sábado, julho 29, 2006

Cozinha ao fundo

Antunes Ferreira
S
ou do tempo do meio tostão. Dos rebuçados da bola de cótechu. Dos eléctricos abertos para o Campo Grande. Do Horto de Lisboa, ali em frente ao Colégio Mouzinho da Silveira. Logo, da Instrução Primária. Do é o esquimó fresquinho no Jardim Zoológico. Da ida ao Porto. Da curva da morte, onde, num pinheiro, estava cravada a dentadura de um sacerdote que contra a árvore se estampara. Do Hotel Batalha com traseiras para as escadinhas dos Guindais. E da mulher da fava-rica.

Muito mais haveria para rememorar. Só que, sentado à volta de um fogareiro a petróleo, daqueles de dar umas bombadas prévias, a comer umas postas de pescada das águas sul-africanas, bem fritas quem é o sacrista que se atreve a pensar noutra coisa? Depois de enroupadas em polme com jindungo, feitas na ocasião e no local do crime, só há que as saborear. E a comemorar com o Alvarinho acabado de sair da arca de madeira revestida no interior, a chapa, e carregada de barras de gelo.

O Sousa da Dodge é o coque de serviço. Só lhe falta o barrete branco. Depois do peixe, a carne. Assado de porco meio javali, que já vem de Luanda, boiando dentro dos três imensos tabuleiros, num molho acrisolado, rodeado de batatinha e cebolinhas idem, idem, aspas, aspas. Aí conta a mão da Dona Mafaldinha, esposa emérita do camionista e verdadeira fada nas comidas, com receitas ou sem. Cozinheira de estalo, mão farta no picante e especialista em funje de bombó.

Os dedos de duas mãos não chegam para contar uma tal colecção de malta. Nem de quatro, quiçá cinco. Gente de trabalho, agarrada ao volante de bichos com mais de dez tonas. Manápulas gretadas, peludas, unhas sujas das viagens constantes. Os sustos foram, são e serão em barda, porem contam os episódios entre gargalhadas que contrastam, álacres, com o silêncio da mata. Não se ralam com o barulhão. Os gajos, a estas horas, estão a xonar. E fazem eles muito bem, assim não nos fodem o juízo.

O Bravo, que me transporta na cabina, convidara-me para o repasto, por entre a poeira vermelha da picada que entra pelas janelas. Não percebi muito bem o que dizia por causa do lenço com que tapa as ventas, como refere. Mas, depois, afastando o meu passe partout improvisado, sempre lhe respondi que muito obrigado, mas tenho a ração de combate. Você parece que é parvo. Com postas de pescada, lombo de porco e verde geladinho – o senhor ou é tolo ou maçarico. Desculpe lá a franqueza, mas não sabe o que é bom. O meu primo Celestino aguça a língua e diz que tudo o que é bom faz mal. O malandro já foi operado a uma ursula do estômago, mas continua no cozido à portuguesa, no tintol carrascão - e nas garotas na maioridade.

Votar Alvarinho

Seja. Decidi-me e bem. Entre a Dolca e o Alvarinho, votei no último. E avisei logo o digno condutor que a minha contribuição para o banquete estava num dos muitos caixotes que a sua Izuzu transportava. Ou melhor, em dois. Dado o alto ao MVL, saíram quatro garrafas de The Monkeys e duas de Constantino, cuja fama já vinha de longe, e três de Mosca. O Freitas do Cacuaco aportava uma de L34, uma cagada alcunhada de brandy. Atoarda, que não boato. Boato é crime e fere que nem uma lâmina dizem os cartazes colados pelas paredes. No mato, só nos aquartelamentos.

Pelas muitas da matina, já o estrelo clareia, quando o Fagundes, dono de uma Ford de báscula, me dispara então o amigo não está sastifeito com a refeição. Claro que estou mais do sastifeito, como ele diz, nasceu na Madragoa, veio para Angola em 58, apanhou os massacres da UPA, matei muitos filhos da puta e voltarei a abater esses escarumbas, se os gajos tornarem a arrebitar as orelhas.

Já não vale a pena passar pelas brasas. Mas, por agora, já não há que trincar. Esgotaram-se as mangas do Mussulo e os mamões, dádiva frutícola do Sanches, da Camabatela. As últimas a marchar pelo estreito, foram umas carambolas. Tudo em óptimo estado de conservação, antes dos suevos atacarem, babando-se. Trago um Poirot e um Maigret que estão na camioneta. Estultices de novato nestas lides. Fanático da leitura e da Vampiro, tenho-a todinha, mas agora, com os cagaços, não dá para correr as linhas.

Levanto-me e dou uns passos bamboleantes. Vinte para as quatro da matina e bêbado que nem um cacho. A ração de combate, fechada na sua caixa de cartão canelado, jaz, definitivamente falecida sem consumo, no chão da cabina que abro em busca de uma garrafa de água da Jomba, para rebater. Nem pó. Lembro-me nebulosamente que a bebi durante o percurso, antes da emboscada. E que, quando os tiros começaram, a vítrea criatura se espatifara na terra, ou foi queda ou tiro desgarrado. Sou, na verdade, um homem muito infeliz. Abusam de mim, porque sou pequenino.

Só me saem duques

Ó Sousa, você não tem praí uma água com piquinhos? Olha-me este. Só me saem duques. Água só para lavar a cara e as partes baixas. E com bolhinhas não dá. Tenho uns pingos de bagaço caseiro, do meu pai, que mo envia por barco. Afianço-lhe que é boa peça. Ná, o que caía bem era o aquoso líquido, engarrafado e com muito gás carbónico. Aproveito para mijar. Porra, ainda se fora da Nocal. Mas, não, é do Alvarinho e dos álcoois diversos e de diversas proveniências.

António Justo, alferes miliciano da nossa praça, faz a barba escanhoadamente, um espelhinho feminil na frente, muito há-de ver nele, minúsculo e com a noite ainda a ir para a cama. Com que então noitada? Podias ter chamado os amigos, ou seja, cá o rapaz. Podia, mas não o fiz. A boda e a baptizado não vás sem ser convidado. Ora eu é que o era. Não me parecera bem levar outro pela arreata. Passei à frente, com um vai-te foder de ocasião. Parece-me que não gostou. Ora essa, se não lhe agradou, ponha na beirinha do prato.

Aliás, alguém teria de deglutir as rações de combate, que não eram fornecidas à consignação. Ficasse pelo chouriço de lata, pelo leite com chocolate, pelas bolachas capitão e pelo queijo de tubo dentífrico. E que lhe tivesse agradado. Bom proveito. Nisto de culinárias é como no amor: come-se o que há, o que se pode e onde é possível. Com talher ou sem. Bom, aqui espirra qualquer coisa.

Amor e camisinha

Um dia, na Cidade Universitária, um colega goês convidara-me a ir ao Monte Carlo, ali ao Saldanha, para comer um caril a sério. Fomos e abancámos. Vindo o arroz, devia estar mais solto, Gracias dixit, e ala que se faz tarde, ao caril de camarão, peguei no garfo e na faca e aqui vai disto. O tipo aconselha-me a experimentar comer à mão, como ele faz, uma bolinha de arroz na ponta dos dedos, molhada na especialidade e zás, habilidade suprema, ei-la que voa para o palato.

Respondera-lhe que não, muito obrigado. Cagava-me todo e as manchas do pitéu deviam ser lixadas. Tenta. Tentei, estraguei. Competiria à Dona Glória reparar os danos à base da lexívia. E o portuga oriental, não sabes o que perdes. Comer arroz de caril com garfo e faca e, até, com colher é como foder com camisa de Vénus. Não tem sabor, nem dá gozo. Vai-se a tesão.

Os motores começam a roncar e os escapes lançam baforadas de fumo negro que ajudam a camuflar a chegada da manhã que se anuncia solarenta. Um tiro. Um tiro só, um único estampido, seco e sonoro. Mais nada. O que o apanhou, na testa, tem a cabeça descapotada, entre sangue e massa encefálica a esmo. O Bravo ajoelha-se ao lado dele, o cabo maqueiro que chega a correr, abre o saco de papel do penso individual do combatente, modelo 146-A, do Laboratório Militar.

Não há penso que valha

Mas volta a embrulhá-lo. No caso, não há penso que valha. Está acabado, o desgraçado foi desta para melhor. Para melhor? Uma porra! Sei lá se é melhor. Nunca ninguém voltou de lá para o comentário final. Deu o peido mestre, sentencia o Sanches, enrolando um cigarro quem sabe se de liamba. Há cabrões para tudo e o charro ajuda, dizem eles, sobretudo nas horas difíceis. Ao lado, encostado aos taipais do camião, Fagundes coça o ventre bojudo: na batalha naval não é um pobre-de-cristo que estica o pernil; é um submarino ao fundo. E o Gonçalves, mulato de Sá da Bandeira: e se morre muita malta na picada é porta-aviões ao fundo. Do mar ou do papel quadriculado?

Os camiões deixaram de escoucear. O Justo, o sacana, diz que é preciso levantar o auto da ocorrência. Aponta-me o dedo, tu é que és da PJM, logo sabes fazer essa merda, tens prática e até podes já fazer as averiguações. O turra estava no alto de uma mafumeira, à espera, pacientemente, até que visse onde podia acertar. É gajo para ter mira telescópica. Testemunhas somos todos nós. Mas não vimos nada, só o morto. Este merdas deste António faz-me lembrar o verso que corre por Lisboa: Dos dois Antónios de que Lisboa disfruta, um é filho da Sé. E o outro... também é...

Não mando o oficialzito para onde quer que fosse, ainda que tenha pensado que a cona da mãe dele era um bom local. O cidadão tem a burocracia nas veias. Pudera, não. Era chefe de secção das Finanças e acabara o Seminário, quase cura. A meio da primeira procissão, ainda acólito, dera-lhe uma danada de uma dor de barriga e tivera de raspar-se a correr, para trás duma sebe onde aliviara o intestino. De cócoras, dera-lhe para congeminar em. Já não voltou ao cordão do pálio, limpou o cu à opa e nem o presidente da junta de freguesia fora capaz de o topar. O Bravo levanta-se, de cabeça perdida, olhos injectados, seguro-o antes que ele rebente com o alferes de trazer por casa. Regouga: Puta de vida! É preciso avisar a Mafalda. Ela tem de se desenrascar. O Sousa já não volta a cozinhar. Cozinha - ao fundo.

quarta-feira, julho 26, 2006



O rio e a sorte

Antunes Ferreira
Q
uando os maçaricos chegavam, ainda a cheirar a cueiros e já carregados de saudades, os veteranos costumavam gozar com eles. O que é mais do que natural, sobretudo em teatro de operações. Já tinham passado pela rábula da caça aos gambozinos, na recruta, noite em claro agarrados aos sacos de serapilheira, à espera. Já tinham engolido os pedidos/ordens dos instrutores – vai-me ali buscar a caixa das estrias. Porra! Mas ali era diferente.

