quinta-feira, outubro 26, 2006



O Grumete Fuzileiro Vasco



José Augusto Sacadura
Parti para Angola no dia 30 de Maio de 1967, preocupado com o estado de saúde da minha Mãe e receoso do futuro que me esperava. Tinha 25 anos e era Delegado do Procurador da República, carreira que assim via interrompida. Embarquei, já com o posto de sub-tenente AN RN, num avião a hélice da Força Aérea, vestido com a farda de Inverno, a qual, na Metrópole, seria substituída, nos primeiros dias de Junho, pela farda branca de Verão.

Cerca de 24 horas depois de termos partido de Lisboa, sobrevoávamos Luanda, avistando de bordo do avião o solo vermelho, característico da capital de Angola. Uma viatura da Marinha, que ali se encontrava, conduziu-me ao edifício do Comando Naval, onde logo me apresentei ao 2º Comandante e ao Chefe do Serviço de Abastecimento. Recebi, então, instruções para me apresentar na Base Naval, ou seja, nas Instalações Navais da Ilha do Cabo (INIC), onde fui colocado na Secção de Recepção e Expedição de Materiais (SREM).

O serviço ocupava-me inteiramente durante as horas normais de trabalho. Tínhamos como missão efectuar as operações de carga e descarga dos navios que rumavam a Santo António do Zaire (Sazaire, na gíria) ou a Cabinda, bem como o envio, por via aérea, de materiais necessários às Companhias e Destacamentos de Fuzileiros colocados no Leste – no Lungué-Bungo e no Chilombo – e, mais tarde, no Rio Cuito e nas Terras do Fim do Mundo, onde ergueram uma nova povoação, Vila Nova da Armada. Ficava a meu cargo a elaboração das e a resposta às mensagens relativamente às necessidades de material das diferentes unidades, avultando, pela sua importância, os botes de fibra de vidro e os motores fora de borda, cujas marcas (Mercury, Johnson e Evinrude) ainda tenho de memória...

Carpinteiros e estagiários

As operações de expedição de materiais implicavam a colaboração de carpinteiros locais contratados, entre os quais se destacava a figura simpática, mas semi-ausente, do Domingos, com o permanente sorriso triste na boca desdentada, uma pirisca ao canto dos beiços e os olhos amarelos, raiados de sangue, de alcoólico. Eram os carpinteiros que, com extrema rapidez, construíam ou adaptavam os caixotes das mais diferentes dimensões e formatos, os cintavam e os colocavam por ordem nos locais próprios para serem transportados para bordo pelo pessoal da estiva. Nos dois ou três dias que se seguiam ao pagamento da jorna quinzenal, o Domingos sumia. Devidamente munido de angolares, era tempo de desfrutar dos prazeres da carne nos braços da amiga que só então o recebia e de procurar, no álcool, o esquecimento das agruras diárias.

Na Secretaria, para além de mim, havia um Sargento, que era o responsável pela distribuição das cargas pelos navios – evidentemente, sob a autoridade do imediato das embarcações -, de forma a aproveitar o espaço da melhor maneira possível e ainda dois Cabos da especialidade de Abastecimentos. Além do pessoal militar, trabalhavam na Secretaria da SREM duas funcionárias civis, que desempenhavam as funções administrativas próprias de um escritório, nos anos sessenta.

Enfim, de quando em vez, era destacado para ali estagiar temporariamente um ou outro fuzileiro, que faziam parte de uma bolsa sedeada em Luanda, à espera de serem chamados para rendições individuais – normalmente, por razões de baixa de algum camarada – nos destacamentos de fuzileiros estacionados no Leste. Normalmente, pelas suas características pessoais, eram rapazes que não se adaptavam ao serviço administrativo. Dotados de aptidões viradas para a acção, eram guerreiros a aguardar chamada para o combate. Entretanto, o que os atraía era o engate das belas morenas que tornavam a cidade mais atraente e sedutora. E, como sabiam que estavam em trânsito, pouca ou nenhuma assistência davam à Secção. Eu fechava um pouco os olhos, compreendendo a sua situação especial.

Um grumete diferente

Todavia, um dia, colocaram no meu Serviço um grumete fuzileiro bastante diferente do normal. Não correspondia de todo ao perfil habitual de um fuzo. Era o Vasco Varela, alentejano calmo e ponderado, que se revelou escrupuloso cumpridor dos horários e das tarefas que lhe iam sendo distribuídas, E que, por isso mesmo, foi sendo chamado ao desempenho de actividades mais complexas, tornando-se uma unidade de muita qualidade e eficácia. Tratava-se, enfim, de um rapaz com manifesta vocação para o serviço de Abastecimento. Encontrava-se numa fase já adiantada do curso de dactilografia, no qual se inscrevera por iniciativa própria e a expensas suas, quando recebeu ordens para se apresentar no destacamento do Chilombo, no Rio Zambeze.

Veio falar comigo, perguntando-me se não seria possível adiar durante umas breves semanas a partida, o que lhe daria tempo de concluir o curso que, segundo ele, o valorizaria e poderia ajudar na vida futura. Expus a situação ao 2º Comandante, que foi, como de costume, compreensivo, tendo deferido o pedido do Vasco, avançando, em vez dele, um outro Fuzileiro, também pertencente à referida bolsa.

Fiquei satisfeito, quando soube que a vaga que veio a surgir algum tempo depois – e que o Varela iria preencher – era no Lungué-Bungo, teoricamente, uma zona menos perigosa do que a do Zambeze. Lá partiu o alentejano, contente por ter concluído o curso de dactilografia, deixando saudades em todos e prometendo voltar a visitar-nos quando pudesse regressar a Luanda. Voltou. Para nosso doloroso espanto, iríamos receber na Secção, cerca de um mês depois, o caixão com o corpo do grumete fuzileiro Vasco Varela.

Contaram-me o que tinha acontecido. Numa acção de patrulha do rio, em três botes de fibra de vidro, os nossos homens foram atacados com fogo cerrado, disparado das arribas que ladeavam uma das margens. Todos se deitaram no fundo dos botes, como mandam as normas em situação semelhante. No entanto, o grumete fuzileiro Vasco, recém-chegado à unidade, a estrear-se numa missão de combate, reagiu com a galhardia dos maçaricos e, direi eu, com a valentia, quantas vezes feita de gestos irreflectidos, dos homens de coragem. Em vez de se deitar no fundo do bote, assim reduzindo as possibilidades de ser atingido, levantou-se e deu o corpo às balas. Atingido num órgão vital, estupidamente perdeu a vida um dos mais jovens e puros militares que tive a oportunidade de conhecer.

E foi a minha Secção, foram os meus homens, seus companheiros de coração, que tiveram o penoso encargo de embarcar o seu corpo no avião que o levou de regresso a casa. Para sempre. Confesso que, nesse dia, não consegui trabalhar. Atormentava-me a ideia de que, se ele tivesse ido para o Chilombo, como lhe tocara em sorte, por certo, ainda estaria vivo. E de que eu, sem querer, ajudara a mudar-lhe o Destino...

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Ora viva!
Atenção, gente

Começa hoje a sua colaboração neste blogue um grande e «velho» Amigo, desde os bancos do Liceu Camões, de onde seguimos os dois para a Faculdade de Direito. Aí, a verdade azeitou-se: veio ao cimo da água. O Zé Augusto acentuou a fibra que já mostrara antes: foi um excelente aluno; eu, pelo contrário, comecei tão só a escrever desalmadamente, justificando, sem grande resultado, com as linhas que paria, a cabulice que disfarçara durante tempos. Vidas.
Anos depois, em Luanda, o José Augusto esteve em minha casa, aventurando-se nos picantes goeses da Raquel. Para além dos condimentos em profusão, ainda ali se utilizava o jindungo característico de Angola. Bravo! O brioso oficial miliciano da Armada portou-se que nem um bravo. Não arredou pé, mastigou e foi por aí fora do quimo ao quilo. E iria aos quilos (que hoje ostenta) se continuasse em tais vidas. Aliás, continuou, mas devagarinho.
Passaram anos e, sempre que a sorte nos permitiu, reencontrámo-nos e fomos pondo a conversa em dia. Curioso: estava eu no Diário de Notícias e surge-me a esposa do cidadão em causa que, ao cabo de charla prolongada, simpática e interessante – entrevistou-me! Na qualidade de jornalista, creio sinceramente ter sido a única vez que tal me aconteceu. Acontece.
Agora, há dias, num restaurante acolhedor, o malandro do JAS reconheceu-me, de mesa para mesa, vejam lá, pela minha voz. Foi uma festa. Felizmente que estava com a Raquel e a mana Lena. Imaginem outra situação – aliás impossível de todo – e o bandido a identificar a minha tonalidade vocálica. Já não lhe posso fazer telefonemas anónimos, porque para ele, a minha expressão oral – tem nome. Já não se pode confiar em ninguém, muito menos nos Amigos que nos identificam pelo som.
Caríssimo. Para além das promessas, que vamos concretizar, de novos encontros desta feita frequentes, porque até somos agora vizinhos, tenho uma imensa alegria de te receber nesta casa informática que já é também tua. Quanto ao resto, fico à espera do resultado dumas famosas vindimas em que tu foste conivente. A escrita aqui fica. Das videiras e produtos decorrentes: o crime, ou não o soubesses de ginjeira e de experiência feita, por vezes até compensa.
A.F.

domingo, outubro 22, 2006




Advertência prévia

Vamos por partes e alíneas. Não é a primeira, muito pelo contrário, que me apontam o facto das minhas crónicas/contos da guerra colonial terminarem sempre ou quase sempre com a morte do protagonista, até mesmo muitos óbitos, sugerindo assim que sou um fornecedor da Servilusa predisposta para todo as exéquias, substituindo os capitais americanos a tradição - essa sim lusa - da Agência Magno

Não tenho, por conseguinte, nem habilitações nem inclinação para gato-pingado. E se é certo que, a dada altura da minha vida profissional se dizia pelos bastidores da Informação que era perigosíssimo ser entrevistado por mim – e alegavam os casos dos senhores e senhoras Niculae Ceausescu, Olof Palme, Indira Ghandi, Rajiv Ghandi e outros assassinados após terem respondido a perguntas minhas – menos certo não é que a nenhum deles vesti os paramentos de fiel defunto.

