quinta-feira, maio 29, 2008




Encontro gramatical


Fernanda Braga da Cruz

Era a terceira vez que aquele substantivo e aquele artigo se encontravam no elevador.

Um substantivo masculino, com aspecto plural e alguns anos bem vividos pelas preposições da vida. O artigo, era bem definido, feminino, singular. Ela era ainda novinha, mas com um maravilhoso predicado nominal. Era ingénua, silábica, um pouco átona, um pouco ao contrário dele, que era um sujeito oculto, com todos os vícios de linguagem, fanático por leituras e filmes ortográficos.

O substantivo até gostou daquela situação; os dois, sozinhos, naquele lugar sem ninguém a ver nem ouvir. E sem perder a oportunidade, começou a insinuar-se, a perguntar, conversar. O artigo feminino deixou as reticências de lado e permitiu-lhe esse pequeno índice. De repente, o elevador pára, só com os dois lá dentro.

Óptimo, pensou o substantivo; mais um bom motivo para provocar alguns sinónimos. Pouco tempo depois, já estavam bem entre parênteses, quando o elevador recomeçou a movimentar-se. Só que em vez de descer, sobe e pára exactamente no andar do substantivo.

Ele usou de toda a sua flexão verbal, e entrou com ela no seu aposento. Ligou o fonema e ficaram alguns instantes em silêncio, ouvindo uma fonética clássica, suave e relaxante. Prepararam uma sintaxe dupla para ele e um hiato com gelo para ela. Ficaram a conversar, sentados num vocativo, quando ele recomeçou a insinuar-se. Ela foi deixando, ele foi usando o seu forte adjunto adverbial, e rapidamente chegaram a um imperativo.

Todos os vocábulos diziam que iriam terminar num transitivo directo. Começaram a aproximar-se, ela tremendo de vocabulário e ele sentindo o seu ditongo crescente. Abraçaram-se, numa pontuação tão minúscula, que nem um período simples passaria entre os dois. Estavam nessa ênclise quando ela confessou que ainda era vírgula. Ele não perdeu o ritmo e sugeriu-lhe que ela lhe soletrasse no seu apóstrofo. É claro que ela se deixou levar por essas palavras, pois estava totalmente oxítona às vontades dele e foram para o comum de dois géneros.

Ela, totalmente voz passiva. Ele, completamente voz activa. Entre beijos, carícias, parónimos e substantivos, ele foi avançando cada vez mais. Ficaram uns minutos nessa próclise e ele, com todo o seu predicativo do objecto, tomava a iniciativa. Estavam assim, na posição de primeira e segunda pessoas do singular. Ela era um perfeito agente da passiva; ele todo paroxítono, sentindo o pronome do seu grande travessão forçando aquele hífen ainda singular.


Nisto a porta abriu-se repentinamente. Era o verbo auxiliar do edifício. Ele tinha percebido tudo e entrou logo a dar conjunções e adjectivos aos dois, os quais se encolheram gramaticalmente, cheios de preposições, locuções e exclamativas. Mas, ao ver aquele corpo jovem, numa acentuação tónica, ou melhor, subtónica, o verbo auxiliar logo diminuiu os seus advérbios e declarou a sua vontade de se tornar particípio na história. Os dois olharam-se; e viram que isso era preferível, a uma metáfora por todo o edifício. Que loucura, meu Deus!

Aquilo não era nem comparativo. Era um superlativo absoluto. Foi-se aproximando dos dois, com aquela coisa maiúscula, com aquele predicativo do sujeito apontado aos seus objectos. Foi-se chegando cada vez mais perto, comparando o ditongo do substantivo ao seu tritongo e propondo claramente uma mesóclise-a-trois. Só que, as condições eram estas: enquanto abusava de um ditongo nasal, penetraria no gerúndio do substantivo e culminaria com um complemento verbal no artigo feminino.

O substantivo, vendo que poderia transformar-se num artigo indefinido depois dessa situação e pensando no seu infinitivo, resolveu colocar um ponto final na história. Agarrou o verbo auxiliar pelo seu conectivo, atirou-o pela janela e voltou ao seu trema, cada vez mais fiel à língua portuguesa, com o artigo feminino colocado em conjunção coordenativa conclusiva.

(Redacção feita por uma aluna de Letras, que obteve a vitória num concurso interno promovido pelo professor da cadeira de Gramática Portuguesa)

Um mimo

O Florentino Antunes, Amigo de muitos anos (não é meu primo, apesar do apelido), companheiro de muitas vidas, da tropa até a um hipermercado, ressuscitou, por mor de um outro Amigo, o Magalhães Pequito. Foi uma alegria! Vai daí, o gajo bué da fixe aparece-me no lançamento do meu «Morte na Picada». No meio da confusão das mais de 200 almas que foram à fnac do Colombo, nem tive tempo para trocar umas larachas com ele. Para o abraço, indispensável, sim. Mal pareceria.
Acaba de me enviar este primor de texto, um verdadeiro mimo, assinado pela Fernanda, aluna da Faculdade de Letras, portadora de um apelido conceituadíssimo na nossa praça. Penso que não é a primeira vez que nos encontramos, o escrito e este escriba sem eira nem beira. Já mo tinham enviado, nem me recordo quem. Hoje, não escapa. Aqui fica ele.
A. F.

segunda-feira, maio 26, 2008




Homem e mulher
(ou vice versa)

O que a malta inventa!!!! Ainda eu era um jovem e já se contava a estória do homem que inventava as anedotas sobre o Salazar. Um destes dias, boto-a no papel. A ver vamos, que nisto de promessas não quero tirar o lugar aos políticos. A Internet propicia, nos dias de hoje, a difusão ao mícron dessas invencionices. E os autores rejubilam. Para o que lhes havia de dar? Não sei, francamente não sei. Mas as perguntas e as respostas que ficam abaixo – e que vieram pela rede informática – têm a sua piada. Ora apreciem A.F.