Uma boa parte das saídas era pelo rio, margem acima, margem abaixo, que sacana de vida, então para que raio eram os fusos? Esses é que estavam preparados para a guerra aquosa – ou outra merda qualquer – mas eles, não. E os velhos: cuidado com os tubarões. Mas aqui há tubarões. Não, maricas, os crocodilos comeram-nos todos. E as sanguessugas atirando-se ao couro dos polainitos em busca de sangue fresco, que vida de peixe de rio. Nem a tainha, nem o sável, nada.

Mais abaixo, na curva mais pronunciada do rio, é o local onde nós atacamos. Os tugas, mais ou menos preparados, mais ou menos prevenidos, mais ou menos acagaçados, nem mesmo assim tomam as precauções imprescindíveis. Xi, camarada, essis gajos num tem nada nos cabeça. Antão não repara que esse é o sítio das makas? São burros mesmo. Muitos vão voltar no Puto dentro do sobretudo de pau.

Até dois Cabinda tem

É um grupo lixado, o nosso. Vinte e três patrícios, de muitas sanzalas e muitas diferenças. Repara só, mano, até dois Cabinda tem. Só que todos são MPLA, e o comandante é o Adão que esteve dois anos em São Nicolau – e sobreviveu. Do povo vêm umas mulheres que trazem na malta comida e munições. E desenferrujam os nossos coiso. Um homem está na mata, tem de se alimentar, mas também precisa de fêmea. Todos os bichos fornica, os negros também tem direito.

Eu sou o Sabonete João. Já ando nesta vida há muitos meses. Quase quatro ano. Tem que chega? Não. É preciso atirar os portugas no mar. Para a terra deles, prá cona das mães deles. Pró cu do Salazar. Aka! Muitas vezes me pergunto quem é esse Salazar. É o soba grande dos tugas, disse-me o Sebastião Moluto que andou até ao quinto ano do Salvador Correia. Chama-lhe o pai da pátria, o salvador de Portugal e também lhe conhecem por Esteves.



O Sebastião explica que o gajo chama-se António de Oliveira Salazar. Nunca ninguém avisa onde vai ele amanhã. A PIDE tem ordens para impedir que digam que amanhã o Senhor Presidente do Conselho vai estar na Feira das Indústrias. Podem lhe querer fazer mal, um tiro, uma bomba, sabe-se lá. Por isso é que os jornais, a rádio e agora a televisão dizem sempre que esteve ontem na inauguração do mercado de Palhavã... Por isso, dizem que é o Esteves.

Palmatoada nos preto

Sei ler e escrever, aprendeu no livro com os mininos da mocidade portuguesa na capa. Até sei de cor os rios de Portugal e os seus eflu... afluente, julgo que se diz assim. Do Norte até no Sul, no Algarve. E as linha do caminho de ferro com ramal e tudo. Os padre missionários ensinava tudo direitinha na gente. Se não sabia, pimba, lá vinha a minina de cinco olho, a dar palmatoada nos preto.

Fui ajudante de contínuo na Fazenda, ali na Mutamba, com o senhor director-geral Mendonça. Bom home. A mulher, a Dona Joaquina nem por isso. Dava na lavadeira e nos três criado, uma sardinha e dois batatas pró almoço e eles que cozinhava. E tirava-lhe um dia no salário se faltavam meio dia no serviço. Era cabrita e toda a gente sabe que o patrício diz que o branco é filho de Deus, o preto é filho do Diabo e o mulato, principalmente, o cabrito é filho da puta. Quando o senhor Martins, chefe da repartição me avisou que tens de ir na tropa, fugi. Do Casa Branca até aqui foi uma confusão. Mas cheguei e cá estou.





Pronto. O camarada Adão está lhes chamando para combinar uma emboscada. Vai ser amanhã, ao lusco-fusco, quando o sol ainda não estendeu os raios. Eu fico com a bazuca, o Ganguela com o morteiro, os outros com as Kalachas. Boas arma, essas russas, de carregador em gancho, tem mais bala que a G3 dos colonialistas. Diz o comissário Tunda que se o Salazar não manda comprar elas, os tugas perde a guerra contra os patriota.

Patriota somos nós. O grupo todo é unido e patriota. O comissário nos explicou que patriota é aquele que conquista a sua Pátria. O cipaio não é patriota é chulo. Serve os branco. E os administrador cabo-verdeanos também é traidor. Batem mais que os brancos e não pagam imposto geral mínimo. Até os funcionário paga, mas administrador não paga. Então porque é geral?

Os «voluntário da corda»

Estou a limpar a arma com escovilhão até. Amanhã, na madrugada, ela não vai encravar. Não pode. Senão quem encrava mesmo sou eu, Sabonete João, natural do Golungo Alto, terra do camarada Agostinho Neto. Tudo brilhante, a mira bem aberta, pra acertar neles. Assim, já não pago mais o antigo imposto de palhota. Acaba os escravos, com a luta do povo angolano. O Tarcísio me mostrou uma fotografia de uma fila de pretos atados pelas garganta com uma corda grossa de sisal. Me disse que eram os voluntários para a colheita do café. Os «voluntários da corda» - e fartou-se de gargalhar.

Tenho quatro cigarros e meio, AC, maço vermelho e branco com os letra a preto. Os portuga dizem encarnado, vermelho é comunista, a PIDE proíbe. Essa polícia é futida mesmo. Prende um preto, lhe enfia uma carga de porrada, mas também dá nos branco. Diz que viu que bate menos por ser da mesma cor. Não sei. O agente que eu conheceu na Maria Fernanda (boa fazenda de café, pertinho do Bico do Pato), Almeida qualquer coisa mais, disse que não tem medo de ninguém, nem do governador-geral, nem do bispo.

Que se tramem o Almeida, o governador e o bispo. O Adão chega junto de mim e agarra na arma para lhe experimentar e examinar. Leva a culatra atrás, espreita no cano faz hun-hun e devolve-me a canhota. Lá no céu já estão as primeiras estrela, é noite de lua cheia, bom sinal para daqui a bocado. O Lucungo prepara a mina para pôr debaixo da água, no sítio em que passa os soldados.

É preciso muito cuidado, essas mina são terríveis, rebenta por um cabelinho. Para a armar tem de se ter todos os olhos bem aberto. Todos não. O do fundo das costas deve estar bem apertadinho, quer dizer que tem maúfa, ou se não tem, duvido do herói que não nasce como o capim, à farta. Tem sim de ter muita atenção e muito cuidado, a maldita pode explodir nos nossos não neles.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ...




Às quatro da manhã, o primeiro homem põe o pé no sítio da mina. É um soldado preto, desses que ficaram no lado da tropa, com vontade ou sem vontade. Não interessa. Adão deixa-lhe passar, seguem-se os outros, quase um pelotão. Com a água barrenta pela cintura os camuflados semi-flutuam, diluídos no cinzento da madrugada, vão avançando, cuidadosamente, em bicha-de-pirilau. Já estão todos na zona da morte.

O estrondo, medonho, abana o tempo e o ar. Ergue-se uma coluna líquida carregada de espuma e já tinta de sangue. Os gritos são uivos de animal caçado e estralhaçado. Uma nuvem de pó acastanhado e de fumo de enxofre paira por momentos e vai caindo sobre as águas ainda revoltas. Ter-se-á safado algum? Por certo, mas não vale a pena ir lá abaixo contar as baixas. Adão levanta o braço direito, a mão espalmada, em aceno para que a malta se retire, devagarinho, sem sobressaltos nem barulhos.

Vai chegando, no meio da desgraça, o reforço que de nada servirá. O que tinha de se fazer, está feito. Sabonete João estou a coçar o olho direito. Espinho de árvore, lasca de madeira explodida, areia mais grossa arremessada pela deflagração? Ou lágrima pelos muitos que, sem saberem bem porquê, foram mandados para o matadouro no rio? Raio de sorte de quem se habituou, apenas, a obedecer. Uma merda, co'escafandro.






O Cuanhama, aiué

Antunes Ferreira
C
hove se deus a manda. Cordões de água empapam a terra vermelha, acompanhados por raios e coriscos - uma trovoada das antigas – que fazem doer a alma da gente. Em miúdo, na sanzala, a mãe Miquelina atirava-lhe com berros e aiués pela mania que ele tinha de correr, nu, pelo terreiro tomando um banho que lhe tirava os caramunhos da cabeça. Minino você tens de aprender a ser um home civilizado. Seu pai lhe queria que tu fosse assim.

Ele não respondia. O seu pai. Por onde andaria ele, algarvio de torna viagem, que estivera ali sediado durante a enormidade de dois anos com um comércio geral de fancaria e que emprenhara a Zefa Catemba, em resultado do que nascera ele, José Paulo de Carvalho Simões, mulato claro, de olhos verdes como os do sacana do progenitor. E continuava a correr na chuva, conduzindo com mestria um auto de arame, rodas, volante e imaginação, tudo em arame, já disse.

Um dia, já a mãe o tinha metido na escola da Missão, o padre Filomeno, italiano de barba branca sobre a sotaina branca (que raio, o gajo andava sempre num brinco, branco era branco, ponto), chamara-o à presença dele. E dera-lhe para a mão um papel de carta em que ele, entre o desconfiado e o espanto, dera a ler o que lá dizia. Era do pai. E tinha preso por agrafe metálico, um tanto enferrujado, um bilhete de barco para Lisboa. O que lhe pareceu o mais importante, no meio da confusão que se lhe instalara na cabeça, por baixo mesmo do cabelo liso. Os outros miúdos bem o chateavam por não usar carapinha.

Convencido de ser branco

Dona Zefa ainda hesitou. Mas o homem que fora o seu, era o pai do minino. Você faz o que queres, já tem idade pra isso. Mas eu lhi aconselho que vás. Foi. Em terceira classe, no Niassa, navio-motor lhe chamavam, que então era quase novinho em folha. Da viagem – só boas recordações. A camarata para 12 pessoas era o menos. O mar era o mais. E, como não enjoava, fartou-se de comer coisas boas, de brancos, convencido de que já era um deles.

Resumindo. O pai, que tinha o mesmo nome, tinha uma taberna e carvoaria, ali para os lados da Morais Soares, quase em frente o cemitério, do outro lado ficava a Praça do Chile. E os eléctricos iam e vinham, à mistura com as carretas funerárias da Agência Abreu. Passou a trabalhar com ele e o sôr Simões pô-lo a estudar à noite, na escola comercial. Uns anos depois, era ajudante de contabilista da praça, do Senhor Raimundo, que fazia as escritas de uma porrada de lojecas e, até, de algumas lojas mais apessoadas.