É por isso que hoje tento uma estória que termine em cor-de-rosa pálido e diáfano, ou azul celeste às pintinhas amarelas com estrelinhas vermelhas dentro. Não é muito do meu agrado – mas diz o Povo que o que tem de ser tem muita força, com c cedilhado para não haver confusões. Desde já fico muito grato a quem, mesmo tendo-me criticado pelos maus finais, se deixe convencer de que, ao virar da esquina, há sempre a possibilidade de se encontrar uma catadupa de epílogos. Duvidam? Ah sim? Vejam o que acontece nas novelas televisivas, É escolher, minha gente.

Feliz, vivo e são

Antunes Ferreira
A
posição a que sempre aspirara ao longo da vida era a de culminar esta breve passagem pelo orbe terráqueo sentado à direita de Deus Pai, todo-poderoso, criador dos céus e da terra. Um pequeno interregno se tal é permitido. Do desejo à realidade vai sempre um passo de gigante e não é à toa que se diz que pagar e morrer sejam o mais longe possível. As compras a prestações e o estar ligado à máquina são disso exemplos.

Isto apesar de não ser católico, muito menos apostólico ou romano. Mas, bem vistas as coisas, é sempre preferível ter uma certa garantia. Ou aval, de acordo com linguagem bancária. Nunca se sabe o que poderá pelos neurónios de um cidadão autoagnosticado, aquando do momento da passagem, embora não se saiba muito bem para onde. Era o que acontecia quando um sujeito tirava em Nova Iorque uma passagem para a Florida, numa percentagem aceitável ia aterrar em Cuba.

Mas enquanto não chegava tal hora, Manuel Carrapato, nado e criado em Moura e uns anitos de liceu em Beja, tinha-se tornado empresário por conta própria, isto é, independente. Contrabandista, enfim. Desde que os caracóis lhe tinham nascido ao redor do coiso que assim era. Já tinha quase meia década de investimento quando foi às sortes. Vinte e um meses e uns pozinhos depois, ei-lo incorporado.

Recruta e especialidade – apenas outra passagem, desta feita para Angola. Cais de Alcântara, gente, muita, em desvario, ai que o meu vai prá ingola, cala-te estúpeda, vai mas é prá degola. Nossa Senhora de Fátima o acompanhe e o proteja, coitadinho ainda há pouco deixou os cueiros. Cá pra mim já dê ao mê Zeí uma pagela do Santo Padre Cruz, com uma relíquia da sobrepeliz dele. Safa-se.

Queres tu dizer, mulher que é tiro e queda?... Abrenúncio, porra, homem dum cabrão! Menina, isto é só uma manêra de dizeri. Nã brinques heréjio, nã brinques. Garças a Deus, muitas; graças com Deus, nenhumas. A mãe e a conversada foram despedir-se dele. Coladas ao Carrapato como lapas à rocha foram com ele até à escada de portaló. Nem sequer sabiam o que era, porem a gentinha dizia assim.

Mais do que o santinho que a mãe lhe deu, foi o último beijo com a Lucinda. Na boca, línguas enoveladas. Vais-me trocar por uma preta? Dêxa-te disso, cachopa, ê cá nã gosto de carne escura, só pêto de galinha. Ás vezes ainda vai uma coxa… Já da amurada, acenando-lhe: Lucindazinha, nã me ponhas os cornos. Ê vou voltari pra nos casarmos, fica prometido. Um pranto no molhe. E lenços a acenar. No meio da soldadesca um fabiano começou a vender camisas de Vénus. Bom prenúncio de fidelidades mobilizadas.

Assim como assim, foi-se safando. Emboscadas, golpes de mão, patrulhas, minas nas picadas, por tudo passou mais ou menos incólume. Quando o alferes Vieira assim falou, o Manuel não entendeu patavina. Como o oficial, alem de miliciano, também era um gajo porreiro, perguntou-lhe o que queria dizer a palavra. Não te tocaram nem num pentelhinho. Ora bê, agora já sabia. Atão nã havera de saberi…

Férias em Luanda. Foi pela primeira vez ao Bairro Operário, território de putas e de liamba, levado por um camarada preto como tição. O Augusto, que até estivera com um pé no seminário, proposto pelo padre Mário da Missão. Porem, à última hora, encolhera-se. Fizera-lhe aumentar a confusão que já tinha por baixo da carapinha, o facto dos curas não poderem casar. Então, um homem tinha de aguentar-se só com os dedos da mão? Aka, não, que pívia também era pecado.

O baile e o resto


Mas não tinham ido às mininas. Havia um baile no clube. O camarada apresentou-lhe uma mulatinha; ou melhor, uma mulata torneada a preceito, carnes rijas, decote generoso ainda que não chegasse às biqueiras dos sapatos. Lindocha lhe chamavam e ela aceitava, os dentes muito brancos em gargalhadas altissonantes. Toda ela era chicha. Explicou-lhe que era cabrita. Pai branco, de Chaves e mãe já mulata. Benditos ambos que tal pãozinho haviam botado no forno.

Nem lhe deu para pensar na Lucinda, o que aliás não era difícil com aquela Lindocha ali ao lado, mini-saia justa a moldar-lhe as bochechas do traseiro e a marcar-lhe as calcinhas milimétricas. Explicou-lhe que era alentejano mas não era nem parvo nem mangonhêro. Ela ria-se por inteiro, da boca maravilha até aos calcanhares torneadinhos.

Então és o das anedotas? O Carrapato nem se chateou. Como fazê-lo, com ela? Foram dançar. Foi ela quem escolheu, uma coladera cabo-verdiana, uma descoberta, um entusiasmo. Sem limites. Percebes agora porque se chama coladera? Olá se percebia. Percebia tudo e percebia-a toda, os seios túrgidos sem peias nem colchetes. O ventre liso. As nádegas de pimenta e o resto de adivinhar.

Sem barulho, mas pecado

Comprová-lo-ia uma hora depois, se tanto, já em casa dela, no quarto dela, no corpo dela, no fogo dela. Faz pouco barulho, que os meus pais dormem no quarto ao lado e são muito sensíveis. Mas, como calar o desejo a dois, como aceitar em silêncio tais mordomias sensuais, como podia um homem, ainda por cima alentejano de cepa, aguentar-se? Não se aguentou. Não nos ais ou nos gemidos, não, esses sim baixinho.

Durou horas a contenda entre a pele acetinada e canela da mulher e a rugosa e peluda dele. Mas mais do que isso, o aconchego do passarinho negro no ninho – e que ninho – as pernas lançadas, voluptuosas, os bicos dos peitos, também morenos e mais escuros, plantados em auréolas divinais, o pescoço ora submisso ora arrogante, sabia lá o mourense mais o quê. Aquilo era o paraíso, onde ficara ele até ali?

Na terra, a – como se chamava ela? – ah, a Lucinda bem poderia esperar por ele. Afastou-a sem cerimónias, ainda que ela já o estivesse. Os quilómetros de água salgada eram o menos. Tem piada, os marujos diziam milhas, tanto se lhe dava. O afastamento estava ali na Maianga, no quinto andar do prédio da Luanda Acessórios, representante dos Colts.

E agora, amor? Maria Linda, de seu nome de registo, já o tratava assim, era o êxtase, o delírio. E se fico grávida? E os meus pais? Agora não se pensa nisso, querida, depois casamos, sem dúvida nenhuma, primeiro volto na mata, a licença termina depois de amanhã, mas está certa que eu volto pró nosso casório. Se assim não for, aventa-me pela janela.

Que é isso? Isso quê? Aventar. Rira-se muito, baixinho, copiando o sussurro da conversa, enquanto lhe afagava o seio que beijara desvairadamente. Quer dizer em alentejanês atirar. Nada, nada, nada, Só te aventas para cima de mim. Aventou-se, numa perdição. Dias depois, quando confessava à Paula da farmácia a loucura que tinham sido os dois dias e as duas noites seguintes, a amiga perguntara-lhe se ela gastava mesmo do rapaz.

Uma leoa, uma leoa em cio. Parto-te a chipala aos bocadinhos. Que puta de pergunta. Gostava e muito, muitíssimo, para sempre. Pronto, pronto, já cá não está quem perguntou; ou melhor, ele é bom no lençol? Era. Era. Era. Com lençol ou sem. Sobretudo quando me falou cá pra dentro. Nunca ninguém mo fizera e eu nem sabia que havia disso. O estágio no colégio das freiras não incluíra tal disciplina, indisciplinada.

Uma imensa saudade

A floresta era, agora, mais do que um tormento, uma imensa saudade. Escrevera à mãe, pedindo-lhe que dissesse à outra que fosse à vida dela, as coisas são o que são, outro galo lhe cantaria, se é que já não cantava. Numa tarde quente e seca, estranho, tinham chegado notícias da outra companhia independente que viera também no ex-paquete.

Emboscada cabrona, três que tinham deixado de fumar, oito estropiados. Uma bombita de avião, quatrocentos quilos não rebentados, associada a mina checa. Os tipos das minas e armadilhas é que o tinham dito, depois de recolhidos os restos da armadilha e dos homens, com uma pá de lixo. Um morto e um ferido eram de Moura, podia ter sido ele, por mais cuidados e precauções. Acontece. Mas não fora.

Foram acabar a comissão a Nova Lisboa, cidade de planalto, bom clima, um tal Norton de qualquer coisa, diziam que general, a tinha fundado, construído e escolhido para nova capital da colónia – ainda não surgira o eufemismo maricas e falsíssimo das províncias ultramarinas. Mas São Paulo de Luanda, com a fortaleza a encimá-la, fincara pé. E ficara.

Descobrira um primo afastado com fazenda imensa na Cela. Que ainda era chamado de colonato. A família acolheu-o, a primita Mariana, seis anos de princesa, esperta que nem um alho, sentava-se no colo dele e pedia, conta uma estorinha, Manel, conta que eu gosto muito. Quem quer casar com a menina carochinha… Ou seria joaninha? Ou baratinha? Tinha de se preparar, vinha aí, quem sabe, uma catraia.

Foram os padrinhos de casamento, em Luanda, com um dote do tamanho de uma quinta grande e uma larga manada de vacas leiteiras, para onde se tinham mudado, depois de consolidada a amizade com os progenitores da Lindocha, depois de baptizado o João Manuel Monteiro Carrapato, depois da nova barriga cheia da mulher.