Quando é que um homem mostra que tem planos para o futuro?
Quando compra duas caixas de cerveja.


Qual a diferença entre um homem e uma manga verde?
A manga amadurece.


Por que é que as mulheres casadas são mais gordas do que as solteiras?
A solteira chega a casa, vê o que tem no frigorífico e vai para a cama; a casada vê o que tem na cama e vai para o frigorífico.


Por que é tão difícil achar homens bonitos, sensíveis e carinhosos?
Porque normalmente eles já têm namorados.


Como se chama uma mulher que sabe onde está o seu marido todas as noites?
Viúva.


O que existem em comum entre os homens que frequentam bares de solteiros?
Todos são casados.


O que disse Deus depois de criar o homem?
Tenho que ser capaz de fazer coisa melhor.


E o que disse Deus depois de criar a mulher?
A prática traz a perfeição...

domingo, maio 25, 2008




O drama de Pacheco, Brederode

… e dos telespectadores da RTP


Nuno Abreu
C
hegou à praça pública um tremendo rugido de protesto, implacável e ao mesmo tempo desesperado, contra o estado a que chegou a informação nos telejornais portugueses: Pacheco Pereira perdeu a cabeça (ou usou-a como nunca) clamando contra “A cultura da irrelevância (que) está a crescer exponencialmente” (“Público” de 17 de Maio). E escreve, mortificado: “Futebol, futebol, futebol, fumei, pequei, vou deixar de fumar, a Esmeralda entre o pai afectivo e o pai biológico, futebol, directo do acidente na A1 que provocou três feridos, os pais da pequena Maddie, futebol, tenho um cancro-tive um cancro-vou ter um cancro, futebol, futebol, futebol.”


Dias depois, adesão insuspeita: Nuno Brederode Santos junta a sua pena demolidora às diatribes de Pacheco Pereira para lamentar “… ter de saber que, no hotel do estágio, a ementa de hoje foi canja de galinha e carne à jardineira (e o cozinheiro já vai explicar porquê), mas também que o craque A, afectado por uma ligeira indisposição, comeu pescada.” (“Diário de Notícias” e blogue “Sorumbático” de 25 de Maio).

O ridículo elevado ao delírio? A imbecilidade transformada em cartilha editorial dos telejornais? Pode ser, mas resulta muito pior quando praticados na antena do serviço público – vulgo RTP.

Ora eu, que não ostento de Pacheco e Brederode a fama e glória, também tenho a minha história de rebelião contra este filme de massacre futebolisivo.

Enviei a seguinte carta ao Provedor do Espectador da RTP:

“Senhor Provedor,


Às 20 horas de ontem, dia 12 de Maio, os editores do Telejornal já possuíam a notícia e as imagens: oito mil e quinhentos seres humanos tinham morrido, poucas horas antes, num terramoto na China. Sabiam também que novecentas crianças estavam debaixo dos escombros da sua escola. Mais de oitenta por cento das casas de uma grande cidade estavam derrubadas, com gente lá dentro.

Os senhores editores do Telejornal sabiam isto tudo às 20 horas. Até porque as grandes cadeias de televisão mundiais ( BBC, Sky e CNN) já tinham transmitido reportagens sucessivas sobre todo esse horror.

Parece que uma notícia desta magnitude iria abrir o jornal do serviço público lusitano, com devido trabalho jornalístico.

Mas não, senhor Provedor: Os primeiros DEZASSETE MINUTOS do Telejornal foram integralmente dedicados ao anúncio dos jogadores escolhidos para chutar a bola na selecção nacional!

Que valem milhares de mortos ao lado da conferência de imprensa do treinador Scolari ?

Senhor Provedor:

Temos o direito, todos os que ainda nos reclamamos da cultura e da inteligência, de ouvir da boca dos editores do Telejornal de ontem as inqualificáveis razões editoriais para tamanho insulto aos espectadores. Por isso me dirijo a V. Exa, que tantas provas de verticalidade nos tem trazido em cada um dos seus excelentes programas.

Com a maior consideração,

N.”


Chegou resposta, assinada pela chefe de gabinete, D. Fernanda Mestrinho. Em dois secos parágrafos estilo Formulário-Norma-4 agradecia a mensagem e mandava à m…era procura de um programa do Provedor que fora emitido meses antes.

Tenho a certeza cega de que o ponderado Prof. Paquete de Oliveira desconhece esta troca de correspondência, nem que mais não seja pela boçalidade que enforma e ele é, além de inteligente, um homem de finesse.

Que isto se tenha passado assim com um ignoto espectador, diz apenas de quem assessora o Provedor. Mas a coisa fia mais fino quando dois comentadores de nomeada exibem, em dois dos maiores jornais do país, o mesmíssimo cartão vermelho à RTP e… tudo fica na mesma. Aí o povo contorce as mãos, desesperado, e percebe quão majestático é o poder da tv estatal, sem se dignar explicações, mantendo inalterável o rumo soturno do seu navio fantasma. E os telejornais continuam a dedicar os seus primeiros quinze a vinte minutos a banalidades insípidas que rodeiam os treinos da Selecção de futebol em Viseu. Noite após noite, os directos espremem não-notícias, vulgaridades sonolentas, opiniões vazias de passantes sem o menor interesse. E a tal pescada que o jogador comeu, em vez de bife. Puro lixo televisivo. Vejo os telejornais estatais de Espanha, França, Inglaterra e Itália e nenhum se atreve a tamanho desperdício de tempo com tamanhas ninharias das suas selecções de jogadores. Só mesmo a RTP, até à náusea.

E porquê? Acho que sei, e até peço perdão se estou errado.

Sem ofensa pessoal para ninguém envolvido, eu acho que Pacheco e Brederode tiveram apenas um azar de circunstância, que passo a explicar.