Pensava meter-se no Instituto Comercial, ali a Santa Catarina, quando rebentou a guerra na Angola que acreditava ter esquecido. Mas o Salazar, ou os gajos quo acolitavam, deu-lhe passagem para lá, depois de ter feito o CSM. Furriel miliciano, farda amarela de caqui, ei-lo que desembarca em Luanda, que coincidência, no mesmo Niassa, agora mais encarquilhado, mal cheiroso a bedum da animalada que transportava e a que chamavam transporte de tropas. Mantendo o navio-motor, diga-se.

A sanzala Serrador

A companhia de caçadores independente passou seis fugazes dias na capital e seguiu em coluna militar para Nambo. A picada relembrara-lhe os anos da infância. E ainda levava a esperança de rever a Mãe Zefa na sanzala, à beira do caminho. Mas, o que viu, gelou-o. Só havia paus a pique queimados, dois cães esqueléticos e uma cabaça rachada. Ninguém a quem perguntar pelo povo.

Já no aquartelamento, ao lado do que fora o clube desportivo, tinham-lhe dito para tentar averiguar algo com o Malaquias do chuto. E quando este, já com uns valentes bagaços no buxo, e por entre fumaças de liamba, lhe contara que ninguém escapara, a militança que viera de Luanda vingara-se das atrocidades da UPA, olho por olho, dente por dente, só um velho ficara para contar, a ele, José Paulo de Carvalho Simões, subira-lhe pela espinhela até chegar ao cocuruto. Nas palhotas, disseram, para justificar a metralha, acoitavam-se muitos bandidos autores dos mais bravios assaltos.

O resto da comissão passou-o na agonia de vingar os mortos da sanzala Serrador, entre os quais a Mãe Zefa. Mas, o que, na verdade, o perseguia era a visão do que não vira: o povo de borco ou de costas, tanto faz, pelo chão, litros de sangue empapando e reforçando o chão já de si avermelhado, homens, mulheres, velhos, velhas e, sobretudo, meninos ou meninas. Raiados a metralha.

Fez o pedido legal para passar à disponibilidade em Angola, alegando (justificadamente, diga-se) que era a sua terra. Entretanto, chegara-lhe do Puto um telegrama. O pai Simões finara-se, qualquer merda do coração, parece que estava a montar uma catraia de vinte e poucos anos, dera-lhe o badagaio, finara-se. A mulher, a legítima - porque a Mãe Zefa fora apenas a que o parira, que o deitara ao Mundo desgraçado que era este – fugira-lhe um ano antes com um marinheiro turco, levando uma porradaria de contos.

Peluda. Conversas no Rangel e no Sambizanga. Numa noite sem luar saíra de São Paulo de Luanda, à boleia de um camionista indicado pelos novos camaradas, tipo seguro, ainda que não seja dos nossos, afirmara-lhe, convicto, o Pintado das ferragens, militante do MPLA, a que aderira também. A vingança teria de ser forte, sentida pelos filhos da puta dos portugas, mas a independência seria ainda mais importante. Fossem chacinar para a cona da mãe da terra deles.

Os tugas já tinham aprendido

A chuva abrandou. Zé Paulo puxa do maço de Hermínios, aponta-lhe um fósforo, engole o fumo até tão fundo que quase lhe chega aos tomates. Fuma também de raiva. O golpe de mão que tentara executar fora um flop de todo o tamanho. Os gajos seus companheiros de Bilhete de Identidade – de mais, não – também já sabiam muito. Tinham-lhe trocado as voltas e o grupo dele, de 12 ficara reduzido a cinco. Sendo que dois muito estragados, um sem uma perna e o outro cego do olho direito. Uma ganda foda.




Com as mãos em concha tenta preservar a pirisca da ex-catarata que o envolve. Acabou-se: a beata e a euforia. Hoje, tudo aquilo que tinha acumulado de sucessos, fora-se, sem ai, nem ui. Tenho de me redimir, cogita. Tenho de os agarrar pela pele dos colhões e dar-lhes cabo da saúde. Levanta-se e anda, silenciosos, para trás e para diante, no meio das folhas de mandioca, em Cabinda fazem um esparregado com elas, o saca-folha, de comer e chorar por mais.

A noite vai-se transformando em matina, já nasceu um sol que tenta desesperadamente, apenas acordou, penetrar as ramas folhosas. Os companheiros foram até ao charco próximo, lavar-se e dar água aos feridos. Um deles, o Cachimba volta para trás. Camarada o cego escapa, o Cuanhama não se safa. Está a acabar. Já não tem sangue quase mesmo. Pediu no Cavibonde que lhi leva a foto da filha pra dar na mãe da minina.

Que idade ela tem? Cachimba olha, surpreso. Afinal o camarada Simões tem coração. Está a perguntar pela menina do Cuanhama. Ninguém diria. Olha camarada, repara só na foto. Tem cinco anos e si chama Joana. Que lhi parece?

A Mãe Zefa; sente que ela lhe põe a mão no ombro como fazia antes de. Zé Paulo, filho, essa minina Joana também é nossa, também é tua. Conserva-lhe. Você não tens filho, agarra ela e que ela lhi chama pai. Puxa da carteira ensebada, de couro andaluz, comprou-a em Sevilha, tinha ido lá numa excursão da escola nocturna, até engatara uma chavala, Mercedes, 22 anos, um espanto na cama. Fora no Parque Maria Luísa que a encontrara, quando se preparava para dar uma volta de charreta com quatro colegas. A bolsa que já foi castanha e brilhante tem a Virgem da Macarena em relevo. Tinha. Dela tira cuidadosamente a única foto que tem, teve e terá da Mãe Zefa.

Junta as duas, a da senhora e a da miúda. Mete-as na carteira. Está decidido. Quem sabe se ainda chegar a tempo, quem sabe quando a guerra vai acabar, quem sabe se arranjará um irmão para a Joana. Depende. Da guerra e da viúva. E dirige-se ao charco. Para também ele se lavar sumariamente. Para mais nada. O Cuanhama já se foi, aiué, como dizia a Mãe Zefa.

segunda-feira, julho 17, 2006



O dia dum Senhor

Antunes Ferreira
Sursum corda. Habemus ab Dominem. Gratias agamus te. O som chega-lhe remoto, como que desenterrado do fim do Mundo, pela voz aflautada do padre Hipólito, acolitado pelo Maneiras, antigo menino de coro e, por estas bandas, sacristão camuflado, sem opa, vermelha ou branca não interessa. O capelão é de Moncorvo, o ajudante de Pias, terra de bom vinho. As hóstias são da autoria do Martins «Tremeliques», padeiro ao quadrado, ou seja na vida civil e nesta trampa da tropa.

Aos domingos é assim, o capitão Hipólito vem de Unimog, acompanhado de uns quatro soldados e um sorja, Gonçalves, mais conhecido por Bolinhas, de G3 aperradas, que a picada não é para folestrias. Brincamos – ou já chegámos à Madeira? Anda por aí um tal Simões, Júlio Carvalho Simões, furriel miliciano desertor, mulato claro – houve já quem dissesse que o sacana é preto cafuso, não liguem, na outra linha – que se dedica à caça de oficiais. Filho de um roceiro do Uíge, o pai oferecera-lhe, quando as borbulhas já lhe rebentavam, uma carabina Mauser, levíssima e de mira telescópica.

Para caçar tudo, até elefantes, dissera-lhe o mais velho, até elefantes. A roça, ubérrima, estendia-se por quilómetros, cafezal atrás de cafezal, sob a rama das árvores protectoras e a vigilância das mafumeiras altas e esguias. Juleco, aos 15 anos, já atirava como se profissional do gatilho fosse. Primeiro em mamões, depois em tudo que mexesse. A mãe Benda Maria se lhe recomendava calma minino, calma, que essis arma lhe deu seu Pai só pra matar pacaças e palancas. De nada servira a prevenção materna. Deu-se a caçar homens.

Cervejas e bifes

Ite, missa est. O pessoal ajoelhado para a bênção final, já se levanta, em busca de Cuca geladinha, da arca zincada. Geladinha – assim, assim. Melhor que nada porque cerveja quente só os ingleses, ao que dizem. Poça, gajos mais estranhos, os bifes. Quem se havia de lembrar de cerveja ao natural. Nem pra tremoços, que é o marisco preferido do Eusébio. Cabrão, que viera lá do cu de Judas de Moçambique para o Sporting e, pela porta do cavalo, arregimentara no Benfica.

Debaixo da copa do embondeiro, o Jacinto, nosso alferes, acamarada com o outro miliciano de galão único, o Tomaz com z mas sem h, a ser assim ainda seria da família do merdas do almirante. Afanam-se em tarefa mais do que meritória: dar cabo de uma garrafa de Monkeys, um uísque de estalo, a botelha é de louça, é só estilo. Nenhum deles assistiu à missa, já foi tempo em que não falhavam um dia do Senhor.

Gelo de barra esmigalhada e água Castello – é assim que vem no rótulo, com dois l – ajudam a enganar a caloraça. Hipólito, desparamentado num ápice, também não tem muito para tirar, abanca à sombra da árvore guarda-sol. Trata-os por tu, eles são mais pelo padre isto, padre aquilo. O capelão é um gajo baril disse uma vez o Tomaz com z e bastou. Boa praça, diriam os brasileiros. No caso presente, bom capitão, ainda que sem usar galões por via das moscas.

Serve-se a eito e sorve uma golada ainda meio-quente. Ó padre, deixe derreter o gelo, porra! O Jacinto excomungado comunga porem na amizade ao cura capitão. Mete-se com ele a todo o momento, é a forma de lhe mostrar o apreço que lhe tem, o valdevinos. Vocês continuam a faltar à missa dominical. Saíram-me uns bons safados. Diga uns filhos da puta, fora as mães, digno sacerdote castrense, não lhe faz mal nenhum e enche a boca.



Esta é a forma mais gozada de acometer Hipólito. Sacerdote castrense. Mas ele próprio entra no gozo, melhor seria filhos da mãe, já não seria preciso isentar as progenitoras. E enche um segundo copázio. Safados e ímpios. Tu, meu grandessíssimo Jacinto até foste leitor de epístolas, nos Jerónimos, era prior o Felicidade Alves, do meu curso do Seminário.

É isso, padre. Fui católico – ou julgava sê-lo – mas curei-me. Nem precisei de aspirina LM. Tomaz, sempre com z, solta tal gargalhada que quase se engasga com pedra de gelo quase virgem. Meus queridos filhos. Graças a Deus, muitas; graças com Deus, nenhumas. Parece que está a falar a sério, ó padre Hipólito... E estou mesmo. Vocês já estão cacimbados, tantos meses aqui no mato, desculpo-os. Não precisam de brincar com o nosso Pai.