Agora, a caminho da África do Sul, em dois camiões carregados de tralha, com a carteira de alguma forma recheada – podia estar mais, mas – a Lindocha ao seu lado na cabina, e os quatro descendentes dormindo em colchões de molas, atrás, debaixo da coberta de oleado reforçado e sob a guarda do Lucas Candembe, mirava de lado a mulher. Continuava linda e elegante, apesar dos partos.

Ao longe caía o sol. Rápido como só em África. Depois, bom, depois, talvez Moura. Naturalmente, sem a Lucinda.

sábado, outubro 21, 2006




Um «manto de invisibilidade»



Uma equipe de cientistas britânicos e americanos testou com sucesso um «manto de invisibilidade» em laboratório. O projeto foi desenvolvido em Maio pelo físico John Pendry, do Imperial College de Londres, e apenas cinco meses depois a ideia saiu do papel. Com a ajuda de cientistas americanos da Universidade Duke, na Carolina do Norte, Pendry conseguiu fazer um pequeno cilindro de cobre se tornar invisível a radares.
O «manto» - na verdade um equipamento circular, feito com dez anéis de fibra de vidro cobertos com materiais à base de cobre - fez com que as ondas emitidas pelo radar se desviassem do objeto e se reencontrassem do outro lado, como se tivessem passado por um espaço vazio.

Os cientistas explicam o processo dizendo que as ondas mudaram seu caminho como a água de um rio faz quando se encontra com uma pedra. Alguém que olhe a água no rio mais à frente nunca poderá imaginar que ela um dia passou por uma pedra. A tecnologia difere daquela dos «aviões invisíveis» porque, até agora, o
que se fazia era tornar o espectro da aeronave fino demais para ser detectado pelos radares.

Desafio

Os pesquisadores ainda não conseguiram, no entanto, fazer um objeto desaparecer diante dos olhos de alguém. Pelo menos por enquanto. Para isso, eles teriam que fazer com a luz o mesmo que fizeram com as
ondas de radar, o que ainda apresenta alguns desafios tecnológicos. «Ainda não está claro se vamos conseguir a invisibilidade que todo mundo imagina - como no manto do Harry Potter», disse explicou o cientista David
Smith, da Universidade Duke.

«Mas o teste mostra o que pode ser feito com materiais artificiais. Isso nos indica que podemos criar coisas que não poderiam ser alcançadas com nenhum material que já existiu antes», explicou ainda o cientista David Smith. Os autores da pesquisa lembram que a possibilidade de esconder objetos, como tanques, por exemplo, de sistemas de detecção por radar pode atrair especialmente os militares.

Fresca e oriunda do Brasil

Mais uma colaboração do Gustavo Duarte, nosso correspondente brasileiro. O moço (que ainda não escreveu nada de sua autoria...) tem, porém, sido um companheirão, bem disposto, amável e muito educado. Como se diz no seu País – é um cara muito legal.

Desta feita, o Gustavo manda um pequeno texto de agência noticiosa. Mas, pelo interesse que lhe acho, entendo publica-lo aqui. Os leitores amigos compreenderão, uma vez mais, a minha intenção de dar à luz da net «coisas» que lhes podem agradar e que os podem enriquecer no domínio do conhecimento e da cultura. Jovem: agora está na altura de um artigozinho teu, ok?

Conservo, como sempre faço, a grafia, a semântica e a semiótica do português brasileiro, o que continua a parecer a forma mais simples e mais directa que a mesma língua de Fernando Pessoa e de Carlos Drumond de Andrade, de Luandino Vieira e de José Craveirinha, de José Saramago e de Sakuntala de Miranda, de Corsino Fortes e de Alda Lara, de Jorge Amado e de Eça de Queiroz, de Mia Couto e de Aires de Almeida Santos, de Miguel Torge e de Orlando Costa tem de ser homenageada.

No receio de tentar ser exaustivo, o que é cada vez mais calino, ainda refiro nomes como o de Alda do Espiríto Santo e Rui Knopfli, João Aguiar e Lídia Jorge, David Mestre e Aquilino Ribeiro, Agostinho Neto e Fernando Namora, Alda do Espírito Santo e José Gomes Ferreira, João Maimona e Lobo Antunes, Tomaz Vieira da Cruz e, claro, Luís de Camões.

Fico-me por aqui. É maior a nota do que a notícia, sendo que a última é muito mais importante. Ponto final, parágrafo.
Antunes Ferreira

sexta-feira, outubro 20, 2006




Prepare-se para o dia
do seu casamento

Braz Ferreira. Correspondente nos EAU
Contra todos os conselhos dos seus amigos você decidiu casar-se. Sendo assim gostaria, como consultor empresarial, de aconselha-lo com o objectivo de ainda salvar a sua vida. Antes de mais sente-se em sua casa ou apartamento de solteiro (pois até ao SIM ainda o é) e tente lembrar-se da sua vida até aqui (aqui, não ali).

Solução 1

P
egue na sua agenda das ex-namoradas, se é que a sua futura esposa não a rasgou ou atirou na lareira acesa, e leia-a calma e detalhadamente.
Comece pela letra A e tente ligar para cada uma delas. Se alguma lhe responder dizendo que quer passar férias consigo justamente durante o dia do casamento...aceite de imediato.

Depois terá tempo de ligar para sua actual namorada e noiva em perspectiva explicando-lhe que ficou preso no aeroporto de Kuala Lumpur com 500 quilos de cocaína e que só poderá ser liberado daqui a uns 12 anos. Não se esqueça de lhe dizer para não contactar nenhum advogado, pois pode haver um filho da mãe que o libere da prisão sem você estar preso. Fácil não é? Bom, mas se porventura nenhuma quiser passar férias consigo, então tente o seguinte.

Solução 2

Vá à farmácia e compre 250 gramas de papas de linhaça. Chegando a casa deite-as no lixo, mas não deite o lixo fora. Fique duas noites a dormir no quintal completamente nu. Esta estratégia funciona melhor durante o Inverno. Ou apanha uma carraspana de ficar de cama 15 dias (nesse caso poderá utilizar as papas de linhaça que recuperou no lixo) ou consegue uma nova namorada que o vê nuzinho da Silva no quintal ou então vai preso por ultraje ao pudor.

Se conseguir uma nova namorada e marcar novo casamento, não se esqueça de voltar ao início deste texto uns dias antes da nova data marcada. Se for preso dê uma “gorja” para os polícias para que o guardem no calabouço pelo menos dez dias o que o obrigará, obviamente contra sua vontade, a faltar a cerimónia por motivo de força maior. Caso os policiais não sejam cooperantes, volte para casa e tente o seguinte.

Solução 3

Ligue para sua namorada e disfarçando a voz fale em russo ou em árabe (seria bom que tenha aprendido uma destas duas línguas) e peça um resgate.
Mas peça um valor importante, para que ela ou o pai dela não consigam pagar.
E se porventura ela pagar, desapareça com a “gaita”. Esta solução pode ser utilizada em conjunto com a solução número 1. Se ela não pagar, desapareça também com uma das suas ex-namoradas.

Solução 4

Se o seu casamento estiver marcado para um dia após um jogo de Portugal e caso a seleção perca o jogo, mande um SMS dizendo que se vai suicidar para limpar a honra da nação. Culpe o Cristiano Ronaldo, o Scolari, o Nuno Gomes, sei lá, mas mostre-se convincente (com o Vicente não, com o Petit). Mas não lhe diga o local e a hora do suicídio, pois assim terá tempo de se mandar com uma das suas ex-namorada.

Solução 5

Compre uma garrafa de hélio (gás que afina a voz) e ligue para a sua namorada. Engula uma porção do gász e comece a falar com uma voz fininha dizendo que você mudou e que agora vai viajar com o Pedrão, ou com o Lelas ou sei lá com um maricas qualquer. Diga-lhe que vai para a Tailândia com um deles para mudar de sexo (mas por favor não diga que vai com uma das suas ex-namoradas pois talvez ela não acredite).

Solução 6

Levante-se cedo e verifique no telejornal qual é um país que se encontra em conflito. Não será difícil encontrar um hoje em dia. Escolha entre a Coreia do Norte, o Afeganistão, o Iraque o Líbano, a região do Darfour, Haiti, etc., etc., etc. Ligue para a sua namorada e informe-a de que se alistou como voluntário numa ONG qualquer da vida e que está de partida no dia seguinte.

Não mencione que está realmente de partida, mas com a sua ex-namorada, pois poderia causar mau efeito. Dê-lhe um nome de uma ONG bem complicado como por exemplo: AHDRAPDGPRP = Associação Humanitária para o Desenvolvimento das Relações Ambíguas entre Povos Deslocados pela Guerra Psicológica devido a Raças e Preconceitos. Até ela encontrar nas páginas amarelas a AHDRAPDGPRP, já você teve tempo de chegar ao seu destino sem ser importunado.

Solução 7


Vá na papelaria e compre uns estalinhos e umas bombinhas de Carnaval. Caso não encontre compre no supermercado pacotes de batatas fritas que você esvaziará. Telefone à sua namorada e diga-lhe que estava no autocarro para a Ajuda e que este foi sequestrado. E que infelizmente você foi escolhido com refém pelo braço direito (ou esquerdo, se for canhoto) do Bin Laden.

De vez em quando, enquanto fala, estale umas bombinhas ou rebente os pacotes de batatas fritas vazios, para fazer mais realista a cena. Também durante a conversa telefónica grite uns palavrões em árabe ou pseudo árabe. De certeza que ela, apavorada, não vai nem tentar entender.

Ah, importante, se a sua namorada for de origem árabe, não utilize esta solução. Caso não seja, solte uns gritos de desespero dizendo-lhe que eles o querem trocar contra 297 presos palestinianos nas prisões israelitas e chorando diga-lhe que os sequestradores o degolarão se ela informar a polícia. Talvez assim tenha tempo de pegar um avião para um destino desconhecido com uma das suas ex-namoradas.

Solução 8 (e final)

Caso não queira utilizar uma das soluções anteriores ou elas não tenham funcionado, então sugiro o seguinte. No dia do casamento, vá ao supermercado e compre duas caixas de cerveja, três garrafas de tinto, uma de aguardente, duas de vodka e vá para casa. Peça a um dos seus amigos, convidado, para o vir buscar dentro de duas horas. Vista-se a preceito e comece a beber até não conseguir mais levantar-se da cadeira. Se estiver sentado no chão bebendo, não precisa verificar se se pode ou não levantar da cadeira. Quando o seu amigo chegar e o levar até à igreja tente o seguinte:

* Beijar o padre ou então a bisavó da noiva.
Caso escolha o padre é aconselhável verificar previamente se ele não tem tendências homosexuais. Também é eficaz beijar o seu futuro sogro, ou a sogra metendo-lhe a língua ate as amígdalas (mas tome cuidado pois ela pode gostar e ai vai ter de resolver dois problemas).