A RTP é como o Estado: são todos e ninguém. Preciso é distinguir quem vale e quem não vale. O segurança da RTP não vale para definir telejornais, mas há três pessoas que valem tudo para definir os conteúdos dos telejornais: o Zé, o Luís e a Cristina. Se eles lerem os dois cronistas e se a sua roda de amigos concordar com os cronistas e comigo, tudo vai mudar no telejornal desta noite. O país, em vez de vinte minutos de nha-nha de Viseu, só grama dois ou três minutos de nha-nha de Viseu, se gramar!

Basta que o Zé tome café com o Luís e a Cristina e se ponham de acordo. Podia ser: o Zé Alberto é director de Informação e até pode decidir sozinho. Mas como a matéria é gravíssima para os interesses estratégicos de Portugal, admito que não queira utilizar o seu formidável poder sem ouvir o Luís Marinho que era seu chefe até ontem mas hoje é administrador da empresa. Os dois teriam quórum mais que bastante para colocar o terramoto da China antes das canelas do Petit a abrir o telejornal, mas vamos supor que isso teria implicações formidáveis no orçamento da TV pública e portanto conviria ouvir a Cristina Viegas, a sempre presente directora do subdepartamento comercial da empresa. Que diabo, a campanha publicitária que tem Nuno Gomes aos saltinhos e gritinhos poderia estar-se nas tintas para os mortos na China e exigir prioridade a Viseu Petit.

Portanto, seria superiormente recomendável um cafezinho a três – o Zé, o Luís e a Cristina. Belém reúne o seu Conselho de Estado por bagatelas bem menores do que o primeiro quarto de hora do Telejornal.

Simples, não é? Tudo arrumado em dez minutos de um café de bom senso. Pois não senhor: isso jamais acontecerá. O drama de Pacheco, Brederode e de todos os espectadores da RTP é que um dos três – acho eu – não gosta de café.



O Carlos Pinto Coelho, Amigão de décadas, mandou-me este texto do Nuno Abreu que considero delicioso, mas altamente preocupante. O autor escreve sempre muito bem e carrega na ironia; daí o delicioso. O assunto é infelizmente, actualíssimo, destrutivo à enésima potência, quotidiano, aviltante; donde o altamente preocupante. Passo-vo-lo com a certeza de que, tal como eu, ficareis pior do que estragados. Em Portugal há (ainda?...) o direito à indignação. Estou contigo, Carlos, estou com o Nuno Abreu, estou com outro Amigo, o Nuno Brederode Santos, e até estou com o Pacheco Pereira, de quem normal e habitualmente discordo (e de que nem sou amigo). Mas, desta feita – também estou com ele. Por isso, boto esta triste estória no www.travessadoferreira.blogspot.com. Que fica muito honrado por registá-la e bate palmas. Mesmo sem mãos. A.F.

quinta-feira, maio 22, 2008





NA ROTA DO CALENDÁRIO

Um coração em Maio

Maria Lúcia Garcia Marques

Um coração ou o coração? O Dr. Fernando Pádua, benemérito clínico, chamou a Maio “o mês do coração”.

O que, usando o artigo definido, quer dizer algo de muito concreto: coração – órgão, aquele músculo bruto que bombeia a nossa vida que, por tal facto, parece não passar de um latejo incessante. E se/quando ele cessa, morre-se!

Numa breve viagem ao meu querido dicionário de Rafael Bluteau, datado de 1712, respiguei, do extenso artigo que lhe dedica a seguinte descrição:
CORAC, AM – A parte mais necessária, a mais calida,  a mais nobre do corpo do animal [...]. A substancia do coração he uma carne dura, densa, firme e solida, para conservar o calor natural, para ter mão na penetrante sutileza dos espíritos  para resistir às violentas palpitações e outros preternaturaes movimentos. E dá como sinónimos: centro, meio de alguma coisa; intento, pensamento; ânimo, valor; espírito, alma.

Porque, quando se diz: “aquele homem não tem coração!” e ele continua vivendo, estamos de facto a falar de “outro coração”. É aquele lugar do Ser, misto de alma e sangue, de fervor e memória, de ímpeto e sacrário, âmago e berço, a partir-se de dor ou a afogar-se de júbilo, espiando erros ou pressentindo aconteceres (“diz-me o coração que ...), sede entranhada de todo o sentir, casa do amor e do ódio, bem como de outros sentimentos que por menos clamorosos não deixam de ser igualmente arreigados. Tal a “nossa” Saudade que nas palavras do nosso Rei D. Duarte lá pelo século XV se definia: A ssuydade ... he huu sentido do coraçom que vem da senssualidade, e nom da razom, e faz sentir aas vezes os sentidos da tristeza e do nojo (in Leal Conselheiro).

Da sua polivalência nascem cachos de palavras com raiz no “coração”: coragem, cordura, cordato, cordial e cordialidade, concórdia e discórdia, acordo e desacordo, concordata, recordação e recordar, saber de cor e, vejam bem, recorde e recordista!

Mas bater forte, forte mesmo, é por amor que ele bate! Amor-procura, amor-ternura, amor-tortura ... é, na voz dos poetas que ele se solta. Nos populares:



Toma lá colchetes d´oiro
Aperta o teu coletinho
Coração que é de nós dois
Deve andar conchegadinho.
(Canta-se num fado tradicional)

Lá se vai meu coração
Partido em quatro pedaços,
Meio vivo, meio morto,
Quer acabar em teus braços!
... (Chora-se numa “modinha” do Brasil novecentista)

Porém é com Camões que, omnipresente, o Amor se expande e se busca no seu difícil entendimento. Oiçamo-lo neste final de soneto:
Mas, enquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê,

Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sem onde,
Vem não sei como e dói não sei porquê.





Ou neste soneto todo inteiro:

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente, choro e rio;
O mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
(Ag)ora espero, (ag)ora desconfio,
(Ag)ora desvario, (ag)ora acerto.

Estando em terra, chego ao céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar um´hora.

Se me pergunta alguém por que assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

“Senhora” que descreve assim, ainda noutro soneto:


Um mover de olhos, brando e piedoso,
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;
Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;
Um encolhido ousar, uma brandura
Um medo sem ter culpa, um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento (...)