Óqueijo, óqueijo, padre. Vá, meta mais gasosa, the last for the road. Assim, sim, assim são vocês, camaradas, amigos, filhos meus. A manhã esvai-se por entre os dedos da malta. Almoça connosco? Pergunta idiota. Hipólito vai sempre comer na sede do batalhão, onde, antes, rezará também missa. Boa viagem e poucos furos, digno sacerdote e castrense. Vá pela sombra, que o sol cresta...

Minutos depois, já com os garfos em punho para a salada de atum, ouvem um matraquear metálico, uns estrondos, uma gaita! O padre está a ser atacado, grandes cabrões. Vamos a eles. Motores a ferver, malta em calções ou em cuecas, a espingarda e as munições é que contam, avia-te ó Marques bazuqueiro. Eles fodem-nos se nós não chegamos depressa. O tiroteio prossegue, cada vez mais próximo, à medida que se aproximam em velocidade tresloucada.

Nisto, o silêncio. Ominoso e impotente. Acelera, Guimarães! Caralho, isto está a cheirar muito mal! Os êmbolos esgalgam-se, os travões morreram. E o sacana do silêncio – que se ouve perfeitamente. Se tal dissesse nas aulas de Português, o doutor Leão já lhe teria chamado pleonasmo vivo – ou és mais burro do que a Santa Madre Igreja te permite! Aqui, porem, o silêncio ouve-se, come-se, engole-se, mas não se digere.

Desembocam num buraco no meio da picada. Buraco feio, grande, debruado a pólvora queimada. Os militares jazem, espalmados, há sangue em barda, a folhagem chamuscada já não mexe. Agarram os homens, todos mortos, o sargento Gonçalves tem uma órbita obscenamente vazia, de onde ainda escorre a seiva vermelha que o recheava. Todos mortos.

Pela pontaria, pelos orifícios das balas, pela precisão do tiro, foi o Simões. Repara Jacinto, tem a marca dele, não engana. Mas Tomaz, quero lá saber se com z, o mestiço não matava toda esta gente, um a um. E, alem do mais, há a cova da mina rebentada. O Simões é mais artista, não entrava numa selvajaria destas, nesta carnificina. Pessoal, onde está o nosso capelão?





Aqui, amigo, aqui. Morto e bem morto. Os alferes aproximam-se, as lágrimas embaciam-lhes as retinas, mas não correm. Um homem é um homem e um gato é um bicho. Junto ao corpo do sacerdote, crivado e sangrento, está agachado o Maneiras, desconsolado, em pranto. Não grita, não berra, sussurra apenas mataram-no, mataram-no.

Um pincho e um brado

De súbito, um pincho e um brado de fera. A espuma corre-lhe pelos cantos da boca convulsa. Ah alentejano duma cana, que foi que tu viste para te pores assim? Jacinto e Tomaz, que se lixe o z, entreolham-se. O de Pias pifou. Endoideceu. Não aguenta mais. Agora, é evacua-lo para Luanda, interna-lo na psiquiatria, como é que se vai explicar à mulher que tinham conhecido, de barriga de seis meses, na Rocha Conde de Óbitos?

Vá lá, Maneiras, sossega. Já viste mais mortos. O nosso capitão Hipólito já sossegou, já ninguém lhe faz mais mal, está feito. Acalma rapaz, que a tua mulher e o teu filho precisam de ti bom e vivo, olha lá o que aconteceria aos dois se tu te fosses abaixo das canetas. Na nossa toca enfias umas bóbidas pelas goelas abaixo e pronto. Gente: vamos recolher os corpos e voltar ao aquartelamento.

O Maneiras resmoneia qualquer coisa, por entre os lábios cerrados sobre os dentes. Dois cordões de lágrimas abrem sulcos nas faces enegrecidas do pó, do suor, da raiva. Volta-se, lentamente para os oficiais e solta a boca num queixume. Caparam-no, os cabrões, caparam-no. E meteram-lhe a pica na boca, os filhos de uma carrada de putas. Caparam-no. O padre era um homem. Se calhar, fazia-lhe falta o aparelho. Caparam-no...

Ná, o Simões não fazia uma tal cagada. É outra loiça, apesar de... Jacinto abraça o Maneiras, Tomaz, de novo com z, abraça ambos. Graças com Deus... Caparam-no, amigos, caparam-no.

sábado, julho 15, 2006




A mosca do sonho

Antunes Ferreira
N
aquele preciso momento – e tal como dizia a Dona Célia, sua professora da quarta classe – gostava de ser uma mosca. Não tsé-tsé, a do sono. A vulgar. Na altura, os putos interrogavam-se o porquê de tal desejo. Uma mosca é um animal da merda, dizia o Faustino, que no Inverno costumava usar um casaco azul, com botões de metal, à militar, que a mãe dele lhe tricotara por mor do frio. E o Viegas, filho do sôr Jaquim da mercearia Estrela d’Alva, secos & molhados, ajuntava: da e na. Malta sacana mas afinada, a da Escola Primária n.º 114, ali a Palhavã.

Um dia, não se conteve e perguntou à digna senhora, viúva de um chefe de repartição das Finanças, o motivo que a levava a querer ser um tal insecto, chato e porco, que exigia o uso afincado do mata-moscas, instrumento apetecível ou, não o havendo, pano do pó até mesmo jornal enrolado manejado com presteza e pontaria. Claro, gente fina e de posses, utilizava a bomba do Flit, com embolo e depósito, mas que cheirava a remédio prós calos.

Dona Célia, toda de preto, como sempre, sorrira-lhe mansamente (procedimento habitual nela, principalmente para com ele, Justino de Oliveira Silva, mais conhecido pelo Justinho, dez anos, quase a fazer os onze) e explicara que muito gostaria de ser uma mosca para ver o que certas pessoas estavam a fazer e a dizer, sem que elas de tal se apercebessem. Sabes, menino, elas são aos biliões no ar, que mais uma menos uma tanto faz. Era esperta a Senhora. Esperta e boa.

Vamos por partes. Sem dúvida nenhuma que a Dona Célia tinha todos esses predicados, inclusive sabia uma porrada de esfortes, nada, não é assim, é estrofes dos Lusíadas escritos pelo Camões, aquele gajo com umas folhas de louro na cabeça e uma pala no olho, caté parecia o pirata da perna de pau. Grande poeta, o melhor de todos os que tivemos e muitos foram, comentava ela, enlevada, de olhos em alvo. E repetia, para consigo e para eles, grande poeta.

Remendão, o Virgílio?

Depois citava um tal Virgílio, nunca soubera o Justinho exactamente porquê. Dona Célia dizia que era uma comparação. Ná. Com o Virgílio sapateiro remendão, que tinha banca no vão da escada do 122 e os ameaçava de sovela em punho, quando eles lhe gritavam – de longe, não fosse o diabo tecê-las – ó marreco!!! Tinha a certeza que não se tratava do mesmo, não ia então a ilustre professora dar uma tal barraca. Quem seria, então, o outro Virgílio? Mistérios insondáveis da alma lusitana? Sabe-se lá.

Pois, sim senhores. Ali, estendido debaixo de uma GMC (diziam os mais entendidos que o camião era da II Guerra, mas que as Diamonds e as Matadores ainda eram mais antigas, e na tropa, a antiguidade era um posto) dava-se a desejar ser uma mosca, um moscardo, uma varejeira até mesmo um mosquito, por tais bandas eram às nuvens, os filhos da puta que passavam as febres e que por isso a malta era obrigada pelos das seringas a engolir todas as semanas um comprimido de…, de quê?..., ah, de camoquina.



Qualquer deles serviria. Assim disfarçado, um verdadeiro sonho – depois, porra, depois voltaria à sua fronha de Justino Oliveira Silva – voaria em planado até ao acampamento dos gajos, para observar o que eles estariam fazendo. Se calhar, como ele, algum estaria deitado, com o céu por tecto e não o veio da camioneta de carga, a pensar que gostaria de ser – um mosquito, igualmente. E se fosse? Andaria por ali, zumbindo como lhe competia, e picando de quando em vez. Homem, um gajo tem de cumprir o que lhe foi destinado à nascença. Até a Amália cantava assim.

E se o sacana lhe pudesse ler o pensamento? Aí, ele, Justino, para a malta Justinho, estava safo. O turra, assim lhes chamavam, ainda que ele achasse que se lhes devia apelidar de combatentes independentistas, depois de averiguar o que ele tinha na cachimónia, dar-lhe-ia não com o ferrão, mas uma festinha com a asa. Para lhe dizer que era assim mesmo, que a malta da pesada tinha direito a ser independente e que os tugas, o melhor que tinham a fazer era porem-se nas putas. E no Puto.

E lá viria de novo a ideia da deserção. Que lhe ocupava, pelo menos, um terço da massa cinzenta. Mas que, infelizmente, não podia ser. Fizesse-o e os pides agarrariam a Graça sua mulher com um miúdo na barriga e outro de chupeta, na alcofa. Foda-se, ele não tinha perdido tempo; ou antes, eles. Quando em vésperas de embarcar para a guerra, se tinham casado como manda a Madre Igreja, o prior Anselmo logo lho dissera. Tu o que não te falta é pontaria… Assim seja lá pelas Africas… Bom recado, que não encomendação, uma merda!

Na cama? Na guerra…

Ao longe – o que é nesta escuridão ao quadrado, da noite e da mata, o longe? Onde está? Quanto mede? Quanto pesa? O sotore Raminhos, na escola industrial, é que fazia essas perguntas todas, a propósito de nada e de tudo, em química, de que aliás o Justinho gramava à bessa – ao longe ouvia-se ribombar trovões, muitos, enquanto os flaches dos raios apenas passavam por entre a ramaria e as lianas.

Pronto. Estava de novo onde sempre estivera. Na cama com a Gracinha, fazendo coisas a que os outros chamavam indecentes, mas de que eles gostavam muitíssimo, entre lábios – de cima e de baixo – traseiros e mamilos mamados, pau erguido e bem oleado do cuspo e toma lá nos buracos, gostas? Muuuiiiito! Na escola onde já dava aulas, aos 25 anos, que ainda os ia completar, com a putalhada, malta fixe, que às vezes tinha de levar ponteirada, naturalmente, mas poucas.



E onde a espingarda automática? E onde as divisas de furriel, miliciano, tá visto, que não se usavam na picada? Que puta de vida. Onde é que encaixavam as botas, os polainitos, o camuflado, os carregadores, as rações de combate, o cantil e os comprimidos de olozone, ou lá o que era? E o paludismo? E as diarreias? E as rajadas de kalashnikov quase tão rápidas como os mosquitos? E as bazucadas?