* Urinar perto do altar
Se ainda conseguir acertar, dentro da taça das hóstias. Para surtir maior efeito, tire as calças e as cuecas e mostre suas partes íntimas aos convidados antes de urinar (tome cuidado pois uma das convidadas pode apreciar e ai terá três problemas para resolver). Se porém esta última solução não resultar então só lhe resta casar-se mesmo. Mas depois da cerimónia terminada, recomece com a solução número 1

Ou então vá até Badajoz e comece a peidar-se o mais que puder, pois, como certamente você sabe, dizem que “de Espanha nem bom vento nem bom casamento”.

_________
NR - Ai irmão, irmão. Tu lá sabes. A tua experiência nestes assuntos conta muito. AF

quinta-feira, outubro 19, 2006



Contar caixões


Antunes Ferreira
T
arefa de merda essa de contar caixões. Se lhe tivessem dito em puto que tal lhe iria acontecer, como dizia o tio Raimundo, copofone e antigo pegador de touros, melhor seria ter morrido à nascença, quando a senhora mãe de pernas abertas berrava que nem uma cabra e a Josefa parteira lhe gritava convictamente cala-te senão dou-te uma murraça nas trombas que nem sabes onde vais parar. Talvez ao Samouco, quem sabe?

Quando o fizeste não mugias dessa maneira minha vaca. Então eram só suspiros, ai que bom, e delíquios, mete mais filho, mete maaaiiiis. Nessa altura não ganias, cadela parideira. Nessa altura eram os olhos revirados, era a baba de gozo ao canto da boca, era o ensarilhar dos presuntos dela nos dele, eram as descargas lácteo-condensadas. Que nem lata da Nestlé.

Segue-se que, após o parto assaz complicado, fora necessário chamar o dr. Santana, as coisas estavam complicadas, a Josefa tinha a certeza que ela já dera o que tinha a dar naqueles transes, mais não sabia, mais não podia. O médico vinha duma noite de estúrdia, copos, fumo e mulheres ou pela ordem inversa, tanto faz, o quadrado da hipotenusa é eternamente igual à soma do quadrado dos catetos.

Há que, neste momento e neste lugar, afirmar que o senhor Pitágoras não devia ser para aqui chamado, já bastava o que bastava, a Ermelinda esvaindo-se a vermelho, o crianço com sonoros vagidos ao lado. A última coisa que a ti Josefa fizera fora cortar o cordão e dar-lhe o laço, de forma a que o futuro umbigo ficasse jeitosinho. Ah, é evidente, e as calinas palmadas nas bochechas do cuzinho do recém-chegado.


A Bica inteira falara daquele estranhíssimo caso. O generalista bêbado bem tentara estancar a hemorragia, mas o sangue era mais forte do que os tampões de algodão e os coagulantes endovenosos. Uma grandessíssima porra. Quatro horas depois de parir, mais coisa, menos coisa, a Ermelinda ajuntadeira esticara o pernil sem mais nem ontem.

O zebriu

Restava o pimpolho, órfão de mãe e de pai, pois nunca se conseguiria saber quem fora o autor de tal pirralho. O facto é que o tipo não se parecia com ninguém, Houve até quem dissesse que o mafarrico devia ter participado no entre pernas da tipa, tal a feiura do exemplar. O Marques da carvoaria, pitrólio das melhores proveniências e pirolitos de berlinde, até comentara que o catraio podia muito bem ser o exemplo acabado do zebriu.

A Rita apanhadeira de malhas atirara lá do seu balcão de vão de escada, nylons por cercadura, o que é essa merda de zebriu? E o Marques numa galhofa: é o cruzamento duma zebra macho e da puta que te pariu. O pessoal em redor desfez-se em gargalhadas e aplausos sem contenção. Daí que o ganapo que recebera na pia baptismal o nome cristão de Leopoldo, onomástico do cura, sempre fosse chamado zebriu.

Senhor Leopoldo foi o tratamento que usou a Mariana, sua primeira empregada de faina quotidiana. Com estamine montado ali a Monsanto, à direita de quem sobe e, quem diria, à esquerda dos que descem. Que viera da Sertã para criada de servir e dera em servir homens ao desbarato entre as moitas e as ervas do lugar.

Era pelas alturas em que a Hermínia cantava, acompanhada à guitarra e à viola, se vires a mulher perdida, não a trates com desdém; com as voltas desta vida; podia ser a tua mãe. Ou o Marceneiro enrouquecia o bêbado pintor em que a pobre puta da taberna, desenhada em esboço perfeito, correra para o autor e o abraçara de seguida; era a mãe do pintor e a turba comovida, pasma ante aquele quadro, original e estranho; enquanto o pobre artista amarfanha o desenho, o retrato fiel duma mulher perdida.

A dita Mariana fora apenas o começo para o Zebriu. Depois arregimentara a Olga, incorporara a Júlia e convencera a Odete. O Senhor Leopoldo para as suas protegidas era o homem delas, o ser superior, o benfeitor das pegas sem sindicato. Os conhecidos chamavam-lhe chulo, o que não lhe dava mossa nem achaque. A Georgete, exilada de Montparnasse, dizia que ele era o seu gigolô. Feitios.

Estava o Leopoldo Zebriu nas suas sete quintas, manipulando os bastos escudos que auferia de comissões e custódia, até no permanganato ele cobrava, quando o Distrito de Recrutamento o metera nas fileiras. Recruta na Amadora, RI1, embarque para Angola meses depois de concluída a especialidade que nem isso era – sem mais, atirador de infantaria.

O currículo obtido na Bica não lhe valera de nada. Nem o alivador o levara ao cimo da desdita. De enjoo em enjoo no Vera Cruz, as tripas pela borda fora, tinha chegado a Luanda. Onde não permanecera muito tempo, coisa de mês e meio, se tanto. Pedra do Feitiço, destino anunciado já na picada não fosse o diabo tecê-las e os turras terem sabido da colocação. Foda-se! Tudo eram intrigas, tudo bocas, tudo espionagem.

Senão, lerparvam

Quando se instalaram nas casernas zincadas deixadas pelos que os tinham antecedido, levaram logo sermão com salmos do capitão Figueiredo. Que mais assim e mais assado, trigo limpo, farinha amparo, estavam no cu-de-judas, o local era perigoso, por ali se infiltravam os terroristas, tinham de andar de olhos bem abertos, incluindo o traseiro. Senão, lerpavam.

Mais sabia o Zebriu o significado do termo, ao invés de outros camaradas abstrusos, como eram, por exemplo, madeirenses e alentejanos. Na sua opinião, está bem de ver. E a Companhia de Caçadores, ao arrepio do que era normal, não provinha dum mesmo bacelo. O pessoal era uma confusão dos tomates do padre Inácio. A soldadesca viera do país inteiro, uma cagada em três actos.

Em frente. Logo no dia a seguir ao da chegada o comandante foi falando com a malta. Chegou a vez do Leopoldo, nas fileiras já tinha o apodo da vida civil. Então ó Zebriu, que fazias tu na metrópole, quero dizer, qual era a tua profissão. Ele não podia responder-lhe – chulo. Pareceria mal tinha quase a certeza. Saiba o meu capitão que era… carpinteiro.

Ora muito bem, cá temos um São José de martelo e goiva. Trouxeste a ferramenta contigo? Pois com certeza, a sua não era de desatarraxar. Figueiredo não gostou mesmo nada. Que gracinha. Saíste-me um bom sacana. Para já 45 flexões e uma ecada. A seguir falamos. Assim se fez. O esganiçado do Bijeu, barbeiro de ocasião, meteu-lhe a máquina zero na trunfa e aqui vai disto. Para trás tinham ficado as flexões, 45, vigiadas pelo furriel Gaspar.

Apresentou-se ao superior. Tinha o destino traçado. Ficava integrado num grupo operacional comandado pelo alferes Moutinho, encarregado de picar minas. Uma ganda porra! No quartel, como era carpinteiro, ficava de plantão aos dez caixões, dotação da CC 1458. Nos intervalos das patrulhas, entendes ó espertinho. E trata-me bem do material, que, por enquanto, não há mais.

Tomar conta de

Se as sua garotas o vissem agora cagar-se-iam de riso. O chefe, o protector, o gigolô da Georgete, o titular de uma conta bancária com muitos números à custa de carne branca, a tomar conta de caixões. Filho duma carrada de putas esse capitão de maus fígados. Um dia haveria de ajustar contas com o cabrão.

Daí em diante, a vida foi uma rotina desusada. Na segunda patrulha, quinze dias depois de se terem mal ou bem instalado, a primeira emboscada e, puta de vida, o primeiro morto, um tipo de Sanfins, o Cabeça de Abóbora, o nome verdadeiro nem o sabia. Voltar pela picada armadilhada, chegar ao quartel e meter o desgraçado no caixão foram tarefas que prenunciavam más sinas.

Após treze meses de mata, picada e arame farpado, a primeira licença. Como o que não lhe faltava era massa, vá de tomar um boing da TAP e ala pró Puto. Uma chatice do caralho. As donzelas tinham-se mudado, já não eram suas subordinadas (mau, até já pensava em tropalês) estavam à conta dum puto de bigodinho a tira-linhas, o merdas chamava-se Jaquim e nem lhe passou saudação. Não lhe ligou peva.

Foram demasiado curtos e rápidos os 15 dias. Não teve tempo de ir às fuças do tal Quinzinho, nem de dar umas solhas nas ex-pupilas. Tentou organizar nova equipa de trabalhadoras, mas as coisas começavam a ser mais difíceis, a guerra lá longe levava os fregueses no bojo dos navios, alguns havia que até já iam de avião, cada vez era precisa mais gente, a porrada era de criar bicho.

Voltado ao lar na mata constatou que durante as duas semanas tinham sido utilizados mais dois sobretudos de pinho. Da-se! Deste modo acabava-se a dotação. Era melhor que se falasse para Luanda comunicou ao capitão. Ó Zebriu do carago, mal chegaste e já estás a lixar-me o bestunto. Vai apanhar no cu e não me enfronhes.