Mulheres que nunca existiram assim. De tão virtuosas só virtuais. Travando-nos de razões que só o coração conhece, mas sempre lindas de morrer ... De fazer parar esse coração, atabalhoado e sôfrego, que nos leva pela vida ao sabor dos seus palpites ...

Mas quando ele pára, para onde se vai? Para onde vamos, “de alma e coração”? Pode ser uma resposta a de Frei Bento Domingues, numa das suas crónicas:
[...] onde estarão as pessoas que amamos e morreram? Não aconselho ninguém a ir ao cemitério. Creio que estão no coração de Deus, a casa definitiva de todos. Se me perguntam onde é e como é, atrevia-me a dizer que é tão grande como o amor de Deus, tão invisível e presente como Ele. Não procuro outro Céu.

Amen.

terça-feira, maio 20, 2008

Capuchinho Vermelho
Versão Acordo Ortográfico de 2058


O Zé Oliveira – há quem diga que ele é um dos melhores caricaturistas da nossa praça – mandou-me este texto que considero uma verdadeira delícia. Para quem, como eu, quando puto, ouviu a versão clássica/soft do Capuchinho Vermelho contada a primor pela minha tia Lurdes, que ma oferecera em livro editado pela Bertrand carregado de ilustrações policromas, esta versão é um achado. Tem muita piada.


A História do Capuchinho Vermelho (os Brasileiros chama-lhe Chapeuzinho Vermelho) encantou-me. Nunca saberei porquê. Nem adianta saber. Ao longo dos anos, fui seguindo com a atenção possível o percurso dela, que se foi adaptando às épocas por que passou. Até a pornografia tomou conta do... conto. A última deste caminho, da minha querida Luísa Ducla Soares é um mimo. O Capuchinho do Século XXI é um verdadeiro mimo.



Agora, surge-me esta. Para além do Zé Oliveira, diversos outros correspondentes meus ma tinham remetido. Logo na primeira, enviada pelo Maia Figueiredo, anotei no cristalino bestunto a intenção de a publicar neste blogue. Outras intenções e outros propósitos foram-me desviando do objectivo que traçar. Agora – não espera mais. Fica aqui.

Uma última anotação: o alegado Acordo Ortográfico de 2058 não é necessário. A miudagem, ou pelo menos a maior parte dela, já fala assim neste ano da desgraça de 2008. Termos usados e ortografia são excatamente estes. E prontes. Já está. Antunes Ferreira

Tás a ver uma dama com um gorro vermelho? Yah, essa cena! A pita foi obrigada pela kota dela a ir à toca da velha levar umas cenas, pq a velha tava a bater mal, tázaver? E então disse-lhe:
- Ouve, nem te passes! Népia dessa cena de ires pelo refundido das árvores, que salta-te um meco marado dos cornos para a frente e depois tenho a bófia à cola!


Pá, a pita enfia a carapuça e vai na descontra pela estrada, mas a toca da velha era bué longe, e a pita cagou na cena da kota dela e enfiou-se pelo bosque. Népia de mitra, na boa e tal, curtindo o som do iPod... É então que, ouve lá, salta um baita dog marado, todo chinado e bué ugly mêmo, que vira-se pa ela e grita:
- Yoo, tá td? Dd tc?
- Tásse... do gueto alí! E tu... tásse? - disse a pita
- Yah! E atão, q se faz?
- Seca, man! Vou levar o pacote à velha que mora ao fundo da track, que tá kuma moka do camano!
- Marado, marado!... Bute ripar uma até lá?
- Epá, má onda, tázaver? A minha cota não curte dessas cenas e põe-me de pildra se me cata...
- Dasse, a cota não tá aqui, dama! Bute ripar até à casa da tua velha, até te dou avanço, só naquela da curtição. Sem guita ao barulho nem nada.
- Yah prontes, na boa. Vais levar um baile katéte passas!!!


E lá riparam. Só que o dog enfiou-se por um short no meio do mato e chegou à toca da velha na maior, com bué avanço, tázaver? Manda um toque na porta, a velha "quem é e o camano" e ele "ah e tal, e não sei quê, que eu sou a pita do gorro vermelho, e na na na...". A velha abre a porta e
Pimba, o dog papa-a toda... Mas mesmo, abre a bocarra e o camano e até chuchou os dedos...
O mano chega, vai ao móvel da velha, saca uma shirt assim mêmo à velha que a meca tinha lá, mete uns glasses na tromba e enfia-se no VL... o gajo tava bué abichanado mêmo, mas a larica era muita e a pita era à maneira, tásaver?

A pita chega, e tal, e malha na porta da velha.
- Basa aí cá pa dentro! - grita o dog.
- Yo velhita, tásse?
- Tásse e tal, cuma moca do camâno... mas na boa...
- Toma esta cena, pa mamares-te toda aí...
- Bacano, pa ver se trato esta cena.
- Pá, mica uma cena: pa ké esses baita olhos, man?
- Pá, pa micar melhor a cena, tázaver?
- Yah, yah... E os abanos, bué da bigs, pa ke é?
- Pá, pa poder controlar melhor a cena à volta, tázaver?
- Yah, bacano... e essa cremalheira toda janada e bué big? Pa que é a cena?
- É PA CHINAR ESSE CORPO TODO!!! GRRRRRRRR!!!!