A lembrança do vale musgoso da Gracinha levantou-lhe o desejo. Orifício mais próximo, só o tubo de escape da GMC. Outros havia, mas com pelos e os proprietários não colaboravam. A mão direita, já apressada, percorreu a braguilha. E logo a seguir explodiu em movimentos cada vez mais rápidos, à procura da satisfação, os dedos convulsivamente apertados. Ai Graça, ai Gracinha, se tu soubesses as saudades…

Terminada a solitária, esvaído, há uns tempos que não fazia tal, de novo a mosca: o gajo é homem e deve ter mulher; estaria ele a bater também uma pívia?

quarta-feira, julho 12, 2006



Azambuja, o fim da fábrica

Antunes Ferreira
O caso da fábrica da GM na Azambuja está para lavar e durar. A General Motors confirmou o encerramento em Dezembro. O ministro da Economia e Inovação garantiu que o caso tinha de ser exemplar. O Governo anunciou na terça-feira que pretendia exigir uma indemnização à empresa pelo encerramento da unidade fabril.

Manuel Pinho, durante uma conferência de imprensa, afirmou que «a General Motores assinou um contrato livremente e por isso acontecer-lhe-á o mesmo que a qualquer empresa que não cumpra os seus compromissos». Acrescentou que «ainda é cedo para dizer que tipo de indemnizações vão ser pedidas, mas naturalmente que este tem de ser um caso exemplar, porque o Governo tem sido muito generoso em termos de incentivar o investimento».

As declarações aos jornalistas foram prestadas depois de o Governo ter feito saber que vai processar a GM. Já antes, em comunicado, o Ministério da Economia e da Inovação afirmara que o contrato entre a construtora e o Estado previa que a GM atingisse «determinados objectivos, recebendo em contrapartida incentivos financeiros, fiscais e fundos de apoio à formação profissional, na ordem de dezenas milhões de euros», com validade até final de 2008.«Face a esta situação de claro incumprimento contratual, o Governo vai desencadear imediatamente todos os mecanismos legais e contratuais, de forma a ressarcir-se dos graves prejuízos que esta decisão acarreta para o país», adiantava-se no texto.

O comunicado referia ainda que seria tido em conta que a GM beneficiou de incentivos de fundos comunitários, pelo que «o Estado português não deixará, também, de sublinhar as implicações desta atitude da GM no âmbito europeu».

Repor exactamente o quê?

A
GM Europa manifestou-se, por seu lado, disponível para fazer uma devolução «apropriada» dos incentivos recebidos do Estado português para a unidade da Azambuja, que deverão ascender a 30 milhões de euros.De acordo com o jornal económico alemão Handelsblatt, o Governo português poderá exigir o reembolso de 30 milhões de euros à GM, já que a empresa tinha um contrato de investimento que previa a sua permanência em Portugal até 2008.

A companhia afirmou, ainda, estar disposta a cooperar «de uma forma construtiva» com o Executivo de José Sócrates na procura de novos investidores para a Azambuja. Referindo ter reunido várias vezes nos últimos meses com o Governo português para discutir a situação da unidade da Azambuja, a GM adianta ter apreciado os esforços do Executivo para «identificar soluções que permitissem reduzir o diferencial de custos» de produção, o que não foi conseguido.

Face a isto, a Oposição manifestou o seu desagrado pela situação, acentuando o problema que daqui resultará para a economia e para a força de trabalho portuguesas. O que é perfeitamente natural. Já não o é, no entanto, a posição do deputado do PSD, Senhor Marques Guedes, que declarou que o Executivo socialista era o culpado da situação por ter usado uma estratégia errada nas negociações com a GM.

Se calhar o Senhor Deputado entende que o Governo devia ter comunicado aos alemães que Portugal, só para não ver partir a GM da Azambuja, estavadisposto a aumentar de conta e risco próprios as isenções já existentes e, ainda,a repor o diferencial de 500 euros por unidade ali produzida, quantia que era utilizada como argumento de peso pelos construtores. Em tempo de contenção, seria assim que o PSD governaria?

Ah, quão longe vai este senhor que há tanto tempo se senta no hemiciclo, das posições probas e verticais de seu Pai e meu professor de Direito Constitucional. Como dei antes a entender, a procissão ainda nem saiu do adro. Veremos quais serão, como se diz nas telenovelas, as cenas dos próximos capítulos. Com o Deputado Marques Guedes, ou sem. Com a viola no enterro – ou sem.

terça-feira, julho 11, 2006


Sentinela, alerta!

Antunes Ferreira
M
aldito sono que o deixa arrasado. Não se pode estar de sentinela e dormir. Claro, há o regulamento. Mas, sobretudo, é a vida dos camaradas que passam pelas brasas e que se ele se deixa embalar pela proposta sacana do papão vai-te embora, de cima desse telhado, podem ser lixados até à pedrada. Os gajos sabem perfeitamente que a tropa está ali, na picada, rodeada de mata por todos os lados, pior que ilha em águas revoltas.

Ganda merda! Mal sabia o pai António Fogaça - quando se pusera na Albertina, a coberto do escuro - que o filho então fabricado iria dar com os costados a uma puta duma guerra em que ninguém sabia muito bem qual era o seu papel, a não ser safar-se sem grandes makas. Já assim dizia o Zé Fogaça, natural da freguesia da Comenda, concelho do Gavião, cooptando o linguajar dos angolanos. Complicações, se preferirem.

Um cigarrito ajudaria a passar as horas. Nem toma conta delas, se levantar a manga do camuflado para mirar o relógio, o vidro do mostrador é uma armadilha. Vá que dê reflexo. E lá está um cabrão a levar com um balázio nos cornos, que nem sabe donde veio – e nem de que morreu. Quanto a pitillo, estamos conversados. É mais do que proibidíssimo. É conselho de guerra e pode dar fuzilamento.

Homessa? Uma gaita. O esfolar do fósforo daria para iluminar o primeiro alvo: ele. Depois, iriam os outros que de tão ensonados bem poderiam ser apanhados à mão, esganados, enrabados, sabe ele lá. Entretanto, porque lhe havia de chegar à mona o pitillo espanholês? Poderia ter pensado em beata, em pirisca, em muita coisa mais. Mas, porque raio a espanholada?

Pitillos e boquilhas

Se calhar porque se recorda – na peleja contra o cabrão do sono – da Mercedes de Fuentes Bajas, gaja a caminho dos entas mas ainda apetecível, o azeviche do cabelo, as tetas opulentas, embora já a pingar para baixo, rompendo meias solas a preceito, muita malta ainda lá ia, incluindo ele, era só dar um pulinho, estava-se do lado, já não guardavam nada as muralhas de Belver.

Em noites que nada tinham a ver com esta empedernida, a Merci usava boquilha longa, de baquelite preta, dizia ela que era por el cine, vaya. E o pitillo, um tudo-nada cambaleante na extremidade do artefacto, tinha, então, uma dignidade dúbia e um sabor especial. A ninfa fumava que nem uma chaminé, sem cagaços de cancros e merdas assim. Si no te mueres hoy, te matan mañana, dizia entre gargalhadas e fumaças brônquicas.

Fogaça júnior – júnior o caralho, desde que fora às sortes, amochara na recruta e agora tentava escapar a salvo em Angola, passara a sénior, e sabe deus se chegaria a internacional – tenta dar a volta por cima. Apura o ouvido. Parece-lhe escutar um remexer do capim. Não é nada, como diz o alferes Matos, é só o barulho das luzes. Mas agora, não. Primeiro, não há luzes nem sequer luar. Ou se há, está embrulhado em folharia.

Depois, o Zé nem tem a certeza se foi barulho, se é barulho. Talvez cobra. Na Comenda, ainda que não tivesse muitas, havia-as, entre o castanho e o amarelo, pequenas, de escamas certas mas sujas do rastejar. De catraio se habituara a elas, a espetar-lhes uma cana afiada no toutiço, depois de as fazer rabiar.

Aqui, porem, a loiça é outra. As cabronas são grandes, enormes, algumas, chama-lhes boas, que não são, bem pelo contrário. Engolem uma pacaça inteira depois de a esmagarem, enroladas à volta dela. E ficam a esmoer esse boi do mato, só com os cornos do animal fora da boca, até caírem pelo resto ter sido digerido.

Passado o prazo

Há outras, esverdeadas, camufladas de ervas, quais camaleões venenosos a confundir-se com o ambiente, fugidias, insinuantes, rapidíssimas. Muitas delas não são mortais, diz o maqueiro Aniceto, mas vá lá um tipo fiar-se num badameco que era ajudante de auxiliar de praticante de sapateiro na vida civil. E ainda que o nosso cabo diga que tem antídoto para as picadas, nada de experimentá-lo. Pode já ter passado de prazo.

De umas nem de outras há que esperar o que quer que seja de bom. Da-se! Nem pouco mais ou menos, com estas não se brinca, nelas não se espeta cana, olha lá, nem pensar. Vá lá, foi-se o olhinho maroto a fechar-se como quem não quer a coisa. Agora é que valia a pena um pirilampo, se os houvesse. Talvez que o cu iluminado do insecto lhe permitisse ver do que se trata ou se, o mais provável, nada é.

Da massa de gente espapaçada pelo chão de terra vermelha levanta-se um vulto titubeante. Quem vem lá? Ó compadre, deixa-te de porras, sou eu o Olivais, que vou arrear o calhau. Pois que vá. Mas primeiro, ó sacana, avança ao reconhecimento. Avanço o tanas, que ainda me borro pelas pernas e já vou de calças na mão. Está quedo: nem te amolgo a moleirinha, nem fujo. Não tinha para onde, ó alentejano de terceira.



Olivais dá mais uns passos. Cinco? Seis? Os últimos. Nem gritou. É só o estrondo tremendo e o vento de mina que atira o Fogaça de costas, para trás. E o fumo negro que nem o cabelo da Mercedes y olé, e o cheiro a enxofre da pólvora. Alem do engenho, saltou tudo o mais, ou seja a malta por atacado. Umas vozes mais alteadas, logo abafadas em sussurros interrogativos. Quem se foi? Noutro lugar e momento seria o que foi? Aqui...

As coisas, por piores que sejam, tendem para o acalmanço. Começam a reunir-se as tralhas, não há tiros nem nada, apenas flutua no ar denso e opressivo da mata um odor a «incidente mortal» como lhe chamará amanhã, daqui a dias, quando, logo se verá, o gajo das Informações das Forças Armadas, nossas. Os outros, dirão de forma substantivamente diferente. Feitios. De uma guerra estúpida, injusta e cruel.

Ó tu, diz o nossalferes: traz uma pá para apanhar o Olivais.

segunda-feira, julho 10, 2006









A marca do zor... golo

Braz Ferreira

Nestes últimos dias só tenho ouvido falar que já é muito bom estarmos entre os quatro primeiros do Mundo. Sem dúvida é bom mas, por favor, não nos regozijemos com isso. Muito melhor seria, e esse é o objectivo de todos os participantes na Copa do Mundo, sermos campeões.

