculino: ser livre e solto como um pênis voador, sem inibições, comendo todo mundo numa boa, voando, irresponsável, o velho sonho do
passaralho, capaz de proezas infinitas. Os homens gostariam de ter a autonomia de voo do vibrador, seus movimentos giratórios, sua beleza aerodinâmica. Vamos assumir logo: temos inveja e ciúmes do vibrador. Se uma mulher põe um vibrador na cama com o parceiro, isso pode provocar uma crise: "Ele é melhor que eu, quem você prefere?"
Um vibrador pode provocar
broxadas irreversíveis; um vibrador pode gerar terríveis discussões de relação (DR's), a que ele assistirá impassível, ali, na cama, como um juiz da Vara de Família (com trocadilho).
O vibrador parece uma arma. Está pronto para entrar, aonde? Ele não recusa portas, pode estar na mulher ou no homem e, por isso, é angustiante. Ele pode desencaminhar machos, principalmente nesta era GLS, de oscilações entre homo e hetero.
Vejam o sucesso crescente do fio terra...(quem não conhece a expressão, informe-se ou se toque — com trocadilho...)
Mas, o vibrador não é um objeto cotidiano, que possa ficar à vista de todos, ali, como um bibelô, um telefone (se bem que os há nesse formato). Onde guardá-los? Nas gavetas e desvãos, encafuados e ocultos, sentem-se de longe as vibrações dos vibradores. Eles estão ali como uma bomba-relógio. Além do mais, o que dizer aos filhos que perguntarem: "Mãeêê...posso brincar com esse
minhocão preto aqui? Legal! Essa piroquinhã anda sozinha!..
Eu fui educado para achar que as mulheres eram românticas, apenas uma conseqüência do desejo masculino. Hoje, a mulher pega, mata e come machos constrangidos e inseguros, perplexos diante de tanta liberdade. Ficaram mais fálicas que qualquer um de nós. Quem pode competir com seus parceiros portáteis? Elas estão numa
falicidade (com
a mesmo) vingativa quase, recuperando séculos de submissão. E o vibrador é sua espada para nos castrar num espelho.
A tecnologia não tem volta. Assim, jamais vamos restaurar um romantismo simbiótico entre sexos analógicos. Talvez inventem vibradores com alma, o inverso de homens maquinicos: vibradores em crise, em dúvida, vibradores que discutam a relação, que tenham de ser estimulados aos poucos, que precisem de preliminares, que podem até
broxar, humanizados como nós. Na progressiva desumanização do sexo, os corpos estão apenas virando lugares onde se expressará o prazer das máquinas, seremos apenas o campo de provas da eficiência técnica das coisas. Quanto maior o orgasmo, mais caro o equipamento.
Dirão os vendedores: "Faz um
test drive com esse bofe(machão) aí..." Com o tempo, seremos apenas uma lembrança, uma nostalgia" romântica, uma fantasia erótica evocada em meio a orgias tecnológicas e sem alma.