E o dog manda-se à pita, naquela mêmo de a engolir, né? Só que a pita dá-lhe à brava na capoeira e saca um back-kick mesmo directo aos tomates do man e basa porta fora! Vai pela rua aos berros e tal, o dog vem atrás e dá-lhe um ganda-baite, pimba, mêmo nas nalgas, e quando vai pa engolir a gaja aparece um meco daqueles que corta as cenas cum serrote, saca de machado e afinfa-lhe mêmo nos cornos. O dog kinou logo alí, o mano china a belly do dog e saca de lá a velha toda cheia da nhanha. Ina man, e a malta a gregoriar-se toda!!! E prontes, já tá...





segunda-feira, maio 19, 2008




Palíndromos


Sabem o que são palíndromos? Arrotando erudição, aliás falsa, poderia dizer que sim, senhor, sabia. Não sabia. Não fora o Ricardo Charters d’Azevedo, cada vez mais colaborante neste espaço (até nele já escreve, de quando em vez…) e eu continuaria na santa ignorância. Por isso, partilho com a malta que os palíndromos podem ser palavras ou frases que são iguais quando lidas de frente para trás e de trás para frente. Exemplos:

ALÔ BOLA

AME O POEMA

AMOR A ROMA

ANOTARAM A DATA DA MARATONA

ANOTARAM A MARATONA

APÓS A SOPA

ASSIM A AIA IA A MISSA

ATÉ O POETA

AULA É A LUA

A BABÁ BABA

A CERA CAUSA SUA CARECA

A DIVA EM ARGEL ALEGRA-ME A VIDA

A DROGA DA GORDA

A MALA NADA NA LAMA

A TORRE DA DERROTA

EVA ASSE ESSA AVE

LUZ AZUL

LUZA ROCELINA, (A NAMORADA DO MANUEL, LEU NA MODA DA ROMANA:)
ANIL É COR AZUL

ÓDIO DO DOIDO

OI RATO OTÁRIO

OSSO

OTO COME MOCOTÓ

OVO

O CASACO

O CASO DA DROGA DA GORDA DO SACO

O CÉU SUECO

O DEDO

O GALO AMA O LAGO

O LOBO AMA O BOLO

O GALO NO LAGO

O MITO É ÓTIMO

O ROMANO ACATA AMORES A DAMAS AMADAS E ROMA ATACA O NAMORO

O VÔO DO OVO

MIRIM

MORRAM APÓS A SOPA MARROM

MUSSUM

RADAR

RENNER

REVIVER

RIR, O BREVE VERBO RIR

ROMA É AMOR

ROMA ME TEM AMOR

SAIRAM O TIO E OITO MARIAS

SÁ DA TAPAS E SAPATADAS

SOCORRAM-ME SUBI NO ÔNIBUS EM MARROCOS

SUBI NO ÔNIBUS

ZE DE LIMA RUA LAURA MIL E DEZ

Aqui fica o registo. Está feito. A.F.

sexta-feira, maio 16, 2008

Quase os Mandamentos
Dez menos um

Assentemos: o Maia Figueiredo é um bacano. Ele e os outros que me têm vindo a enviar coisas giras como esta que se segue. Entre eles, a Margarida Maria. Ao rol só lhe falta um X para ser o verdadeiro exemplar dos Mandamentos. Nem Moisés, nem o Monte Sinai, nem o deserto, muito menos a terra prometida têm o que quer que ver com estes sábios enunciados. Agradeço.

Como agradeço também às Amigas e aos Amigos que se me têm dirigido por mor da suspensão anunciada. Para já, aqui ficam estas asserções a que chamarei Quase os Mandamentos: dez menos um. A suspensão, episodicamente suspensa, vem a caminho. A.F.


I - O cigarro adverte: "O governo faz mal à saúde!"

II - Não roube, "o governo detesta concorrência".

III - Errar é humano. "Culpar outra pessoa é política".

IV- Autarcas portugueses. "São os mais católicos do mundo. Não assinam nada sem levar um terço".

V - Se bem que... "o salário mínimo deveria chamar-se gorjeta máxima".

VI - Feliz foi Ali-Babá: "não viveu em Portugal... e só conheceu 40 ladrões!!!..."

VII - Não deixe de assistir ao horário político na TV: "Talvez seja a única oportunidade de ver políticos portugueses em cadeia nacional".

VIII - O maior castigo "para quem que não se interessa por política é que será governado pelos que se interessam."

IX - Os políticos "são como as fraldas... Devem ser trocados com frequência, e sempre pelo mesmo motivo..."

quinta-feira, maio 15, 2008

E-mails há muitos

Antunes Ferreira
E
sta coisa dos mails é fenomenal. Bué de fixe, direi mesmo. Aliás, deixem-me que vos diga que o bué aprendi-o com os meus netos, com os amigos e as amigas deles, com os/as amigos/as dos/as amigos/as deles. Malta porreira, a que não é, baza rapidamente, o que é uma ganda cena. Como podem ver, actualizo-me cada dia que passa com os jovens. Agradeço-lhes, pois me levam a praticar o aprender até morrer. Isto mesmo, tendo em conta que as nossas esposas nunca sejam lindas e virtuosas viúvas. Interprete-se ao gosto de cada um.


Vai já longe o tempo em que se escreviam grandes cartas, nomeadamente, as de amor. Na minha meninice, cantava o Alberto Ribeiro, galã de bigodinho cinéfilo: «Cartas de amor, quem as não tem; Cartas de amor, pedaços de dor, sentidas de alguém. Cartas de amor, andorinhas, que num vai e vem, levam bem, saudades minhas. Cartas de amor, quem as não tem?». Daí os maços atados por fitas cor-de-rosa – da bem-amada – ou azuis, do idem, idem, aspas, aspas, no masculino.

A troca epistolar era frequentíssima, afiava-se o aparo da caneta de tinteiro e vá de escrever em cursivo de caligrafia mais inglesa ou mais francesa. Muitas destas originavam entre os subscritores polémicas longas, tu-cá, tu-lá, sem acordos ortográficos nem apoiantes deste ou atacantes dele. Era um regalo, ficar-se à espera da missiva do correspondente, para na volta do correio lhe retribuir a ensaboadela enviada.


Hoje, temos o e-mail. Coisa instantânea, como os pudins Boca Doce dos anos cinquenta, agora reaparecidos, vá-se lá saber como e porquê. Nada de longas esperas, com maior ou menor ansiedade. Um cidadão atira-se ao teclado (na óptica do utilizador, não esquecer), carrega no send e pimba: o escrito já lá está à disposição do destinatário, não há Código Postal que lhe valha, o meio caminho andado já foi, substituído pelo tiro-e-queda informático.