Ah, mas a sorte não esteve do nosso lado... Pois é e nunca estará se não marcarmos golos, que é o objectivo final de toda e qualquer equipa de futebol. E a nossa foi incapaz de atingir esse objectivo. Senão, vejamos.

Portugal não teve nenhum goleador entre os melhores desta Copa. Ah, o Maniche com dois golos, mas não está nos cinco primeiros. Dos quatro finalistas (ah, estamos entre os quatro melhores) Portugal foi o que marcou menos golos: Alemanha 15 golos em seis jogos, Itália – 11 golos em seis jogos, França – 8 golos em seis jogos e Portugal 7 golos em seis jogos (sem contar os penalties). Notem: escrevo antes da final.

Os nossos grandes goleadores (?), tais como Pauleta foram simplesmente inexistentes. Mas a sorte não esteve connosco, me poderão dizer muitos. Pois é, mas em futebol quando não se marcam golos só se depende da sorte e ai se ela não marcar encontro connosco... Já dizia um grande treinador brasileiro: «Em futibol quem não marca, leva.» E nós levámos...o quarto lugar para casa.

Ah, mas estamos nos quatro melhores. Até parece aquela do cara que entre todos os vizinhos era o único que não tinha carro, por falta de posses.
Aí, dizia a todos que era melhor para a saúde, pois andava a pé. Até pode ser, mas que não tinha carro, não tinha!

Eu pessoalmente até gostei bastante do trabalho do Mestre Scolari. Mas equipa que se quer vitoriosa, tem de ter o pique até ao final, tal como a França. E Portugal não teve. Embalados pelas 13 vitórias seguidas (perdão 13 não derrotas, é bom lembrar), talvez tenhamos pensado que a sorte nos ia dar mais duas, e por acaso as mais importantes da nossa história futebolística. Mas a sorte não marcou encontro connosco nem nos favoreceu, assim como os nossos goleadores.

Não quero de jeito nenhum ser técnico de futebol, nem substituir o nosso coach mas porque é que ele insistiu tanto em Pauleta, que fez uma Copa de baixíssimo nível? Porquê ter utilizado um Deco que vinha de uma parada por lesão, e consequentemente fora da melhor forma? Porquê insistir tanto em Cristiano Ronaldo que, se pudesse, jogava sózinho os 90 minutos (se não houvesse prolongamentos é claro).

E sempre com aqueles passinhos, que já todos os defesas daqui e dos arredores conhecem de cor e salteado. Eu sei que depois de casa roubada trancas à porta, mas, mesmo assim, ainda posso perguntar: Porquê não ter utilizado mais o Nuno Gomes, que pelo menos fez um golinho jogando só alguns minutos? Não é, Senhor Pauleta?

E sem golos não se podem ganhar os jogos nem ser campeão do mundo. Hoje poderei dizer em alto e bom som, que estou indignado. Porquê me perguntarão vocês. Simplesmente porque perdemos a Copa que poderíamos até ter ganho.
No jogo contra a França poderíamos ter ganho, mas os nossos atacantes decidiram brilhar pela ausência.

Se tivéssemos mais Maniches, mais Migueis, mais Ricardos Cravalhos, mais Ricardos e, até, mais Figos, talvez nem precisássemos de sorte. Isto porque o nosso Figo nacional até foi um dos mais combativos nacional e já em final de carreira. É o momento de colocar Costinhas, Petits e outros na reserva e chamar gente nova. Hoje em dia no mundo dos negócios quem não ousa ou não inova tende a desaparecer. No futebol é absolutamente a mesma coisa.

Inove Senhor Scolari, ouse, pois nós estaremos com você.

NR - A opinião acima é apenas a do autor que assina o texto e, portanto, apenas o responsabiliza. Neste blogue é assim que as coisas funcionam: a liberdade é a liberdade, não sem adversativas, muito menos condicionais, de modo algum parentéticas. O titular do travassadoferreira sou, como sabem, eu. E não estou de acordo com o Braz Ferreira que, creio que bastantes o sabem, é meu irmão. Irmãos, irmãos, opiniãos, digo, opiniões à parte. Isso nunca poderia significar que o censuraria. Para delitos de opinião já tivemos que chegasse. No tempo da ditadura.

Tenho-o repetido n vezes: a diferença é mais do que salutar - é essencial. Se não se reconhecer o direito a ela, é porque não se reconhece direito ao que quer que seja. Isto é, porque se fuzilou a Liberdade. Há, ainda e por algumas partes, infelizmente, quem o faça. Aqui não. E há ainda e também que a exprimir sem quais quer peias. Não há liberdades: há, tão só, a Liberdade.

Alem do mais, se todos gostássemos do amarelo, ainda que com tonalidades diferentes, este Mundo seria uma pasmaceira uniforme, sem curvas nem atractivos. Uma chatice. Juntem-se-lhe o azul, o vermelho e por aí fora e temos uma paleta, até mesmo um arco-iris. Que é símbolo de muitas coisas mas, sobretudo do espaço infindo dessa Liberdade. E disse.
A.F.


Foi muito bom! Ficámos entre os quatro maiores do Mundo, apesar da FIFA!... Vivam os Conquistadores! Viva Scolari! Viva Portugal!

sexta-feira, julho 07, 2006





Perspectiva económica melhora


A «tragédia económica portuguesa» avoluma-se com o andar do tempo. Está visto que tal se verifica nas cabeças e nas afirmações dos sabichões, dos especialistas, dos derrotistas, dos falsos profetas, enfim dos que não querem ver que algo está a mudar, ainda que, tal como aqui tenho vindo a escrever, com passinhos curtos. Que, porem, levam a avanço paulatino. Devagar se vai ao longe? Também aqui se deseja que não seja a passo de caracol, muito menos de caranguejo.

Já por diversas vezes tenho abordado a questão e, de acordo com o que me chega, diversas entidades que se presumem insuspeitas têm referido que os indicadores económicos vão melhorando. E o que é mais interessante: a constância desses números e percentagens positivas, numa escala gradativa que melhora mês após mês.

Tome-se novo exemplo. Antes do mais, tenho de fazer umas perguntas: será que a Organização para o Comércio e Desenvolvimento Económico, OCDE, está feita com o Governo Sócrates? Será que os socialistas estão a pagar somas chorudas à Organização para que esta emita informações falsamente favoráveis par o nosso País (e para eles próprios)? Será que, a ser deste modo, a OCDE se arrisca a perder a importância e o prestígio que tem?

Estas questões decorrem de uma nova informação produzida por esta Entidade sediada em Paris. De novo agradável para Portugal. De acordo com os supracitados «sabões» se alguma coisa cresce entre nós, são as dívidas. E as dúvidas, acrescentam, existem, principalmente sobre quem emite notícias, opiniões, comentários e/ou pareceres referentes à economia lusa - com sinal positivo. Já aqui o tenho dito e redito: há um conluio a nosso favor de diversas pessoas e organizações, com exclusão da FIFA, está claro.

O indicador avançado da OCDE para Portugal voltou a subir em Maio, pelo décimo mês consecutivo. Em Abril, o índice português já havia atingido a maior pontuação em cinco anos. O indicador, que mede o comportamento da economia e a perspectiva de crescimento, chegou a 100,1 pontos, 1,3 ponto a mais que no mês anterior - maior que o aumento de Abril em relação a Março, de 0,7 ponto. Segundo os dados divulgados pela OCDE, o nível é o mais alto desde Março de 2001.

A taxa de variação a seis meses - que identifica pontos de mudança do ciclo económico com uma antecedência de nove meses - também continuou a melhorar para 6,9% em Maio, o que representa um acréscimo de 2,2% em relação a Abril, indicando desta maneira, o crescimento da actividade económica em Portugal.

E a finalizar, a Organização informa que o aumento do indicador para Portugal ficou acima da média do conjunto dos seus 30 países-membros, que melhorou pelo décimo terceiro mês consecutivo: 0,1 ponto percentual, para 109,9 pontos.
A.F.


Uma Pedra do Feitiço


Antunes Ferreira
C
hove. Chove muito. Chove em catadupas. Uma verdadeira Niagara. Um bando ignóbil de meteorologistas mancomunado com um tal Pedro, porteiro celestial encarniça-se contra mim. Os pulhas por certo abriram as comportas da barragem das Nuvens. Trata-se de traição oriunda de tais conluiados, ao pé dos quais os Quarenta do João Pinto Ribeiro são (foram...) criancinhas de infantário.

Venho de Santo António do Zaire, ou mais precisamente da Pedra do Feitiço a que chamam também Emídio de Carvalho, nome de tenente. Da cidade da foz do rio fui até lá para transportar uma peça de artilharia – sem munições. Esta puta desta guerra tem singularidades que não lembrariam nem ao mais pintado. Dou por mim a pensar com os meus botões que a peça em causa é mais de teatro... que de militança.

Porém, os estrategas militares entenderam que um canhão desactivado, desactualizado, degradado, até mesmo depravado, plantado na Pedra seria um excelente argumento para «dissuadir o IN que por ali tentasse passar» – e passava. Vá-se lá dizer-lhes que não... Anote-se: IN em língua castrense quer dizer inimigo. Na picada, o tuga quer lá saber dessas subtilezas fardadas. É o turra e ponto.

O Zaire é um rio majestoso. Subi-lo de Santo António até Nóqui, já na fronteira com o Congo Kinshasa, dizem-me ser uma viagem inesquecível, pela grandeza dele, mas também pela beleza selvagem da mata que o abraça, pelos matizes de verde, enfim. Os tipos da Marinha andam por lá, no troço angolano, eu vi-os, nas suas lanchas, com nomes fora do habitual, a Rigel, a Pollux, a Espiga, a Régulus e outras. Disse-me o segundo tenente da Reserva Naval Pires Martins que os percursos vão das muílas ao canal internacional e as ilhas.

É da Pedra que trago no MVL – creio que já desvendei a sigla, mas, na eventualidade de..., são as colunas de reabastecimento, Movimento de Viaturas Logísticas – um grupo de Flechas e um prisioneiro alegadamente pertencente à UPA. Os Flechas são uma verdadeira tropa negra, auxiliares da PIDE, com pré a sério e direito a saque. Temidos pelos patrícios, são terríveis em combate.



Um prisioneiro de joelhos

O
preso, vem no camião número 12 da bicha de veículos que, incluindo os burros-do-mato e os jipes da tropa, regista 28 viaturas. De joelhos, (em permanente oração?) tem os pulsos bem atados aos tornozelos não vá o diabo tecê-las. O Mendes, que é o subinspector da polícia política naquelas bandas é baixote. Chamam-lhe o Mendinho, trocadilho com o dedo mais pequeno. Recomendou-me a maior atenção ao homem que diz chamar-se Sabonete João, mas não tem bilhete de identidade a confirma-lo. O sacana, bem apertado, vai cantar que nem um melro. Em Luanda sabem da poda, disse-me o mini-pide.