O
pior foi quando o Maneta de Alcabideche teve de tomar o lugar dele. Porque, ao tentar levantar uma mina, o Leopoldo/Zebriu tirou bilhete de ida directa para a metrópole. Meteram o que restou dele no quarto caixão e era tão pouco que sobrou espaço. E o substibruto para o Figueiredo: meu capitão, lá teremos de encomendar mais uns quantos.

quarta-feira, outubro 18, 2006




O CÓDIGO D’AVINTES

A broa boa

Antunes Ferreira

Um homem já não está no ponto de rebuçado aconselhado para directas. Militante da Terceira Idade, aos 65 que acabei de completar – mais precisamente a 20 de Setembro, fazem o obséquio de anotar, para o ano não se esqueçam – já ganhei o direito a descontos nos passes, nas entradas dos museus, até nas Pousadas da Juvent.., digo, do senhor Pestana.

BI vitalício é documento bastante para atestar a condição de quase ancião, para não dizer mesmo ancião de pleno. Já quanto à Carta de Condução as regras são outras; adiante. Um destes dias, numa roda de amigos e familiares, disse que não tardava teria de ter duas canadianas. A minha caríssima metade, Raquel, acrescentou, alto e bom som que o que eu queria eram duas canadianas, sim, mas de 18 aninhos cada. Até aí, não vinha nenhum mal ao Mundo. Só que ela acrescentou: «Para quê? Tu já não sabes o que havias de fazer com elas...» Não gostei.

Nestes últimos tempos, porém, já fiz duas. Directas, está bem de ver. Da primeira, tal como já o escrevi neste blogue, o culpado foi um tal bom malandro, mais conhecido por Mário Zambujal. Peguei no «Primeiro as Senhoras» e nem me deitei, isto é, por mor da verdade, só me estendi no leito marital quando cheguei ao fim do danado do livro. Mas ainda só contava com 64 primas Veras.

Pensei então que nunca mais, senhor, vos tornarei a ofender, muito menos pecar por pensamentos, palavras e obras, incluindo nesta última rubrica a leitura de algumas de índole literária. Mas o homem põe e o livro dispõe. Já me regalara com os novos mistérios de Sintra. Reincidi. Abri o «Código D’Avintes» eram umas dez e picos da noite - que assim confirmava que ainda era uma criança. A noite.

Estava feito. Os caracteres, as linhas, os períodos, os parágrafos, os capítulos, enfim, foram uma atracção fatal, muito mais perigosa do que a que viveram o senhor Michael Douglas e a dona Glenn Close. Avintes, da broa boa, o Código que dava como brinde o poder total, a Lili, Lilith, o ex-inspector Nuno Gomes e, sobretudo o anjo Gabriel tudo junto davam uma poção de efeitos muito superiores às do Professor Isaías Pires.

Daí que, dei por mim, eram quase sete da matina, a rebolar de puro gozo sobre a coberta da cama, o que motivou um enérgico vê lá se te comportas e estás quieto da já referida Raquel. Depois passei à fase do protesto, ainda no colchão. Que ganda porra! Então estes gajos não podiam ter escrito mais uns capítulos, coisa pequena, quiçá uns 48 ou, sendo exagerado o número, uns 47? Madraços são o que eles são. Quando um desprevenido leitor anónimo e anódino espera prosseguir pelos caminhos da terrível ocorrência ali ao lado do Douro, pum, acaba-se o livro.

Não se faz. A Alice Vieira, o João Aguiar, o José Fanha, a Rosa Lobato Faria, o José Jorge Letria, a Luísa Beltrão e, naturalmente, o Mário Zambujal sempre me foram suspeitos q.b.. Depois de convenientemente levantado, higienizado, pequenoalmoçado e engravatado, eis-me no trabalho. Fiz uns telefonemas de desagrado. Os três da mesma colheita que eu no DN não se safaram.

Para alem do que lhes disse de viva voz telemovelada ainda ficaram uns almoços de desagravo a marcar tão breve quanto possível. Ai deles que se escusem aos pantagruélicos repastos. Até porque terá de haver alguém que os pague. Aos repastos, já que aos criminosos contumazes a Oficina do Livro já deve ter saldado as contas.

Os sete cavalheiros deste apocalipse – aliás quatro os mais três as – já se deram ao luxo de ir de Sintra a Avintes, passando sabe-se lá por que longitudes, latitudes e atitudes. E não é que deram à luz coisas magníficas, obras hilariantes mas também inebriantes? Conhecendo-lhes as manhas e as artes do escrever, mal parecia que assim não fosse, ainda que o parto fosse apressado e de cesariana literária.

Isto me confessaram os três que consultei. Tratou-se de um contra-relógio redactorial que, logicamente, lhes deu muito prazer elevado à sétima potência ou não fossem eles tantos quantos os dias de uma semana. Curioso: todas elas têm sete. Nunca tinha reparado. Aliás, o Fanha explicou-o no início da obra. Se algum santomés não o acreditou, o problema é dele e das cinco chagas. Neste caso, sublinhe-se, eram cinco, não sete.

Muito bem. Ainda que lhos tivesse dado (mea culpa, e dei), os autores não necessitam para nada de parabéns. Nem mesmo de muitos. E se é certo que os merecem, não menos certo é que os elogios e as palmadas nas costas bem podem ser postergados para nova obra em que se metam. E, olhem lá: capazes disso são eles. E de muito mais.

segunda-feira, outubro 16, 2006




Eu conheço um país


Nicolau Santos, Director-adjunto do Expresso
E
u conheço um país que tem uma das mais baixas taxas de mortalidade de recém-nascidos do mundo, melhor que a média da União Europeia. Eu conheço um país onde tem sede uma empresa que é líder mundial de tecnologia de transformadores. Mas onde outra é líder mundial na produção de feltros para chapéus.

Eu conheço um país que tem uma empresa que inventa jogos para telemóveis e os vende para mais de meia centena de mercados. E que tem também outra empresa que concebeu um sistema através do qual você pode escolher, pelo seu telemóvel, a sala de cinema onde quer ir, o filme que quer ver e a cadeira onde se quer sentar.

Eu conheço um país que inventou um sistema biométrico de pagamentos nas
bombas de gasolina e uma bilha de gás muito leve que já ganhou vários prémios internacionais. E que tem um dos melhores sistemas de Multibanco a nível mundial, onde se fazem operações que não é possível fazer na Alemanha, Inglaterra ou Estados Unidos. Que fez mesmo uma revolução no sistema financeiro e tem as melhores agências bancárias da Europa (três bancos nos cinco primeiros).

Eu conheço um país que está avançadíssimo na investigação da produção de energia através das ondas do mar. E que tem uma empresa que analisa o ADN de plantas e animais e envia os resultados para os clientes de toda a Europa por via informática.

Eu conheço um país que tem um conjunto de empresas que desenvolveram sistemas de gestão inovadores de clientes e de stocks, dirigidos a pequenas e médias empresas. Eu conheço um país que conta com várias empresas a trabalhar para a NASA ou para outros clientes internacionais com o mesmo grau de exigência. Ou que desenvolveu um sistema muito cómodo de passar nas portagens das auto-estradas. Ou que vai lançar um medicamento anti-epiléptico no mercado mundial. Ou que é líder mundial na produção de rolhas de cortiça. Ou que produz um vinho que "bateu" em duas provas vários dos melhores vinhos espanhóis.

E que conta já com um núcleo de várias empresas a trabalhar para a Agência Espacial Europeia. Ou que inventou e desenvolveu o melhor sistema mundial de pagamentos de cartões pré-pagos para telemóveis. E que está a construir ou já construiu um conjunto de projectos hoteleiros de excelente qualidade um pouco por todo o mundo.

O leitor, possivelmente, não reconhece neste País aquele em que vive - Portugal. Mas é verdade. Tudo o que leu acima foi feito por empresas fundadas por portugueses, desenvolvidas por portugueses, dirigidas por portugueses, com sede em Portugal, que funcionam com técnicos e trabalhadores portugueses.

Chamam-se, por ordem, Efacec, Fepsa, Ydreams, Mobycomp, GALP, SIBS, BPI, BCP, Totta, BES, CGD, Stab Vida, Altitude Software, Primavera Software, Critical Software, Out Systems, WeDo, Brisa, Bial, Grupo Amorim, Quinta do Monte d'Oiro, Activespace Technologies, Deimos Engenharia, Lusospace, Skysoft, Space Services. E, obviamente, Portugal Telecom Inovação. Mas também dos grupos Pestana, Vila Galé, Porto Bay, BES Turismo e Amorim Turismo.

E depois há ainda grandes empresas multinacionais instaladas no País, mas dirigidas por portugueses, trabalhando com técnicos portugueses, que há anos e anos obtêm grande sucesso junto das casas mãe, como a Siemens Portugal, Bosch, Vulcano, Alcatel, BP Portugal, McDonalds (que desenvolveu em Portugal um sistema em tempo real que permite saber quantas refeições e de que tipo são vendidas em cada estabelecimento da cadeia norte-americana).

É este o País em que também vivemos. É este o País de sucesso que convive com o País estatisticamente sempre na cauda da Europa, sempre com péssimos índices na educação, e com problemas na saúde, no ambiente, etc.

Mas nós só falamos do País que está mal. Daquele que não acompanhou o progresso. Do que se atrasou em relação à média europeia. Está na altura de olharmos para o que de muito bom temos feito. De nos orgulharmos disso. De mostrarmos ao mundo os nossos sucessos – e não invariavelmente o que não corre bem, acompanhado por uma fotografia de uma velhinha vestida
de preto, puxando pela arreata um burro que, por sua vez, puxa uma carroça cheia de palha.