A propósito, o bandido do Ricardo Charters d’Azevedo mandou-me mais uma estória, curta e hilariante. Um índio vai ao Registo Civil e solicita mudança de nome. O escrivão pergunta-lhe: Qual é o seu nome? Grande Nuvem Azul Que Leva Mensagem Para o Mundo. E como se quer chamar? E-Mail! E-mails há muitos, diria o Vasco Santana, se então eles existissem.

Não há dúvidas: os tempos são outros. Até o nosso primeiro já chupa um cigarrito no avião fretado. Por essas e por outras, José Sócrates já anunciou que deixa de… fumar.

segunda-feira, maio 05, 2008



…mais gosto do cão

Antunes Ferreira
M
rs. Olivia Edward publicou, em 2001, um livro intitulado «Quanto mais conheço os homens, mais gosto do meu cão». É coisa pequena, 104 páginas, e hoje custa apenas cinco euros. Encontra-se, na internet, um anúncio (também ele pequenote) destinado em especial às damas, que transcreve um passo da obra.
Reza assim: «Os cães são melhores do que os homens. É óbvio! São mais baratos e mais fáceis de contentar. Estão sempre encantados por a verem, são leais até ao fim e não se ralam quando ganha uns quilitos. Que escolheria: um cachorro felpudo ou um tipo «cervejudo»?

Há, dentro de muitíssimas vidas – e ao longo de tempos imemoriais – cães das mais variadas cores, feitios, dimensões e raças. Para todos os gostos, portanto. Desde os rafeiros até aos da mais alta classe com direito a pedigri, o que significa que possui árvore genealógica e tudo, com os registos cuidadosamente anotados e em dia.

Toda a gente sabe o que é um cão. Mas, provavelmente, muitos não saberão da sua origem. Salvo seja, ab ovo. Ora muito bem. Recorre-se, uma vez mais à bem-aventurada Wikipedia. O cão (canis lupus familiaris) é um mamífero canídeo e talvez o mais antigo animal doméstico. Existem teorias que dizem que surgiu da domesticação do lobo cinzento asiático pelos povos daquele continente há cerca de 10 a 15 mil anos. Quem diria?

Ao longo dos séculos, através da domesticação, o ser humano realizou uma selecção artificial dos cães pelas suas aptidões, características físicas ou tipos de comportamentos. O resultado foi uma grande variedade (mais de 400 raças) canina, que actualmente são classificadas em diferentes grupos ou categorias. O rafeiro é a denominação dada aos cães sem raça definida, SRD, ou mestiços, descendentes de diferentes raças. Os brasileiros chamam-lhes vira-latas.

O cão é um animal social que, na maioria das vezes, aceita o seu dono como seu patrão e possui várias características que o tornam de grande utilidade para o ser humano, possui excelente olfacto (40 vezes mais do que o dos homens) e audição (quatro vezes mais), é bom caçador e corredor vigoroso.

Era exclusivamente carnívoro, mas, actualmente é omnívoro, vai a vida difícil para o pessoal, por que não haveria de ir também para os cachorros? É inteligente, relativamente dócil e obediente ao homem, e tem boa capacidade de aprendizagem. Por isso, o bicho cão pode ser adestrado para executar grande número de tarefas úteis para os humanos.


Há cães de caça; outros ajudam os pastores no trato dos rebanhos; são inúmeros os cães de guarda para vigiar propriedades ou proteger pessoas; usam-nos farejar diversas coisas, incluindo droga; resgatam afogados ou soterrados; guiam cegos; puxam trenós e servem de companhia. Estes são os motivos da famosa frase: "O cão é o melhor amigo do homem". Não se tem conhecimento de uma amizade tão forte e duradoura entre espécies distintas, como a que existe entre o homem e o cão.

Muitos cães tornaram-se célebres, por um ou outro motivo. A Lassie dos filmes e séries televisivas; o Balto, cão metade husky siberiano, metade lobo, herói no Alasca em 1925; o Barry, um são-bernardo, paladino nos Alpes suíços de 1800 a 1812, tendo salvado ao longo de sua vida mais de 40 pessoas perdidas na neve; a Blondi, cadela pastor alemão de Adolf Hitler; a Laika, cadela rafeira russa, primeiro ser vivo a entrar em órbita espacial. O Pickles - que desvendou o desaparecimento da Taça Jules Rimet, na Inglaterra, em 1966; o Snuppy, que foi o primeiro cão clonado. E até o Barney, o scottish terrier de George W. Bush. Há infelizes.


Diz-se também que a importância do cão para o ser humano é muito maior do que imaginamos. Ou seja, com o mesmo a auxiliar na caça e a vigiar acampamentos, o ser humano teve oportunidade de se desenvolver mais rapidamente, aprender a falar, entre outros atributos, e superar o robusto antepassado de Neandertal.

Os cães aparecem em pinturas pré-históricas de cavernas, em cenas de caça. Através da Arqueologia, foram encontrados inúmeros objectos com cães como motivos decorativos, tais como cabos de faca entalhados com o desenho de um cão com coleira. Na Mitologia egípcia do Antigo Egipto, os cães também eram mumificados para a representação de Deuses. Neith, esposa de Rá, a deusa da caça que abre os trilhos dos atiradores, tem como animal sagrado o cão.

As diferenças entre as raças de cães já eram aparentes na Antiguidade. No Império Romano, os grupos caninos já tinham as suas características básicas similares às de hoje. Molossos, spitzs, pastores, entre outros já eram seleccionados por suas aptidões e estrutura. Foram encontradas placas nas casas de Pompeia, com a inscrição cave canem (cuidado com o cachorro, que outros traduzem como cava do cão) dado que os cães já eram utilizados por aquele povo como guardiões.