O MVL pára no Caxito, onde está sediada uma companhia comandada pelo capitão miliciano Baltazar, meu colega no Camões, fiteiro, amante de copos, muitos, e de mulheres diversas, cada cor seu paladar como se diz dos chupa-chupas. Estamos em Novembro. Faz um calor filho da mãe proporcionando à gajada um banho de suor, de imersão. E à borla.

No lado direito de quem entra na parada do quartel, há um embondeiro que luta desesperadamente contra a canícula e, assim, proporciona uma sombra aveludada que, assim, serve de refrigério aos que se cansam, justificadamente, da torreira do Sol. O pessoal salta da caixa da Berliet, e um dos Flechas pergunta-me se pode pôr o preso Sabonete à sombra. Não vejo nenhum inconveniente, no que sou acompanhado pelo Baltazar.

Eu fica na guarda do gajo

Mas, o lançador de sugestões não se fica por aqui. Se o meu tenente não lhe vê inconveniente eu mesmo fica na guarda do preso... Que maricas de inconveniência. Pois que fique – e que lhe fique bem. Viramos-lhes as costas, a caminho do comando, em busca de fresco e de whisky com dez quilos de gelo e muita soda. O deserto do meu céu-da-boca, na expectativa do refrigério, já nem o sinto, com tal receita a escassos metros.

Ainda mal eu começo a perguntar ao Baltazar que tal vão as coi... e um grito desumano, faz-nos olhar para trás. Não quero acreditar no que vejo. Horrendo e verdadeiro. O preso esperneia aos arranques, parece um repuxo, jorram-lhe golfadas de sangue da garganta, que já se espalham pelo chão, qual vampiro sequioso. Ao lado, o Flecha, direito, na boca uma massa vermelha e branca, pingando também sangue em abundância.



Dante e o Inferno

Ah meu grande cabrão, atiro-lhe enquanto o agarro pela gola do camuflado. Ah meu grande cabrão! Que te deu na mona para fazeres uma tal cagada?! Voa-me a mão direita para as trombas dele, e não se defende, limita-se a apanhar, com a boca ainda cheia de carnes, traqueias, laringes, eu sei lá que mais. O Baltazar agarra-me, ó pá não me copules, ainda matas este filho de uma carrada de putas e depois és tu que te fodes.

A maralha vai-se juntando à volta, numa expectativa próxima do linchamento, de olhos desorbitados do espanto comum. O preso, esvaído, já não esperneia, ainda peado, mas já nem se mexe. Morreu. De morte macaca. Dos lábios grossos do Flecha, continua a pingar um misto de sangue e cuspo. Cospe para o lado, atirando fora os gorgomilos do assassinado que arrancou com uma só dentada.

Mais calmo, ou menos histérico, volto a perguntar-lhe, enquanto o Baltazar lhe apreende a G3 e outros apetrechos bélicos, porque raio que o parta fez aquilo. A imagem entra-me pelas pupilas dilatadas e anicha-se algures, em mim, que não localizo nem me dou ao luxo de o fazer. É um pouco como uma célula cancerosa. As metástases estão difusamente por lá, mas nunca se sabe bem onde.

O Flecha, que nem uma seta: «Meu tenente, eu fez nele o que o bandido fez no meu pai, no nosso sanzala, em Sanza Pombo, no ano da grande maka: Ele atacou com catana, eu fugiu na mata, era miúdo, deu pra safar. Vi, dentro do capim, esse bandido fazer o que eu lhe fez no soba que era o meu pai. Lhe arrancou as goelas com uma dentada. Eu tinha só oito anos, mas viu. Jurou mesmo que se algum dia lhe apanhasse, lhe faria o mesmo. Hoje, lhe apanhei!»

Dante Alighieri enganou-se quanto ao Inferno. É hoje, aqui.

quinta-feira, julho 06, 2006



De bestial a besta...



Antunes Ferreira
F
oi o Tavares da Silva, parece-me, que escreveu que os treinadores de futebol um dia (quando ganhavam) eram bestiais, no seguinte, se perdiam, umas bestas. Acrescento eu, imodestamente, pois nem penso comparar-me ao ilustre fundador de A Bola, que os técnicos são todos iguais, só que uns são mais iguais do que outros. Não sei a quem hei-de pagar o copyright, pois a afirmação não é minha. Mutatis mutandis, se colocarmos o vocábulo homens no lugar de treinadores, temos a afirmação mãe.

O Barão de Coubertin disse – saudosos tempos, esses – que ganhar e perder, tudo é Desporto. Assim fosse, actualmente, mas todos sabemos como as coisas andam. Para uns o Scolari sempre foi um camafeu, nem treinador nem seleccionador, uma «coisa» inventada pelos media.Para outros, a maioria, um Senhor que ganhara muita coisa, incluindo o anterior Campeonato do Mundo em 2002, na Coreia do Sul e no Japão.

Sublinho que escrevi do Sul porque do Norte apenas vêm dislates, alguns mesmo criminosos. As últimas cenas do lançamento de sete mísseis intercontinentais é disso um bom exemplo. Num país despoticamente governado por um Kim Jung Il, sucessor do seu querido e falecido pai, Kim Il Sung, onde a população é subalimentada, para não dizer que passa fome, estas diletânticas atitudes têm que ser denunciadas.

Recorde-se que, em 1966, na cavalgada dos Magriços a caminho da final, só interrompida pelas manigâncias dos anfitriões bifes, com a complacência da FIFA, foram os coreanos nortenhos que lhes (e nos) pregaram um susto maior do que o pico do Everest. O abono de família que então envergava a camisola das quinas, um tal Eusébio da Silva Ferreira é que nos safou do desastre.

Não levou sicrano e beltrano

Ora vejam lá: como muitas vezes me acontece, entrei pelos devaneios politico/desportivos e quase me esquecia do que aqui me traz. Peço, portanto, mil desculpas a Vocências. O Felipão, dizem os que o abominam, não é seleccionador que se veja, nem é treinador que se aplauda. Tomem-se exemplos: não levou o Quaresma, não levou o João Moutinho, não levou o Abel, não levou o João Tomás, entre outros.

Preferiu escolher o Costinha, o Ricardo Costa, credo, o Postiga e mais alguns que não deram uma para a caixa, como o Deco, o Estoirado. No que concerne a tácticas, pura e simplesmente o cara não as ensina, porque não sabe bem o que são. Psicólogo? Melhor se diria teimoso com um burro. Amigo do seu amigo? Mal educadão, grosseiro, sempre encostado à Senhora do Caravaggio que não é para estes trotes chamada, ou, no mínimo, não devia sê-lo, mas é.



Porra! Mas o brasileiro ganhou jogos a fio à frente do time nacional e só perdeu no Allianz Arena com a França, ainda assim de penalti – que eu creio que foi mesmo. Mesmo para aqueles que dele gostam, e que são muitos, terá sido bestial nesse tempo de vacas gordas, e despromovido a besta pelo desaire na meia-final de Munique. Somos, realmente militantes do oito ou oitenta. Não ganhamos nada com isso. Mas persistimos, desrazoadamente.

Quando Luiz Felipe Scolari cantou o hino nacional, saltaram as perguntas mais descabeladas. Ora o gajo! Quem o mandou cantar A Portuguesa? O que ele quer é dar-nos graxa. Que cante o deles, se é que o sabe... O Sargentão, uma vez mais, não se calou. Se era isso o que os pseudo-críticos/pseudo-intelectuais queriam, aconteceu. Mas não por vontade deles. O responsável único pela equipa de todos nós veio a terreiro e falou como sempre faz: com a boca toda.

Pode ser que não lhe tivessem explicado, antes de vir para cá, esta mesquinhez tipicamente portuguesa. Pode ser que assim tivesse acontecido, mas daí não viria (como não veio) mal nenhum ao Mundo. O planeta azul continuou, imperturbável, a fazer a sua translação simultânea com a rotação. O homem que bateu o pé (e ganhou) ao então seu Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, não se iria assustar com tal aviso premonitório.

Penso que convém aqui relembrar que tudo se passou em redor da não convocatória de um monstro chamado Romário para o Mundial de 2002. Scolari disse que não – e cumpriu. Para alem de Fernando Cardoso, mais uns quantos milhões de brasileiros foram na mesma onda. O técnico foi objecto doa ataques mais directos ou mais enviesados e dos insultos mais grosseiros. Contra tudo isso, levou a sua avante. E trouxe a taça para Brasília.

Sorte malvada

Faltou a sorte ao encontro que Portugal marcara com ela. Há noites assim. Só que, neste caso, já basta de. Se os do grupo de família nacional tivessem descoberto o caminho terrestre para Berlim – outro galo cantaria. O de Barcelos, obviamente. Assim, o cocóricó saltou do bico do galo... galo. Monsieur Domenech, um treinador de segunda, promovido de última hora, será, agora, o bestial para os franceses, sobretudo.

Mas, disso não restem dúvidas nenhumas, pelo seu lado, Felipão não é uma besta. Nada disso, bem pelo contrário. Não será simpático para muitos. É o que é – e a mais não é obrigado. Uma maioria larga de portugas quer vê-lo, sem hiatos nem soluções de continuidade, como seleccionador nacional. E, até mesmo, prudentemente, sem cantar o hino português. Os passos para trás sublinhados por Costinha e por Figo são elucidativos.

O próprio Chefe do Governo de Portugal, José Sócrates, que assistiu ao jogo, declarou no final do mesmo que estava orgulhoso perante o que se passara no relvado. «Temos de saber perder, mas custa muito perder sem sorte, como foi o caso.», acentuou; e que acrescentou que «a selecção fez muito por Portugal.»

Isto, apesar de haver os habituais que comentaram que a selecção tinha perdido porque o primeiro-ministro viera de Lisboa só e exclusivamente para ver a passagem da equipa de todos nós à final de Berlim. Pelos vistos, não fazia lá falta nenhuma. Foi, continuam os do bota abaixo, somente para nos trazer o azar. Viagem de mau olhado.

Deixemo-nos de fitas, de tretas e de fantasias. Sonhámos ser campeões do Mundo. Talvez exageradamente. Voltamos ao que sempre fomos, ou seja, ao oito ou... Repito: ao oito ou...

quarta-feira, julho 05, 2006



Carruagem para Lisboa


Antunes Ferreira
P
elo andar da carruagem é que se conhece quem lá vai dentro. O rifão popular é dos mais insidiosos e mordazes que o Povo produziu. A arraia miúda dos nossos Fernão Lopes e Gil Vicente tem uma sabedoria que lhe vendo sendo transmitida há séculos e séculos e séculos. Os Senhores Doutores falam da carga genética, dos cromossomas, dessas coisas que a populaça não entende. Dizem mesmo que as crianças já vêm programadas de forma diferente.