E ao mostrarmos ao mundo os nossos sucessos, não só futebolísticos, colocamo-nos também na situação de levar muitos outros portugueses a tentarem replicar o que de bom se tem feito. Porque, na verdade, se os maus exemplos são imitados, porque não hão-de os bons serem também seguidos?
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In Revista Exportar

NR – O texto que a prestigiada Revista Exportar publicou, da autoria do meu velho e bom Amigo Nicolau Santos, é um verdadeiro credo em nós, Portugueses e no nosso Portugal. Muitíssimo oportuno, muitíssimo bem escrito – o habitual – e muitíssimo… muitíssimo. Nem a Revista Exportar que o ICEP continua a editar e bem, nem o Autor, foram consultados a pedir autorização para esta transcrição. Creio que ambos relevarão a «falta» cometida. Ao Nicolau, um abração; à Exportar, muitos parabéns! AF

quinta-feira, outubro 12, 2006




APRENDER ATÉ MORRER

O meu primogénito Miguel (Ferreira) – que já colaborou ainda que episodicamente – enviou-me este interessante texto de origem brasileira. É um elemento esclarecedor certamente para muita gente. Para mim é. Nunca me canso, de resto, de repetir que aprender até morrer deve ser prática quotidiana. Não resisto, assim, a publicá-lo para que, quem como eu não tinha conhecimento disto a possa ler e aprender. Até morer, o que se deseja que seja o mais afastado. AF

A origem de @ (arroba)

Na idade média os livros eram escritos pelos copistas à mão.
Precursores da taquigrafia, os copistas simplificavam o trabalho substituindo letras, palavras e nomes próprios, por símbolos, sinais e abreviaturas. Não era por economia de esforço nem para o trabalho ser mais rápido. O motivo era de ordem econômica: tinta e papel eram valiosíssimos.

Foi assim que surgiu o til (~), para substituir uma letra (um m ou um n) que nasalizava a vogal anterior. Um til é um enezinho sobre a letra, pode olhar. O nome espanhol Francisco, que também era grafado Phrancisco, ficou com a abreviatura Phco. e Pco. Daí foi fácil o nome Francisco ganhar em espanhol o apelido Paco.

Os santos, ao serem citados pelos copistas, eram identificados por um feito significativo em suas vidas. Assim, o nome de São José aparecia seguido de Jesus Christi Pater Putativus, ou seja, o pai putativo (suposto) de Jesus Cristo. Mais tarde os copistas passaram a adoptar a abreviatura JHS PP e depois PP. A pronúncia dessas letras em seqüência explica porque José em espanhol tem o apelido de Pepe.

Já para substituir a palavra latina et (e), os copistas criaram um símbolo que é o resultado do entrelaçamento dessas duas letras: &. Esse sinal é popularmente conhecido como e comercial e em inglês, tem o nome de ampersand, que vem do and (e em inglês) + per se (do latim por si) + and. Com o mesmo recurso do entrelaçamento de suas letras, os copistas criaram o símbolo @ para substituir a preposição latina ad, que tinha, entre outros, o sentido de casa de.

Veio a imprensa, foram-se os copistas, mas os símbolos @ e & continuaram a ser usados nos livros de contabilidade. O @ aparecia entre o número de unidades da mercadoria e o preço - por exemplo: o registro contábil 10@£3 significava dez unidades ao preço de três libras cada uma. Nessa época o símbolo @ já ficou conhecido como, em inglês, at (a ou em ).

No século XIX, nos portos da Catalunha (nordeste da Espanha), o comércio e a indústria procuravam imitar práticas comerciais e contábeis dos ingleses. Como os espanhóis desconheciam o sentido que os ingleses atribuíam ao símbolo @ (a ou em), acharam que o símbolo seria uma unidade de peso - por engano . Para o entendimento contribuíram duas coincidências :

1- a unidade de peso comum para os espanhóis na época era a arroba , cujo a inicial lembra a forma do símbolo;
2- os carregamentos desembarcados vinham freqüentemente em fardos de uma arroba. Dessa forma, os espanhóis interpretavam aquele mesmo registro de 10@£3 assim : dez arrobas custando três libras cada uma. Então o símbolo @ passou a ser usado pelos espanhóis para significar arroba.

Arroba veio do árabe ar-ruba, que significa a quarta parte: arroba (15 kg em números redondos) correspondia a ¼ de outra medida de origem árabe (quintar), o quintal (58,75 kg).

As máquinas de escrever, na sua forma definitiva, começaram a ser comercializadas em 1874, nos Estados Unidos (Mark Twain foi o primeiro autor a apresentar seus originais datilografados). O teclado tinha o símbolo @,que sobreviveu nos teclados dos computadores. Em 1972, ao desenvolver o primeiro programa de correio eletrônico (e-mail), Roy Tomlinson aproveitou o sentido @ (at - em Inglês ), disponível no teclado, e utilizou-o entre o nome do usuário e o nome do provedor. Assim Fulano@ProvedorX ficou significando: Fulano no provedor (ou na casa) X.

Em diversos idiomas, o símbolo @ ficou com o nome de alguma coisa parecida com sua forma. Em italiano chiocciola (caracol), em sueco snabel (tromba de elefante), em holandês, apestaart (rabo de macaco). Em outros idiomas, tem o nome de um doce em forma circular: shtrudel, em Israel; strudel, na Áustria; pretzel, em vários países europeus.

quarta-feira, outubro 11, 2006





RITE RITA

O passeio e os passeios


Antunes Ferreira
Tropecei na beira do passeio e só então me dei conta que não era coxo. Há precisamente 33 anos, trinta e três, a idade que deus fez, mais uns pozinhos de semanas e escassos dias que claudicava sistematicamente e no consenso comigo próprio não tinha quaisquer dúvidas de que a mãe Natureza e, claro, os meus queridos e falecidos progenitores me tinham fabricado com uma perna mais curta do que a outra. Meide in Portugal.

De alguma forma e se estivesse mais atento, teria vai para cinco ou seis anos, compreendido a expressão de perplexidade que o senhor Reis, sapateiro de mester e de coração, afivelara na face glabra quando lhe perguntar se me faria um sapato com sola e tacão mais altos do que o outro. Deixe-se de merdas, sôr Fonseca, já não tenho idade para aturar brincadeiras de chavalos como você.

O digno artesão virara-me as costas de cifótico militante e nem mais um pio. O sacana é completamente parvo, pensei de Justino para Fonseca, isto é, de mim para mim. Mas, de imediato, a dispersão que me ladeia os lobos cerebrais entrou em vigor, sem publicação no DR. Cifose – curvatura anormalmente acentuada da coluna vertebral com convexidade posterior. Do grego kýphosis. A giba do Reis remendão era disso um atestado com assinatura reconhecida em cartório notarial privado.

Um dia houve em que decidi comprar uma bengala, uma a sério, com castão de alumínio (a prata está carota), não daquelas às riscas vermelhas e brancas com óculos escuros acoplados. Mas, como devem saber, eu, alem de introvertido por vocação, sou um tímido inconsciente e envergonhado concomitante. Toma. Por isso, não logrei avançar para o negócio. Não queria expor mais a minha atrofia, sobretudo a mental. E muito menos a uma trabalhadora balconista.

Daí que tivesse decidido continuar handicapado, ainda que a palavra me desse uma enorme e acintosa dor nas partes mais baixas do que altas. Continuei, portanto, um pé mais acima, outro mais abaixo – e fui-me habituando à ideia de que era marginal da meia-maratona, um paraolímpico quiçá mesmo um paraplégico encapuzado.

Meninas amai

Muitas vezes dei por mim a recitar uns versos que o meu idolatrado avô distribuía com o seu vozeirão tonitruante, a torto e a direito. Interiormente, está bem de ver, nem os lábios mexia, talvez a língua; ná nem esse órgão essencial para colar selos. Meninas amai um coxo; que um coxo também se ama; vede a graça que ele tem; de ir aos saltinhos prá cama. Reconfortava-me e fortalecia-me para aguentar tamanhas provações. Mesmo as de moscatel de Palmela.

Na minha rua havia a sede do Grupo Recreativo, Desportivo e Cultural do nosso bairro. Era por alturas do sem nunca e de quando em vez lá surdia o sarau da ordem. De resto, a ordem reinava no país, com a colaboração aliás prestimosa da ditosa PIDE. O Pinguinhas, especialista em tintos, brancos e assim assim, rosé não, que é sófete drinque, era o apresentador emérito das cenas do invento. Há quem diga evento, mas como não sei muito bem o que isto quer dizer, fico-me pela primeira forma.

O homem, viúvo da dona Ermelinda que falecera vai para uns tempos, engasgada com uma espinha craneana de cabeça de pargo cozida, para seis mânfios, mas que ela tentara denodadamente deitar abaixo só com o acompanhamento do amantíssimo esposo, à garrafa e à taça, declara-se a partir de então um ex-poso. Nunca tal palavra se aplicara tão perfeitamente a quem quer que fosse.

Dele se contavam estórias, qual delas mais safada do que a outra. Nos Jogos Olímpicos da asneira, o Pinguinhas ocuparia o pódio inteiro e ainda abicharia o quarto lugar, sem direito a medalha, obviamente, muito menos a ramo de flores e beijinho da Presidenta Honorária, Marquesa de Muitaflor.

Nos intervais e vens dessa meritória ocupação, o Pinguinhas não só locutava os saraus – mas era deles o organizador. Homem avisado, com um sentido organizativo mais apurado do que um curador de arquivo municipal. Aliás, contava-se que, um dia, aquando da substituição da vereação camarária, o novo dono do pelouro cultural fora visitar demoradamente o arquivo, onde o Pinguinhas, perdão, o Jerónimo Salavisa era ajudante de auxiliar de praticante do arquivador mor, o senhor Marcial.

Este último encontrava-se, adivinhem, de baixa, que já ia nuns onze meses bem medidos. Nas costas dele os subordinados insubordinados diziam que a baixa do Marcial não estava nada mal, ao que um que outro mais atiradiço acrescentava que o Marcial nem estava mal. Estava, apenas, de baixa. Jerónimo acompanhou o ilustre visitante e foi-lhe dando conta da falta de pastas de fecho metálico, marca Almor, cartonadas e cantos metálicos.

Pelo sim, pelo não

O senhor vereador, moita, carrasco. Chegados à última dependência, um salão tipo pista de dança dos Alunos do Apolo, deparou-se-lhes, ou mais precisamente lhe, ou seja ao senhor vereador. Os Himalaias de papeis amarelecidos iam do soalho encardido ao tecto aspas. O que vem a ser isto, ó Salavisa.

Explicou o funcionário cumpridor que se tratava de minutas, apontamentos, contas de nada, memorandos, tudo antigote, do tempo da pedra lascada – e sorrira. Ó Salavisa, vai-se deitar fora toda esta cagada que só ocupa espaço e não traz alegria, muito menos vantagem a ninguém. Estamos entendidos? Bem precisamos de instalações para coisas importantes e esta é ampla. Bem iluminada vai ficar um mimo.