E não se pode esquecer o Argos, o cão de Odisseu ou Ulisses, da Odisseia de Homero, que foi o único a reconhecer o dono quando este voltou para casa, após ter ficado vinte anos fora. O animal só então morreu. Daí que a mitologia grega o considere através dessa prova de fidelidade, no que, de resto, terá acompanhado a cara-metade do herói, Penélope, a da teia, que não da aranha.


Vem tudo isto a propósito de uma estorinha publicada nas Selecções do Reader’s Digest e que não resisto a publicar aqui. Um cavalheiro vai, com o cão dele, a um cinema. Depois de muito rogar e prometer solenemente que o bicho se portaria impecavelmente, lá o deixam entrar. Dois bilhetes, dois lugares, um para o cidadão, outro para o acompanhante.

Começa o filme e começa uma outra cena na plateia. Quando o enredo resulta em drama, o animal chora (baixinho) como uma criança cheia de tristeza, coisa de meter dó. Quando, pelo contrário, aparecem momentos de pura comédia, o bicho ri-se às gargalhadas.

Acabada a película, um senhor que estava na fila de trás, levanta-se e dirige-se ao dono da estranha criatura, estende-lhe a mão é comente que é «realmente extraordinário!». O amo responde-lhe: «é, realmente, extraordinário, sobretudo porque quando ele leu o livro não se emocionou, nem lhe achou piada nenhuma» …

E, depois, ainda se diz (eu, pelo menos, disse-o) que a Olivia Edward apenas escreveu um livrito…

sábado, maio 03, 2008

Morreu um Poeta

Antunes Ferreira
M
orreu o meu Amigo Alberto Estima de Oliveira, aos 74 anos. Foi um magnífico Poeta, numa terra em que quase todos acham que o são. O Estima não dizia que era, mas era. Conheci-o em Macau, pela mão de outro excelente Amigo, o Hélder Fernando. Muitas vezes convivemos, muitas vezes nos metemos nos copos, muitas vezes nos perdemos nos meandros dos versos.



Meandros sinuosos para mim, está bem de ver. Para ele, era um fluir fácil e pleno. No meio da estúrdia, com portugueses a assistir e, muitas vezes, a participar nas galhofas, com chineses não entendendo patavina do que nós dizíamos, cantávamos e gozávamos, mas sorrindo também, ainda que de forma oblíqua, o Estima era um rei. Um dia, disse-lho. E logo ele – republicano, sem coroa e sem manto.

O Alberto foi uma figura de Macau. Quase toda a portuguesada o conhecia, lhe apertava a mão, lhe acenava. Em Coloane, onde, por vezes, íamos pelas sardinhas assadas e pelos pimentos, pelas chouriças ou pela feijoada – para não falar no cozido à portuguesa – era uma festa. Só faltava pedirem-lhe autógrafos. Convites para isto e mais aquilo enchiam-nos as noites a roçar as madrugadas.

O Hélder escrevera-me recentemente para lhe dizer se sabia alguma coisa do nosso Estima, que se encontrava doente. Tentei averiguar, mas devo ter batido às portas erradas. De supetão, a novidade triste, provinda do Gmail, assinada pelo Carlos Pinto Coelho, outro Amigo e companheiro de jornais e outros que tais. Pronto. Acabara-se o Poeta, mas ficava a sua Poesia

Natural de Lisboa, onde nascera em 1934, o Estima esteve quase toda a sua vida fora de Portugal, já que aos 23 anos, em 1957, partiu para Angola, onde permaneceu durante cerca de 18 anos. Por lá estivemos simultaneamente, mas nunca nos encontrámos. Voltou a Portugal e ao fim de uma pausa de dois anos, seguiu de novo para África, desta vez para a Guiné-Bissau. Chegou a Macau em 1982 e viveu na cidade tendo ali passado o período de transição entre a administração portuguesa e o início do exercício da soberania chinesa.

Regressado a Lisboa, o nosso Estima de Oliveira visitava Macau pelo menos uma vez por ano, tendo estado na cidade pela última vez em Dezembro passado. Agora, o malandro finou-se sem dizer água vai. Sempre fora assim dizem os Amigos mais antigos. Sempre de pregar partidas, até esta partida final. Desde muito novo, o Alberto Estima de Oliveira se dedicou à Poesia, tendo publicado várias obras em Macau, como "Infraestruturas", em 1987, "O Corpo (Con)sentido", em 1993, e "Diálogo do Silêncio", em 1998. Até sempre, Alberto.

quinta-feira, maio 01, 2008



Small blue pill
Antunes Ferreira

De vez em quando, dou uma volta pelos Spam que o zeloso guardião do Gmail arquiva para futuro delete. Bendita invenção essa, que nos limpa por antecipação os mails mais sujos, propagandísticos, caricatos e outros que tentam penetrar um tanto à sorrelfa nas nossas caixas de correio informático.

Há de tudo nestas curiosas mensagens que centrais omnipotentes e omnipresentes remetem a um cidadão cumpridor dos seus deveres fiscais, sem lhe dar hipótese de defesa, aliás legítima. Não fora esta invenção dos anti Spam e outro galo cantaria. Anda uma mãe carinhosamente a criar um filho sem saber para o que este está guardado.

Nesse circuito informático-quase-quotidiano, um dos temas mais aliciantes, pelo menos aparentemente, são os produtos miraculosos oferecidos a troco de uns miseráveis dólares (normalmente a dita publicidade provem dos EUA) e que trazem a felicidade mais risonha aos machos que se sentem diminuídos, pelo menos da cintura para baixo.

Hoje caiu-me em rifa uma mensagem – ou, para ser mais preciso, cair-me-ia sem a protecção referida e abençoada – com grande súmula de pormenores, enviada pela Dona Gertrude Conway com um título muitíssimo apelativo e sucinto simultaneamente, o que, nos dias que vão correndo, é obra acabada. Reza então: Just a smal bluepill will turn you to Casanova!