Penso que esses especialistas querem, no fundo, dizer que os chips invadiram os genes para os eliminar ou, pelo menos, para os substituir.
E o Zé Povinho nickles. Bordalo não era dessas frioleiras. No seu tempo não havia nada disso. Ninguém imaginava que a ovelha Dolly seria clonada em 1996, dando origem a um gigantesco engarrafamento de ideias, à mistura com declarações mais ou menos científicas e com anátemas mais ou menos religiosos.

Bordallo Pinheiro, nas suas Caldas fazia do barro o que lhe apetecia. Como ferramenta principal, alem das mãos, tinha a imaginação associada à criatividade. Se bem que à época não fossem muito usuais tais termos, a verdade é que se produziam obras primas por dá cá aquela palha. E as argilas moldadas, pintadas e levadas ao forno para cozer eram isso mesmo, obras cuja colateralidade familiar não precisava de adjectivos geométricos.

Pois então, é pelo andar da carruagem, que se conhece quem ela leva dentro. Hoje somos mais autos. As primeiras já deram o que tinham a dar, os equinos que as tiravam hesitam entre a coudelaria e a praça de touros, entre os dotes hípicos e os poucos talhos que ainda sobrevivem. Salvam-se os burros italianos com o carpaccio asinino. Salvam-se, uma gaita. Para entrarem na cozinha – é porque não se salvaram do açougue.

Ao que se dá conta pelas rodovias lusitanas, os carrinhos dos portugas são, em boa medida, carrões. É ver passar Mercedes, BMWs, Audis, Bentleys, Jaguares, e jipes dos subsídios, de belas e abastadas cilindradas. Mas não só nas ruas, nas estradas, nas auto-estradas. Veja-se o que se passa no todo o terreno. Não há Baja nem dança onde não esteja carro de «poupança.» E de malta a encher a pança. Os chamados utilitários, de pequena cilindragem, mesmo com o já vulgaríssimo ar condicionado, não se notam muito. A massa está caríssima.

Confessamo-nos quase sempre muito infelizes. Ou é o Estado que não nos enquadra (do Governo, nem se fala), ou é a União Europeia que não nos subsidia, ou é a Santa Sé que não há maneira de santificar, num ápice, os pastorinhos, ou é – e principalmente – a gajada da FIFA que nem meteu o Ricardo entre os cinco melhores guarda-redes do Mundial 2006. Somos, assim e maioritariamente uns desgraçadinhos. No antigamente, eram as letras dos fados. Hodiernamente, somos os últimos da Europa Unida em praticamente todas as disciplinas. Excepção feita aos acidentes nas estradas, ao índice de SIDA, ao insucesso escolar e uns quantos mais, em que somos… os primeiros. É triste.



Quarta-feira, um quarto para as dez da noite. Um penalti, aliás verdadeiro, impede a selecção nacional de chegar a Berlim. Resta-nos Estugarda onde discutiremos com os donos da casa, o terceiro lugar. Achtung! Diese Freunden sind sehr gefährlichen! Não são uma grande equipa, têm cinco esquemas de jogo, mal medidos, mas estão repimpados num sofá da sala de visitas deles. À nossa espera, com uma grande caneca de cerveja na mão.

Ora aqui temos. Tal como vai andando a carruagem, tudo indica que os Herren que nela viajam estão preparados para se vingarem em nós da maldade que os croissants lhes fizeram. E nem podem o Felipão e o seu grupo unido (que só ontem foi vencido) argumentar com o facto dos Galos Tricolores terem-nos vencido, aos Galos de Barcelos. Numa luta de Galos alguém tinha de ganhar. Nestes preparos, empate não vale. E os alemães para algum lado se têm de atirar. Oxalá seja o errado.

Depois, há que enrolar as bandeiras, dobrar os cachecóis, fazer as malas e voltar para o torrão natal. Uma vez mais: pelo andar da carruagem quem vem lá dentro são os bravos Conquistadores, ainda que não tenham conquistado o canecão. Há que agradecer-lhes o terem-nos relembrado e devolvido - o direito ao sonho.

terça-feira, julho 04, 2006




Oficial de Noite

Antunes Ferreira
Ter ido para Angola com a farda do Exército enfiada não me parecia bem. Antes do mais, porque eu não havia licitado, muito menos comprado, aquela guerra. Bem pelo contrário. Até defendia o direito inalienável à independência não só daquela colónia, mas de todas que Portugal matinha, alegadamente para defender a «civilização ocidental.» Para o que, de resto, ninguém o tinha mandato, sequer mesmo passado delegação.

Chegam-me aos lobos cerebrais estes pensamentos sem considerandos, enquanto faço por não dormir, na salinha de Oficial de Dia (porra, devia ser era Oficial de Noite e com insónia). Mesmo assim já passei por umas brasas apagadas, pois com a caloraça que faz, nem cinza quente, quanto mais carvão. Na Rádio Ecclesia (do padre Zé Maria) os Beatles vivem no Yellow Submarine. Pois que lhes faça bom proveito.

Deixem-me que vos diga: eu até gosto à brava dos Carochas de Liverpool. Mas no mornaço pesadão que nos envolve, encapuçado em cacimbo e de serviço na CCS/QG – iniciais que querem dizer Companhia de Comando e Serviços do Quartel-General – da RMA (mau; é a Região Militar de Angola, foda-se!) bem me importam os liquidificadores de corações imberbes de virgens & arredores.

Puxo umas fumaças tossicadas de um Hermínios. A malta chama-lhe o preto em maço... Sempre gostei de tabaco preto. Porem, o magro soldo de que sou vítima não me permite grandes folestrias. Gitanes? Excelentes, mas nem pó. No tampo da secretária, pacificamente metida no seu coldre, situa-se a Walther regulamentar, qual ilha no oceano de linóleo preto. Gotinhas de suor perlam-me a testa. O lenço ensopado é como a água com sal: já está saturada; já não aceita mais. Que filho da puta de tempo.

Indígena ou autóctone?




Depois de amanhã é Dia de Santo António. Já se estendem pela cidade, sobretudo por São Paulo, Quinaxixe e Ilha, uns quantos festões multicores, desmaiadotes, até mesmo uns balões/harmónio quase prenhes e serpentinas à brava. Preparam-se as sardinhas importadas em gelo, directamente do Puto ou da África do Sul. O sal, esse, é local, presumo. E, tanto quanto sei, o carvão é igualmente indígena. Alto. Indígena não, que o Acto Colonial já não está em vigor. Autóctone. Autóctone é que é. O Imposto de Palhota agora é Imposto Geral Mínimo. A bem da Nação.

Das casernas vem um rumor surdo e negro. A noite ajuda, está escura como a alma de um condenado à cadeira eléctrica. Os soldados revolvem-se nas tarimbas. Também eles sofrem com o calor que se infiltra por entre os lençóis e pela pele adentro, por mais carregada que seja. Quer metropolitanos, quer pretos sofrem dos mesmos males e das mesmas carências. E, se estas, qualquer mão de dedos apertados resolve, os outros fiam mais fino. E se a palma tiver pelos...

O santo casamenteiro é bivalve: tem duas conchas, portanto. Lisboa e Padova, que a malta usa dizer Pádua. Para nós, nados na capital do «falecido império, RIP» o gajo é alfacinha, sem margem para dúvidas. As bilhas das namoradas são de Alfama e ponto. Por tais bandas é que a festa é. Só de pimentos pr’assar, ó freguês, trouxe três sacos da Ribeira. E o tintol é do Cartaxo, daquele que tinge as malgas.

Por aqui, desconsoladamente, é de capacete, vem em garrafões de dez litros bem medidos, selado no bocal a gesso e, por vezes, recoberto por plástico, verde para o branco, vermelho para o tinto. Na recruta, sita à Mata da Marinha, Guincho, ainda não havia o meio caminho andado, corria que a vinhaça levava cânfora para impedir a tusa. Quem sabe? Quem sabe, até, se por estas bandas de quentura não acontece o mesmo com os do tal capacete?

Furriel Jonas, o sem baleia

Pronto. Lá vem o Morfeu-de-trazer-por-casa lixar-me a mona. Estou quase a ressonar, já se me semicerraram as pálpebras. Meu alferes! É o Jonas, furriel miliciano, sargento também de dia e de noite, mal comparado, uma criada de servir, ou uma mulher da vida. Então, ó meu grandessíssimo sacana: que se passa para me vires interromper o discurso do método às duas da matina?







Tinham chegado uns tipos para passar à disponibilidade. Os gajos querem pôr-se nas putas com a maior rapidez, diz o Jonas que, de tão amarrotado, deve ter vindo directamente da doca da baleia bíblica. E que tenho a ver eu com isso? Vossa Senhoria – o «profeta» é um bardino, sem respeito pelo galão e pelo tratamento correspondente – nada tem a ver, a não ser um cabo a quem falta o dedão do pé direito e, pelo ar da cicatriz, que deve ter-se pirado recentemente.

Homessa! Tu julgas que eu sou ortopedista ou quê? Meu alferes; neste caso devia ser pediatra, de pé. Olá, o safardana galhofa. Bem, se tanto insistes e a pedido de diversas famílias, vamos lá ver essa famosa extremidade de pata. Que o pôs, torna o Jonas, gandulo da Rua da Misericórdia, e por estas bandas frequentador assíduo do Bairro Operário e do muceque Rangel. Gajas, claro.

Vamos. Na parada, aliás estreita, há um som gutural que por ali plana, entrecortado de risos e de fumo de cigarro de palha – ou de liamba, tudo embrulhado em humidade q.b.. Os homens, uns vindos da mata outros do Hospital Militar, reunem-se em pequenos grupos, cochichando e antevendo as delícias da vida civil. Um pouco mais afastados estão uns quantos de cócoras, jogando à lepra. Quase nem dão por nós. O Jonas adianta-se e chama.

Tu, ó 18647, chega aqui ao nosso alferes e mostra-lhe o teu pé. O soldado assim faz. Falta-lhe, realmente o dedo grande e a cicatriz tem poucos dias. Não me contenho: Então como foi isso? Não te preocupes que não te lixo. Tu passas à peluda e está feito. O cabo arreganha a beiça, o teclado brilha na noite. Foi os bandido na mata, meu arfere. Porra! Explica lá.

Eles atacou a nossa coluna. Mataram muitos nossos. Quase todos. Sarvo eu que ficou vivo no meio dos mortos. Sangue – bué. Os bandido desceram na picada e começaram de tirar as arma dos soldados farecidos. Chega um a mim e diz que esse parece que está vivo. Eu, de olho aberto, nem respira. Outro lhe responde que está morto. Para ver se eu está morto mesmo, o homem escarça o meu bota e o meia e com uma dentada me arranca o dedão.

E tu? Eu guentou meu arfere. Morto-vivo tem de guentar. Senão, está futido....