Saiba Vocelência que assim se fará. O espaço é cada vez mais precioso e ainda agora os ditos soviéticos vermelhuscos o conspurcaram, ao lançaram para lá uma pobre cadelinha de nome Laika. Só tais safardanas seriam capazes de tal pulhice, perdoe-me a expressão, senhor vereador, mas um homem não é de pau. Adiante. Apenas uma sugestão: antes de dar cabo desta papelada toda não será melhor fotocopiá-la. Nestas coisas, homem prevenido.

Na sequência, o senhor vereador também ficou de baixa, na Baixa, ali pelo Nicola, tratando-se a Mosca e Constantino, cuja fama já vinha de longe. O Salavisa, por seu turno, baixara de posto e de funções: passara a estagiário de ajudante de auxiliar de praticante de segunda. Encarregado da manutenção da pulcritude das instalações, para o que lhe fora debitada a correspondente vassoura, o balde e afins.

Foi precisamente nessa altura que a topada passeiral me acontecera e pusera a nu o autoludíbrio em que sempre vivera. Abençoada? Maldita, maldita, maldita. Um cidadão impoluto, neste caso eu, desce da virtual convicção de que era um exemplar diminuído para cair na mais atroz e comezinha realidade de que se tratava dum vulgar de Lineu, sem direitos, regalias ou, mesmo, mordomias. Filho da puta de tropeço.

Agora, eu tinha de vender o chasso adaptado que tinha o privilégio de conduzir, o pedal do acelerador mais alto do que o do travão, o da embraiagem neutro, para não destoar. E quando entrar na repartição, até o Januário Pinguinhas-Salavisa se vai rebolar a rir. Sei lá se o chefe me chamará à secretária, púlpito imponente e impar de onde dirige as operações para me dizer que estava na rua, embusteiro de merda, mentiroso.

Quando, no fundo, eu sou tão só um pouco despassarado. Lancis há muitos, tal como chapéus e um individuo não sabe onde põe o pé a toda a hora e momento. Basta um cagajésimo de segundo e lá se vai o convencimento, lá se soltam as convicções, lá emigram os princípios de que um se pode – e deve – orgulhar.

Assim por assim, vou dar o salto. Nada, não se trata do salto do sapato em cunha para ser mais alto do que o esquerdo. Refiro-me ao exílio voluntário, ao ostracismo, ao deserto, ao eremita, às raízes de erva daninha para mastigar. De preferência com uma pitada de Savora. Se ela se aninha nos pregos, porque bulas não há-de?

De tal local desabitado e desumano, nunca alguém pensará que alberga um sujeito que durante 33 anos e picos, 33 que, relembro, é a idade que deus fez, coxeou convictamente. E que, de supetão descobriu que era um coxo desvirtuado. Aparente. Acresce que por tais bandas não há beiras de passeio. Nem passeios.

quarta-feira, outubro 04, 2006



O atestado médico


José Ricardo Costa
Imagine o meu caro que é professor, que é dia de exame do 12º ano e vai ter de fazer uma vigilância. Continue a imaginar. O despertador avariou durante a noite. Ou fica preso no elevador. Ou o seu filho, já à porta do infantário, vomitou o quente, pastoso, húmido e fétido pequeno-almoço em cima da sua imaculada camisa. Teve, portanto, de faltar à vigilância. Tem falta. Ora esta coisa de um professor ficar com faltas injustificadas é complicada, por isso convém justificá-la. A questão agora é: como justificá-la?

Passemos então à parte divertida. A única justificação para o facto de ficar preso no elevador, do despertador avariar ou de não poder ir para uma sala do exame com a camisa vomitada, abandalhada e malcheirosa, é um atestado médico.

Qualquer pessoa com um pouco de bom senso percebe que quem precisa aqui do atestado médico será o despertador ou o elevador. Mas não. Só uma doença poderá justificar a sua ausência na sala do exame. Vai ao médico. E, a partir este momento, a situação deixa de ser divertida para passar a ser hilariante.

Chega-se ao médico com o ar mais saudável deste mundo. Enfim, com o sorriso de Jorge Gabriel misturado com o ar rosado do Gabriel Alves e a felicidade do padre Melícias. A partir deste momento mágico, gera-se um fenómeno que só pode ser explicado através de noções básicas da psicopatologia da vida quotidiana. Os mesmos que explicam uma hipnose colectiva em Felgueiras, o holocausto nazi ou o sucesso da TVI.

O professor sabe que não está doente. O médico sabe que ele não está doente. O presidente do executivo sabe que ele não está doente. O director regional sabe que ele não está doente. O Ministério da Educação sabe que ele não está doente. O próprio legislador, que manda a um professor que fica preso no elevador apresentar um atestado médico, também sabe que o professor não está doente. Ora, num país em que isto acontece, para além do despertador que não toca, do elevador parado e da camisa vomitada, é o próprio país que está doente.

Um país assim, onde a mentira é legislada, só pode mesmo ser um país doente. Vamos lá ver, a mentira em si não é patológica. Até pode ser racional, útil e eficaz em certas ocasiões. O que já será patológico é o desejo que temos de sermos enganados ou a capacidade para fingirmos que a mentira é verdade.

Lá nesse aspecto somos um bom exemplo do que dizia Goebbels: uma mentira várias vezes repetida transforma-se numa verdade. Já Aristóteles percebia uma coisa muito engraçada: quando vamos ao teatro, vamos com o desejo e uma predisposição para sermos enganados. Mas isso é normal.

Sabemos bem, depois de termos chorado baba e ranho a ver o "ET", que este é um boneco e que temos de poupar a baba e o ranho para outras ocasiões. O problema é que em Portugal a ficção se confunde com a realidade. Portugal é ele próprio uma produção fictícia, provavelmente mesmo desde D. Afonso Henriques, que Deus me
perdoe. A começar pela política.

Os nossos políticos são descaradamente mentirosos. Só que ninguém leva a mal porque já estamos habituados. Aliás, em Portugal é-se penalizado por falar verdade, mesmo que seja por boas razões, o que significa que em Portugal não há boas razões para falar verdade. Se eu, num ambiente formal, disser a uma pessoa que tem uma nódoa na camisa, ela irá levar a mal.

Fica ofendida se eu digo isso é para a ajudar, para que possa disfarçar a nódoa e não fazer má figura. Mas ela fica zangada comigo só porque eu vi a nódoa, sabe que eu sei que tem a nódoa e porque assumi perante ela que sei que tem a nódoa e que sei que ela sabe que eu sei.

Nós, portugueses, adoramos viver enganados, iludidos e achamos normal que assim seja. Por exemplo, lemos revistas sociais e ficamos derretidos (não falo do cérebro, mas de um plano emocional) ao vermos casais felicíssimos e com vidas de sonho. Pronto, sabemos que aquilo é tudo mentira, que muitos deles divorciam-se ao fim de três meses e que outros vivem um alcoolismo disfarçado. Mas adoramos fingir que aquilo é tudo verdade.

Somos pobres, mas vivemos como os alemães e os franceses. Somos ignorantes e culturalmente miseráveis, mas somos doutores e engenheiros. Fazemos malabarismos e contorcionismos financeiros, mas vamos passar férias a Fortaleza. Fazemos estádios caríssimos para dois ou três jogos em 15 dias, temos auto-estradas modernas e europeias, mas para ver passar, a seu lado, entulho, lixo, mato por limpar, eucaliptos, floresta queimada, barracões com chapas de zinco, casas horríveis e fábricas desactivadas.

Portugal mente compulsivamente. Mente perante si próprio e mente perante o Mundo. Claro que não é um professor que falta à vigilância de um exame por ficar preso no elevador que precisa de um atestado médico. É Portugal que precisa, antes que comece a vomitar sobre si próprio.


Nas colunas de «O Torrejano»

O autor deste escrito é um professor de Filosofia que escreve com regularidade no jornal «O Torrejano». Chegou-me às mãos por intermédio de um Amigão, o António Manuel Reis, sempre atento a coisas destas e a quem envio o primeiro dos obrigados. O semanário de Torres Novas, que também tem uma edição on line, vai nos 13 anos de publicação, o que já não é pouco. Mais, a persistência da equipa que o faz, encabeçada pelo director, o jornalista Joaquim da Silva Lopes, e a correspondente determinação, aliada a uma idade não despicienda, é bem exemplo do que é hoje a informação regional.

O texto parece-me muito interessante, a roçar as raias do notável. Por isso o publico neste blogue, como já tem acontecido em muitas outras ocasiões. Em conversa telefónica com Silva Lopes, dei-lhe conhecimento da minha intenção, ao que ele correspondeu imediatamente com a cordialidade própria da maioria dos que fazem parte da grande família da Comunicação Social. Muito obrigado.

Aproveito para aqui referir que, durante a troca de impressões com o director de «O Torrejano» o convidei para dentro do tempo de que dispõe, seja mais um correspondente do travessadoferreira.blogspot.com. Também neste particular Silva Lopes não disse que não. A espaços, talvez, retorquiu-me. Fico, assim, com a esperança de o ter na nossa equipa. Outro agradecimento. E quedo-me por aqui nos agradecimentos.

Muitas felicidades para «O Torrejano», para quem nele trabalha e para quem o dirige. Exemplos destes vão, sendo, felizmente, cada vez mais frequentes em Portugal. Continuem, pois, na senda do sucesso – e do progresso.

Antunes Ferreira



terça-feira, outubro 03, 2006




Ajuste de contas

Antunes Ferreira
E
ali estava ele, plantado no meio de uma parada desnivelada, o cimento corria todo para um lado, mais parecia um daqueles campos de futebol em que uma das equipas é tão má que parece estar uns metros abaixo do adversário e por isso o esférico está sempre no meio campo inclinado dos infelizes. Só que na segunda parte, o declive muda...

Aqui não. Aqui, o construtor que aproveitara o antigo convento para o transmudar em quartel, não se detivera perante o pátio sem claustro algum: estava à banda para baixo, assim ficaria a parada. E ficou. Uns largos anos depois, uns tipos da Engenharia Militar tinham tentado resolver a questão. Porém, o caso era mais bicudo do que lhes parecera à primeira vista.

Quem lhe contou a estória foi o sargento-ajudante Custódio, homem de largos anos na Companhia, que só não assistira ao passe de mágica que transformara o edifício fradesco em casernas militares. Por um pouquinho só, dizia ele. Pois claro. Corria o ano de 1966 e as obras tinham decorrido nos princípios de mil e oitocentos. O sorja, amante da boa pinga e militante da boa disposição era um prato, um verdadeiro prato.