Para alcançar esse salutar e aliciante propósito basta entrar no site http://cyberdiscountpharmacy.com. É tiro e queda. No estabelecimento cibernético há de tudo, como na loja que, ainda que virtual, termina a frase feita. A versão, como se sabe é há de tudo como na farmácia, mas aqui semântica e semioticamente seria como o vestido ou a pescada.

As pílulas «endireitadoras» vão do Viagra ao Cialis, passando pelo Levitra. Não tem nada que enganar. Uma azulinha, outra que é mais cápsula, outra amarela, são verdadeiros agentes recuperadores de uma eficácia notável no que concerne à actividade do órgão masculino. Não há disfunção eréctil que lhes meta medo. Mezinhas duma cana! O sempre em pé da minha infância, o pau de Cabinda ou as cantáridas frente a elas são peanuts envergonhados.


Diga-se em abono da verdade que a cyberdiscountpharmacy.com tem também remédios de todas as qualidades, cores e feitios para doenças que vão da hermes até à Parkinson, passando pela gripe mais ou menos virulenta (não encontrei nenhuma para a das aves, lamentavelmente), pela dor de cabeça agravada, a cefaleia, o peso a mais, as infecções pulmonares e urinárias, as dores de dentes, o mau hálito, as viroses mais destrambelhadas, enfim, o cardápio completo. Não; nada encontrei para os bicos de papagaio.

Voltando às pílulas do Casanova, e dada a cor anunciada, o azul, penso que a publicidade deveria ser Just a small bluepill will turn you to Blue Bear. Perceberam: azul com azul. Penso mandar oportunamente à ciberfarmácia esta minha proposta que, quem sabe, será o princípio de uma bela e auspiciosa carreira no domínio da publicidade farmacêutico-virtual.


Um Casanova, um Barba Azul, um Sade, um Valentino e muitos mais, tornaram-se arquétipos que os senhores elegeram para modelos do machismo e da performance sexual. A prática, porem, é quase inalcançável… A utilização destes nomes é, por conseguinte, uma iniciação à quimera masculina, um atentado ao que resta residualmente do que se chamava o pudor, uma artimanha publicitária.

As coisas são o que são. A este propósito, há aquela estória do cavalheiro super machão (luso) que afirmou que ia bater o recorde universal de damas, não de tabuleiro, mas daquelas com quem conviveria intimamente na cama. Parangonas surgiram do pé para a mão, tudo o que era comunicação propagandeou a proposta, o público, nomeadamente os homens, avolumou-se nas bilheteiras do pavilhão com dez mil lugares onde iria decorrer o evento.

Face à desmesurada procura [o mercado, dizem, tem sempre razão (?)], os organizadores decidiram mudar para um campo de futebol com o dobro da capacidade. Nada. As filas aumentavam quotidianamente, não havia game boxes, era o impensável. Foi-se para o maior estádio da terra, 65 lugares nas bancadas e mais uns no relvado.

Daí que os do clube pseudo-proprietário da instalação aumentassem a sua percentagem na receita do espectáculo, pois era absolutamente necessário, mesmo indispensável, preservar o tapete verde. E, mesmo assim, poderia ser preciso proceder à sua reparação, quiçá até a substituição, para o campeonato que se aproximava a passos largos. Estava-se no defeso, o calor apertava e, consequentemente, a prestação amorosa com o Guiness no horizonte, era perfeita ao final da tarde e a céu limpo.

Chegou o dia D. No relvado, ao centro, um estrado de dimensões amplas, sobre o qual estava colocada uma cama também ampliada. Os altifalantes berravam decibéis imensos, a assistência esperava, ansiosa, impaciente, histérica e eufórica, pela hora H. Uma jovem, descalça até ao cocuruto, estendia-se, langorosa, no leito.

O locutor mandou que se fizesse silêncio, os espectadores amansaram, e avisou que o cidadão se propunha fornicar com mil companheiras. Um ahahahah vibrou no ar, fruto de quase 70 mil gargantas, de muita cervejola e outros ingredientes. E o artista, outrossim em pêlo, naturalmente, aproximou-se, sorriu para os assistentes, acenou-lhes vitoriosamente e atirou-se à dama.

E o animador, pelo microfone: uuuuuumaaaaaaaaaa!!!! E a populaça: bravooooo!!! Por aí fora, alternando os numerais com a intensidade dos aplausos, uma loucura. E as partenéres sempre peladinhas e sempre a afluírem, uma por uma, ao altar do incansável herói. Trezentas e noventa e seteeeeeeeeeeeeeeeee!!!!!! Hurraaaaaaaaaaaaaaaa!!!!!!!!!

Lá pelas setecentas e picos começou a instalar-se uma dúvida atroz na multidão que consumia, furiosamente, pastilhas para a garganta vendidas por indivíduos mais oportunistas ou mais previdentes. Mas o praticante emérito continuava, impávido e sereno, a copular, sem um esgar de esforço, muito menos desfalecimento.

Novecentas e noventa e oitoooooooooooooooooooooooooooo!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! O tsunami estrondoso instalara-se na multidão frenética. O locutor já quase não se percebia, mas os algarismos tinham-se amontoado num ritmo espantoso. Novecentas e noventa e noveeeeeeeeeeeeeeeeeeeee!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Impossível descrever o ensurdecedor aplauso.

Milllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllll!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Calaram-se as bocas numa expectativa galopante, o livro dos milagres estava no papo, só um Portuga alcançaria tal feito, qual Vasco da Gama, qual Cabral, qual Camões??? E, de repente, o cavaleiro sentou-se na beira da cama, esboçou uma tentativa de sorriso e desmaiou. Mesmo assim batera e por larga margem, o almejado recorde.

Mas a plebe, a nobreza e algum clero, que se espremiam nas bancadas, nos camarotes (incluindo o do presidente e das altas individualidades), no gramado, soltou um último grito tonitruante, impressionante, lancinante, fatal: Maricaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaas!!!!!!!!!!!!!!! Vae victis.