segunda-feira, março 31, 2008




NA ROTA DO CALENDÁRIO


Março das Primaveras

Maria Lúcia Garcia Marques

Nasci com Março e com as primaveras. Tempo final das grandes germinações, do rebentar das águas, do eclodir das cores. Tempo feminil e quase frívolo em que a Natureza compõe seu rosto, se adorna e floresce. Histórias de sementinhas com final feliz como estas com que Aquilino abre a sua “Casa Grande de Romarigães” e que deliciadamente aqui resumo:

O vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso, penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora no seu decúbito, que se agitou molemente. Volveu a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semi-rígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da cela e pulou no espaço. Que pára-quedista!

Precipitado tão de alto do pinheiro solitário, balançou-se um instante e ensaiou um voo oblíquo. A meio caminho volteou, rodopiou, viu as nuvens ao largo, a terra em baixo e, saracoteando a fralda, desceu em espiral. Poisou em cima de uma fraga, ligeiro como um tira-olhos.


Mas novo pé-de-vento atirou com ele para a banda, quase de escantilhão, e a aleta, tomando-se de imprevisto fôlego, arrebatou-o para mais longe. Foi cair numa mancheia de terra, removida de fresco pelos roçadores do mato, e ali permaneceu à espera que pancada de água ou calcanhar de homem o mergulhasse no solo, dado que um pombo bravo o não avistasse e engolisse.

Também ali perto, por uma tarde fosca de Outono, chegou um gaio, voejando de chaparro em chaparro, a grasnar mal-humorado como é próprio da raça. (…) Trazia no bico uma bolota (…) mas deixou cair a glande. Esta foi bater na face zenital dum velho toro, saltou de ricochete para o lado, e aninhou-se muito aninhada num monte de folhas secas e argalhos. (…) ficara ali muito quieta, muito bem refastelada em virtude do próprio peso, enterrada que nem pelouro de batalha depois de passarem carros e carretas. Que fazer senão deitar-se a dormir ?!




Dormiu uma hora ou uma vida inteira, quem o sabe ?! Um laparoto veio lá de cascos de rolha, rapou a terra, fez um toural, aliviou-se, e ela ficou por baixo, sufocada sem poder respirar, em plena escuridão. Estava no fim do fim? Um belisco, e do seu flanco saiu como uma flecha. Era de luz ou de vida? Era uma fonte ou antes um cântico de ave, de água corrente, de vagem a estalar com o sol, dum insecto na sua primeira manhã, música trilada da terra ou das esferas?

Era tudo isto, encarnado no fogo incomburente que lhe lavrava o flanco, verbo que acabou por irradiar do próprio mistério do seu ser. Do pinhão, que um pé-de-vento arrancou ao dormitório da pinha-mãe, e da bolota, que a ave deixou cair no solo, repetido o acto mil vezes, gerou-se a floresta.


E esta floresta assim nascida faz-me lembrar o como se tece e urde o tecido/texto da nossa fala. De como, das clareiras do silêncio, se parte, pelos trilhos da memória e do engenho, ao encontro das palavras na pujança das suas inflorescências semânticas, numa “expedição” em que, como diz Ramos Rosa , de súbito uma folhagem estremece e as palavras surgem / trémulas ainda de silêncio e de desejo. E são muitas. Infindas. Cada palavra é um pedaço do universo. Um pedaço que faz falta ao universo. Todas as palavras juntas formam o Universo, dirá Almada Negreiros. E há-as úteis, imperativas, apaziguadoras, apaixonadas ou frias, difíceis ou arrogantes, de misericórdia e de luto, secretas ou segredadas, gastas ou já esquecidas, que unem e que separam, de prisão e de alforria, de justiça e de oração, de rogo e de promessa, de culpa e de perdão, de fúria e raiva como no poema de Sophia:


Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra” ( Junho de 1974 )

Mas há palavras lindas que nos salvam, nos lavam e nos saciam.
Palavras-de-março que, como um fio de água bonançoso e limpo, trazem nelas a Primavera.



1 comentário:

Anónimo disse...

Outro escrito bem bonito. As transcrições são excelentes, ainda que eu não aprecie muito Aquilino Ribeiro. A Sophia de Mello Breyner era uma das maiores poetisas portuguesas, talvez mesmo a maior de todas.