Naqueles preparos, Carlos Vidigal sentia-se um tanto como um aluno interno a quem fora concedido um fim-de-semana prolongado por mor de ponte de feriado à terça-feira. Longe de casa, dos mimos da mãe – aos filhos únicos eles não costumam rarear, bem pelo contrário – com um oceano pelo meio, ainda que fosse o mesmo, o alferes era quase como um cuanhama num igloo.

Quem lhe tirava Lisboa

Luanda era bonita, lá isso era, mas quem lhe tirava Lisboa, tirava-lhe tudo. A família morava num prédio da Rua Maria Pia, um pouco acima da Meia-Laranja, onde passava o autocarro 12 para Algés. Segundo andar, sem elevador, está visto, nem esquerdo nem direito, segundo, só. Donde, sete assoalhadas e um corredor que ele em miúdo acreditava der igual ao túnel do Rossio.

Aos domingos, o pai Ernesto, a mamã Elvira e o rebento estremecido desciam até ao largo de Alcântara para tasquinhar uns caracóis ou, depois da afirmação do Eusébio, o melhor marisco para o futebolista, o tremoço. O Senhor Ernesto servia-se de três Sagres enquanto deglutia a parte maior das rações. A Dona Elvira era mais capilé. Ele tinha direito a um pirolito com berlinde.

Depois vinha um bacalhau com todos, dose alentada que dava sem receios para a família Vidigal. Isto porque o Carlinhos, ainda que preferisse um bifinho com um ovo a cavalo e batatas fritas, ainda não tinha idade para ter gostos e alinhava compulsivamente no fiel amigo. De brinde, calhava-lhe o ovo cozido, ainda que fosse a pé. Era um prémio de compensação, como os que dava o senhor Igrejas Caeiro nos Companheiros da Alegria.

Nisto tudo pensava – mas em mais. Carlos fora para o seminário, progenitores católicos-apostólicos-romanos anteviam um bispo, até um cardeal, quem sabe se... Mas conclaves, só lá mais para diante. Na noite em que o Neil Armstrong pisou a Lua – um pequeno passo para os homens, um salto para a humanidade – descobrira que os homens o atraíam. Apaixonou-se perdidamente pelo astronauta.

Noites depois, no dormitório, hesitou uns momentos apenas quando o Jorge, mais conhecido por Jorginho, lhe disse que tinha frio, muito frio, e a manta não chegava. Se tu viesses para o pé de mim, aquecias-me... Vidigal entrevia-lhe o sorriso convidativo, no meio da escuridão. E uma língua rosada que humedecia os lábios. Decidiu-se.

Afastou a coberta, levantou-se de vagar não fosse qualquer barulho denunciar o que quer que fosse e meteu-se na cama do Jorginho. Ele estava nu, o que o assustou um pouco. Olha querido, despe-te também, aquecemo-nos um ao outro. E assim foi. O começo de um deslumbramento, ambos erectos, as mãos ocupadas em explorações e manipulações. Trocaram beijos, trocaram línguas.

Noites sem fim

Duas noites depois, os beijos já foram outros. Gemiam em sussurro, empolgados como animais em cio. E, mais tarde, quando o amante entrou nele, Carlos rangeu os dentes – mas não gritou. À explosão que se seguiu de ambos, um fora outro dentro, estenderam-se estafados e encheram-se de carícias. No dia seguinte fora-lhe um tanto difícil sentar-se ao pequeno-almoço – mas passara.

Mal as luzes se apagaram, calhou-lhe a vez de satisfazer o apaixonado. Este, do hábito, apenas ronronava, não lhe doía o que quer que fosse, bem pelo contrário. Porém ele, Carlos Vidigal apercebeu-se que fora melhor na véspera. Carinhosamente, para não o aborrecer, confidenciara ao seu Jorge que era assim. Um riso baixinho, querido, passas a ser a minha mulherzinha.

O mal foi quando o padre vigilante os apanhou em flagrantíssimo. Chamadas as famílias, encobriram-se as vergonhas e os dois na rua. Os Vidigais fecharam-se em copas, a mãe só lhe disse que tinha muito que se penitenciar e rezar muito. Começou a cumprir a pena. Do Jorge, nem sombra. Os pais tinham-no mandado para uma roça que tinham em São Tomé, soube depois.

E agora? Estava naquilo, quando foi à inspecção e logo depois incorporado. Má sina. Curso de Oficiais Milicianos, caserna, duas camas afastado um moço penteadinho, engraxadinho, botões cosidos, farda impecável. Fernando, de seu nome. Numa sexta-feira estavam os dois de piquete e o Nandinho convidara-o para ver umas revistas daquelas. Mulheres nuas? Que chatice. Mas aceitou. Mal parecia.

Sentados na beira da cama, o Nando abre a primeira – e eram só homens, alguns peludos, outros glabros, musculosos e com um denominador comum: os instrumentos, grossos, apetitosos. Como descobrira o novo conversado que ele se pelava por tal, nunca viera a descobrir. Descobrira sim o climax que ambos alcançaram, ele de novo submisso e feminil.

Devaneios, poucos

Desta feita não houve alerta dado por ninguém. Promovidos a aspirantes, foram um para cada lado, Chaves e Faro, que dor a do afastamento. Nunca mais se veriam. Carlos passou à frente os episódios que mediaram até Angola. Com um ou outro devaneio, é certo, mas nada de especial, de paixão, de enlevo.

O suor escorre-lhe da cabeça, sempre assim fora, mesmo em Lisboa. Mas aqui sente-se pingar por dentro da camisa, está peganhento, que calor sufocante, que incómodo. Meu arfere essi filho da puta desse Caritangue me fanou dojequinhento que eu guardou para comprar peixe seco. Lhi pode chamar e sacar o meu dinheiro? E uma ekada, que o gajo bem merece. O capitão Sarzedas é que era o especialista, daí a oferta nos discos pedidos, do «Deixa meu cabelo em paz», do Roberto Carlos.

O queixoso era um preto alto, muito alto, e entroncado. Sebastião Quissonde, cabo Rd, calculava que ele tivesse uns trinta e poucos, mas com tal gente nunca se sabia, talvez entre os vinte e os cinquenta. Impressionou-o, com a figura garbosa, um buço sobre uns lábios grossos, sensuais. Pela cabeça passaram-lhe imagens desnaturadas. Lá estava ele. Em abstinência há quase quatro meses.

A coisa resolveu-se. Sebastião ficou-lhe agradecido. Carlos passou a vê-lo no quartel, com outros olhos, cobiçosos, safados, desejo plantado nas pupilas. Era realmente um machão, o nosso cabo. À medida que lhe crescia a ânsia, Carlos avaliava-o cada vez mais em pormenor. O matulão não enganava: o volume sob a braguilha era um acicate para o alferes miliciano. Aliás, tinham-lhe dito que os pretos eram todos proprietários de coisos desmesurados, impressionantes. Um dos seus ocasionais parceiros, o Costinha, contara-lho entre lençóis.

Por uma tarde de mornaço, o oficial perguntou ao Sebastião se queria ser seu impedido. O homenzarrão sorriu-lhe. Quer mesmo o meu arfere? Quer o Sebastião? A pergunta pareceu-lhe provocatória. A insistência, ainda mais. Está visto que quero. Tens mulher? Não tem, meu arfere. Passas a desarranchado e dormes no anexo da minha casa, tá bem? E a senhora do meu arfere não está a se importar? Não tenho senhora. Ora bem, assim não tem maka.

Sem pormenores

Nem vale a pena entrar por pormenores. Carlos exultava. Tudo o que o Costinha lhe tinha confidenciado não era nada à vista do que o cabo lhe exibiu logo na primeira noite que se preparava para dormir lá em casa. Porque não dormiu. Nem ele, muito menos Carlos. Não estivesse já preparado e ter-lhe-ia sido impossível aguentar com um Sebastião em riste. Mas aguentou, de princípio agarrado aos varões da cama de ferro trabalhado, mordendo os beiços para não dar parte de fraco. Depois, no paraíso.

Já não podia passar sem o seu Sebastião. Daí que, na primeira coluna ao mato, a caminho de Santa Eulália o levou como… veja-se, como guarda costas. Nunca o termo fora mais apropriado. O MVL tinha 98 camionetas pesadas, transportando tudo, de munições a uísque, até um Unimog novinho em folha, que seguia em cima duma Bedford de força.

As duas primeiras noites na terra do caminho foram um tormento. Com tantos camionistas, ajudantes, militares e afins e correlativos, não se podiam sequer chegar um ao outro quanto mais o resto. Mas na terceira, que divisava já, Carlos via o jardim das delícias. Tinha aquartelamento, que sorte, tudo lhes ia correr de feição, por aquelas bandas com a floresta à volta ainda seria mais emocionante. Havia de lavar-se e lavá-lo, com mimos e carinho, sabonete Lux, daqueles que em cada nove estrelas de cinema, dez usam, e água de colónia Bienêtre, antecipando e saboreando o inevitável.

A picada e a mata, num repente, transformaram-se num inferno. Uma emboscada a sério, rajadas em barda, granadas, sabia lá o que mais. Sebastião ficara mais afastado, vomitando balas duma metralhadora pesada. Bem gostava de o ter ali ao pé, mas a vida era assim. Deu-se conta de que qualquer coisa se mexia atrás de si. Devia ser o querido que se lhe juntava. Os outros vieram quase junto deles para os agarrar à mão, era um festim, mas a tropa conseguiu repeli-los.

Acalmada a borrasca, foram-se a contas. Dois feridos um com direito a penso individual do combatente, outro com talas, mas nada de grave. Então deram com o alferes. Em decúbito, calças em baixo, todo ele era sangue, mortíssimo. Uma vareta de obus, grossa e lixada tinham-lhe enfiado entre as nádegas obscenamente nuas. E quando o voltaram viram que lhe haviam cortado o sexo. Um espanto.

Mais ao lado, o impedido Sebastião mirava o corpo descomposto e desarticulado, resmoneando algo por entre os dentes branquíssimos. Ninguém se preocupou com ele. Devia estar rezando-lhe o responso e a encomendação que, agora, de nada já serviam. Estavam todos vivos, menos o oficial, que se lixasse. E o Sebastião continuava a sua cantilena que não se compreendia. Devia falar em quimbundo. E o Sebastião, baixinho: sacana di merda, você deves ter gostado. Do escovilhão que lhi encheu o cu. Lhi ajustou os contas, paneleiro.