Antunes Ferreira
Para o que me havia de dar. Embora seja sempre melhor assim, à aventura, sem plano antecipadamente elaborado, sem consulta a uma qualquer agência de viagens, sem, sequer, reserva de quarto de hotel, sem bússola, sem kit do Benfica, perdão, de sobrevivência, sem nada disso, com os anos entrados por vezes parece duvidoso, para não dizer algo inquietante.
Mas deu-me. E, sem mais delongas, muito menos justificações, a Raquel e eu metemo-nos no Hyundai de 99 e fomos. Para onde? Para onde calhasse? Para a Assembleia da República, por via das comemorações? Nem pensar – nenhum de nós tinha convite. Em tempos troglodíticos eu tinha. Tive. Mas, presentemente, convém não esquecer que o ovo de onde saí já com ar preocupante era de um bronco sáurio, muito bronco. Passou a época, a minha, e como a festa ou baptizado não se vá sem ser convidado, rumámos ao deus-dará.
Bom, não foi totalmente assim. De repente, no domingo à noite, ainda eu resmoneava sobre o empate de Alvalade, veio à cachimónia raqueliana: e se fossemos até à Foz do Arelho? Nesse preciso momento de inspiração cara-metadista afastei o que estava interiorizando, ou seja, o vero masoquismo que é ser e continuar a ser leão. E, bem assim, a chatice que teimava em estragar-me o apetite – o que não é fácil.
Porra: eu até sou virgem. De signo, tá visto, nasci a 20 de Setembro. Pois. Mas, no que toca ao chuto futebolês, uma desgraça nunca vem só: Académica e Sporting. A primeira, ab initio; quanto ao segundo, fui empurrado pelo meu tio e padrinho Armando e, depois, já com os olhos bem abertos – não é que persisti? Agravante, portanto.
Vai daí, somente com a ajuda do mapa do Automóvel Clube, chegámos às caldas num tiro. A última e única vez que fora à Foz do Arelho e, naturalmente, à lagoa de Óbidos, ali mesmo ao lado, tinha 13/14 anos e já rapava clandestina e furiosamente os queixos em busca da barba que me emancipasse. Há meio século, mais coisa, menos coisa. Embora velhos sejam os trapos, ao que dizem, já vão chegar os 65 – bem pesados.
Almoço nas Caldas, sem loiça do burgo, um casal simpático e novo, com a filhota Joana, na mesa ao lado, diz que não tem nenhuma dificuldade o caminho, é sempre em frente, contornando, claro, as 34 rotundas que existem pelo caminho. E, ainda de acordo com sugestão do jovem há na Foz um hotel que não sabe se continua em obras ou se já reabriu. Dá-me o nome. Comida feita, companhia desfeita. Isto sem faltar um comentário meu, carregado de ironia: «Muito obrigado. Vamos até lá. Será giro, no 25 de Abril ficarmos no Hotel O Facho…»
A memória Grandel(l)a
Que era, em verdade, uma Guest House, tal como reza o cartão da casa, construída em 1910, um pouco à frente da Casa Grandella, na Rua Francisco Almeida Grandela, 3. Um éle ou dois? Para todos os gostos. Sim senhores. A Dona Elsa é a recepcionista. Vai logo avisando que os quartos não têm ar condicionado nem televisão. Mas casa de banho privativa não falta. Ficámos, para dormir com a patine e frente ao mar de ondas a preceito.
É obra O Facho. A porta de entrada está despintada, com branco e rosa salpicando-se mutuamente. Mas entra-se na recepção e pronto. Cai-se na armadilha de onde já não se quer escapar. Nós não quisemos – e bem.A escadaria é um monumento. Mas, pasmem: há elevador. Modernices a cromado, logo ao lado de um bengaleiro onde, entre outros apetrechos, está pendurado um verdadeiro chapéu colonial. O móvel exibe-se entre duas cabeças de veado plantadas na parede. Só visto.
O quarto, no segundo andar, é o que é – muito aceitável. A casa de banho moderna, água quente e fria, um esmero. Móveis quiçá de 1910, da fundação de O Facho, portanto. E o mar lá em baixo com suas ondas altas morrendo em espuma na areia. Diz-me a Raquel que por ali passou férias com uma amiga, quando eu estava no primeiro ciclo do COM, que tem pé até quase ao Brasil. Não confirmo, nem desminto. Mas é bonito e, sobretudo, repousante.
