sábado, março 01, 2008






HISTÓRIAS DA PJ


Aconteceu

na Primavera marcelista

(conclusão)


José Augusto Garcia Marques


O Dr. Rui Oliveira era um homem sisudo, com pouco mais de trinta anos, alto e muito magro, com um rosto comprido, de olhos cinzentos e maçãs de rosto salientes. Era o tipo acabado do homem duro, determinado, lutador. Era um defensor de causas. Prático no vestir, tinha todo o aspecto de um intelectual dos finais dos anos sessenta. Vim a saber muito mais tarde que era irmão de um oficial da Marinha que eu havia conhecido em Angola, com o qual tinha, aliás, semelhanças fisionómicas, sendo, porém, bem mais alto.

Tive a oportunidade de constatar o estado em que ficou a cara do médico, em consequência das agressões que sofreu.
Toda a zona por debaixo dos olhos, incluindo as maçãs do rosto, encontrava-se, quando o vi pela primeira vez, negra-arroxeada, em virtude das hemorragias causadas pelas pancadas que lhe foram aplicadas. Porque foi assim que ele foi agredido – à coronhada, ao soco e a pontapé.

Para uma adequada identificação dos agressores, convoquei todos os legionários que, no dia da ocorrência dos factos, tinham passado pelo Quartel do Rato
, os quais se deslocaram à sede da PJ, para uma diligência de reconhecimento.

Eram cerca de uma dúzia, e foi-lhes ordenado que se colocassem em fila, num dos gabinetes da brigada do Chefe Daniel, ficando numa extremidade, um pouco à frente, o respectivo Comandante – cuja cabeça pequena e cara de adolescente destoavam no cimo de um corpanzil flácido e mal equilibrado.

A generalidade dos legionários era constituída por arruaceiros de terceira categoria, e alguns deles apresentavam-se fardados. O facto de se encontrarem em grupo e de estarem habituados a praticar desmandos e provocações que ficavam impunes dava-lhes uma sensação de à vontade, própria de quem julga que “está em casa”. Estavam relaxados, trocando sorrisos e graçolas. Pensavam estar na iminência de participar numa mera formalidade, sem consequências.


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médico, homem muito frio e dotado de grande auto-domínio, passou em frente da fila, encarando cada um dos legionários cuidadosa e demoradamente, olhos nos olhos, e identificando aqueles que o tinham agredido ou os que, não o tendo feito, se recordava de ter visto no Quartel da Legião. Quando tinha dúvidas, dizia não estar seguro na respectiva identificação. (
Este estava lá e agrediu-me; deste não me lembro; este andava por lá mas não foi um dos agressores; este insultou-me e agrediu-me; este bateu-me com os punhos e com a coronha da G3; e assim sucessivamente até chegar ao comandante de quem disse que entrava e saía da sala).

Em dado momento, principiou a gerar-se e a crescer um burburinho de indignação por parte dos identificandos. Começou em surdina, mas rapidamente as vozes se tornaram audíveis. Visavam, já não o médico, mas a própria PJ, e, mais em concreto, a minha pessoa e a dos agentes que estavam presentes na identificação. Às tantas, ouvi dizer, com intenções nitidamente provocatórias: “agora quem manda já são os comunistas”.

Entendi, para evitar males maiores, apelar à autoridade e ao sentido de chefia do Comandante, a quem me dirigi com aspereza e em tom de comando. Disse-lhe que ou ele era capaz de impor a compostura e a disciplina, ou eu me via obrigado a tomar as medidas que a lei me proporcionava para agir contra desordeiros e insubordinados.

Não sei se por receio de que eu pudesse ordenar alguma detenção, se em virtude da postura militar com que fiz a exortação ou se por espírito de corpo para com a Legião Portuguesa (que ali representavam), o certo é que o apelo surtiu efeito. Metido em brios, o Comandante resolveu impor-se e, em face das suas ordens, os homens mudaram de atitude, tendo passado a comportar-se com o correcção devida às circunstâncias.

Entre os presentes havia indivíduos de muito baixo nível social ou com manifesta falta de capacidade de discernimento, a par de outros, recrutados entre veteranos da guerra colonial.
Lembro-me de um deles, figura conhecida da noite de Lisboa - e adepto ferrenho do Sporting -, que era um dos mais barulhentos e incorrectos. Procedia assim em grupo, porque, como tive a oportunidade de constatar mais tarde, numa diferente investigação, quando interrogado sozinho, transformava-se num autêntico cordeiro. Penso ter subido muitos degraus na escala da sua consideração quando alguém o informou de que eu era adepto do Sporting e que também tinha passado dois anos na guerra de África.

Na sequência da sessão de reconhecimento e de outras diligências realizadas, foi-nos possível identificar a maior parte dos autores do assalto à sede da CDE e das agressões na pessoa do médico Rui Oliveira. Entretanto, antes de terminar a minha comissão de serviço na PJ, o que aconteceu em meados de 1970, pus os meus directores ao corrente das conclusões das investigações nos processos em referência.

Foi-me então perguntado se os factos provados não se limitavam a simples “bagatelas penais” - ofensas corporais ligeiras, injúrias e simples danos? Confesso que a pergunta me deixou surpreendido, em face do desconhecimento que revelava do progresso das investigações – que eu, como me cumpria, ia reportando periodicamente a quem de direito. Respondi, esclarecendo que havia também ofensas corporais graves, além de um crime de cárcere privado. A estupefacção apoderou-se dos meus interlocutores: “Mas o cárcere privado está provado? E foi praticado por legionários?” Respondi afirmativamente.

Antes de deixar a PJ – à qual haveria de voltar no final da década de setenta, então para o exercício de funções de direcção -, deduzi as competentes acusações, com a previsão da totalidade dos crimes praticados, incluindo o de cárcere privado, a que correspondia uma pena de prisão maior – de três anos a oito anos.

Qual não foi o meu espanto, quando, já no exercício das minha novas funções, tomei conhecimento, pelo “Diário do Governo”, que, no elenco dos crimes amnistiados aos estudantes de Coimbra que tinham recebido com insultos e imprecações o “Venerando Chefe do Estado”, Almirante Américo Tomás, no que foi um episódio de resistência ao regime com grande impacto mediático, se encontrava incluído o crime de cárcere privado. Escusado será dizer que os beneficiários desse “gesto magnânimo” não foram os estudantes da Lusa Atenas, mas sim os legionários do Quartel do Rato.

***

Os factos ocorridos no desfecho da história que acabei de relatar constituíram a minha primeira revelação de quão vulnerável pode ser o “mundo da Justiça”, em certas conjunturas. Naquele ano de 1969 eu tinha renunciado ao gozo de férias, seguro da importância em concluir tão depressa e tão bem quanto possível algumas investigações que me tinham sido distribuídas, entre as quais se contavam os dois processos a que me referi. Não obstante, uma vez realizadas as eleições de Novembro, o “mundo” voltou ao que era antes – e à “Primavera da nossa esperança”


sucedeu o “Outono da nossa desilusão”. A amnistia que branqueou os crimes dos legionários deu razão àqueles que, afinal, pensavam que tudo não era mais do que uma simples formalidade. Afinal, apesar do esforço da PJ, eles estavam efectivamente em casa ...



2 comentários:

Anónimo disse...

Muito obrigado pela sua importante evocação.
Terá sido por causa de investigações sérias e esforçadas como as que nos conta que a PJ passou incólume pelo 25 de Abril.
O que é que acha disto?

Anónimo disse...

Mais uma boa ... continue
Raul