A Dona Ester, também cozinheira, empregada de quartos de pé alto, telefonista e ofícios correlativos, tem tempo, ainda, para ser a esposa do patrão. Ele é proprietário do estabelecimento desde há 26 anos. Ela já ali está há 20. No varandão, as cadeiras e mesas de leitura de madeira e lona escura, alinham-se sem ocupantes. Mansamente. Porém pode ler-se na cor delas, acastanhada e desbotada que por ali estiveram muitos veraneantes, muitas revistas e muitas sestas. Agora, sós, orbitram o mar.
O Verão é o que os sustenta. A casa enche-se de turistas, entusiasmados com as obras já feitas e as paredes por pintar, com o que resta da antiga a descascar-se paulatinamente. É o salitre do mar. É o diabo. E com os inúmeros quadros emoldurados a restos de oiro de pintura, naturalmente – e como o resto, um tanto escalavrados. Muitos – e alguns bastante bons. O espanto maior é quando se entra no bar. Mas isso fica para depois, que é hora de jantar, depois de uma sesta em dueto, o sono tranquilo enovelado no rumor das ondas.
Descobrir o Adamastor
A Dona Elsa, que também faz uma perninha de anjo-da-guarda, no caso anja, no momento cobrindo-nos com as saus asas invisíveis, diz que mesmo ali ao lado há um restaurante bom. E não é. Bom. É óptimo. O Adamastor. Patrões jovens, empregadas idem, interior aspas. Tem um ano de existência. Bem hajam os empresários, pelo que fizeram de um alentado barracão, quem sabe se antigo armazém de artes de pesca. E pelo que servem. Na Rua Francisco Almeida Grandela, obviamente, o 3-A.
O interior totalmente novo, mostra junto às janelas grandes, de vidraças generosas, os antigos tijolos em meio arco. O telhadão é suportado por enormes vigas de madeira negra, aparelhadas a goiva e com ferros a semelhar os de 1910. Ano da República e destes casarões ilustres.
A recuperação é sensacional. Tudo excelente. Mesas de um pé só, de vidro plástico; cadeiras do mesmo material, brancas, azuis e vermelhas. E toalhas a condizer e pratos em consonância e talheres a preceito. Num estilo moderníssimo e vivíssimo. E as cadeiras que a princípio poderiam motivar suspeição – são muitíssimo confortáveis. E o ambiente sossegado. E a cozinha um brinco. E os sanitários impecáveis, esterilizados.
Faltava o palato emitir opinião. E sem uma hesitação que fosse, o veredicto, directo: manjares estupendos. Maravilha das maravilhas: um branco à pressão que a menina me recomendou – de deuses. Notas? Um bacalhau no forno nadando em azeite puro de oliveira, frito com muito alho, tomate e cebolinhas e loureiro; batatas alouradas à padiro e cogumelos de raças distintas. E um pernil de suíno que nem se adianta o celestial que estava, por medo da falta de babete. Tenro, gelatinoso, ressumando odores paradisiacos, a desfazer-se, complacente, na boca, com um puré de batata alourado em outro óleo de azeitona, ervilhas frescas, de truz. Sobremesas nos triques. E uma aguardente zimbrada prá digestão, oferta da casa. Gente boa.
A Foz do Arelho, nestes preparos, merece a volta sem revolta. Essa comemorou-se naturalmente, por tudo o que é sitio, até na Madeira, à revelia dos diktats do senhor Alberto João. Nós também o fizemos. A dois. Os únicos clientes de uma Guest House em equilíbrio permanente, porque permanentes são as obras que a habitam. E o bar do Facho? Só visto, meninos, só visto. Madeira trabalhada a formão puro. Candeeiros-estatuetas. Livros. E uma guitarra. Para além do óbvio, as bebidas.
terça-feira, abril 25, 2006
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1 comentário:
Bom, por mor de umas pesquisas, dei com o seu blog. Também estive na Foz do Arelho este ano, nas férias ditas grandes, que agora, para quem também já entrou nos 60 é coisa que se vai voltando a dizer aqui para os meus lados, tal como quando éramos crianças, não é?
E tendo estado no Inatel da Foz do Arelho, mas do que eu mais gostei foi da praia, onde tudo vou fazer para voltar mais vezes. E dei com o tal FACHO, mas não me servi dele. Fica portanto o seu interessante apontamento, como convite a aparecer por lá. Por isso, obrigado.
Manuel Sá
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