sábado, dezembro 29, 2007




Outro ano

O tempo vai andando, os dias escorrem por entre os dedos, o calendário desfolhado e desflorado, as coisas vão passando.
Mais um ano do Travessa do Ferreira. Que continua e pretende chegar cada vez mais longe e a mais gente. Parabéns – para quê. Apenas o registo. Obrigado.
Antunes Ferreira

GOA, DE NOVO








Sem pecado








Antunes Ferreira
D
ona Umbelina morava nas Fontainhas. Na Rua do Natal. Uma casa apalaçada, de estilo colonial, como quase todo o bairro castiço. Uma espécie de Alfama de Panjim, só que plana. A maior subida da capital goesa dava para o Altinho e o resto era chão raso, bordejando o Mandovi e estendendo-se já muito para a outra margem. Porvorim, onde ficavam já os edifícios oficiais, a começar pela Assembleia.

Senhora de virtude, de hábitos e práticas irrepreensíveis, vestidos ocidentais, à boa maneira dos portugueses que por ali tinham estado quase meio século, mais precisamente 451 anos bem contados. Solteira, quando baizinha os pais tinham-lhe vaticinado convento, já havia um mano padre, Salustiano de seu nome, donde a vocação empurrada.

Não fora. Bem lhe dissera o Pai, Marcelino de Souza Menezes e Brito, médico pela Escola de Goa, que, quer ela quisesse, quer não, Doroteias. Ela, porem, recordava a história que a velha aiá Arlinda lhe contava de um battcar que avisara o filho de um seu manducar: rapaz, quer você queira, quer não, vai voluntário para o Seminário. E o chardó não fora. Ponto final, parágrafo.

Assim aconteceu com Umbelina. Nem pensar em tal caminho, ela era muito fiel a Deus e a ele também temente, mas lá hábito é que não. Guardaria castidade para toda a vida, porém noviça não era o seu destino. Por isso, enfrentara a bigodaça paterna, deu borem korum, muito obrigado, mas nesse patmarim não embarcava ela.

Contra o que seria de esperar, Salustiano, já padmestre, apoiara-a na resolução. Para sotaina ou batina, tanto faz, já basta a que envergo, Deus tenha piedade de mim. A mana escolheu, está escolhido. Estou com ela, de alma e coração. Um espanto. E a paclina Ester, esposa do major Mendonça, professora no Liceu Nacional Afonso de Albuquerque, terçara também armas em defesa de Umbelina Delicada Mascarenhas Melo Menezes e Brito.

Se a menina não quer ser irmã da caridade, que não seja. Deus Nosso Senhor não deseja na Sua Igreja gente a isso obrigada. Por coisas assim, já se tinham perdido vidas de caminho são, até soiriques se tinham desfeito, quase em cima da data marcada para o casório, escândalos a que boas famílias brâmanes não se deviam sujeitar. Católicos – mas brâmanes.

Dizia-se então que por ali andaram rondando a casa um tal Marinho, pacló, de Mortágua, e um outro, Monteiro, descendente. Vá lá saber-se da verdade, os gostos são de cada um, ninguém deve ter nada com isso, vão-se os anéis – mas fiquem os dedos. Com pretendentes de tal coturno, não haveria casamento, muito menos torna-boda. Como não houve.

Bab Marcelino foi o primeiro a finar-se, bastos anos depois da nega filial, consta que consumido pela atitude da filha. Se o foi, nada disse a ninguém. O confessor, padre Malaquias, linguarudo praticante e coscuvilheiro militante, no caso não se abriu. Silêncio e recolhimento receitara o sacerdote aos que dele se abeiraram em busca de um indício que fosse. Nada.

O doutor Miranda, médico de casa, também se mantivera mudo e quedo. Morrera de consumido? Deixara-se morrer? Nada comia por último, nem umas bakri, muito menos qualquer baji ligeiro, sequer o péz. Pois que assim corresse, não seria o clínico que achegaria mais lenha para a fogueira. Certidão de óbito – morte natural, de velhice, sempre eram 82 anos.

Ao encomendar o corpo, o filho Salustiano, na homilia da missa respectiva, com mais dois celebrantes e sacristães correspondentes, enalteceu as virtudes do progenitor, perante as lágrimas copiosas de Bai Juliana, na sua negrura de viuvez, e uns soluços sussurrados de Umbelina. Os outros irmãos, Alfredo e Benedito assistiram impávidos e serenos. Compostura e dignidade. Coisas que hoje vão faltando, maus vão os tempos.

Seguiu-se, uns escassos meses depois, Dona Juliana. Enfarte, diagnosticou o galeno Miranda. E depois, e depois, Benedito, Alfredo e o padmestre Salustiano. É a lei da vida, dissera o cónego Mascarenhas, de Calangute, praia apessoada, vacas no areal, à mistura com saris e camisas engravatadas, domingueiras. E recomendara resignação q.b. a Bai Ursolina.

Como se ela precisasse disso. Crente, piedosa e paroquiana ilustre, sabia muito bem como havia de reagir. De resto, do mesmo modo como sempre vivera. Independente, intransigente, imponente – Senhora. De manhã, para a criadagem condescendia num deu boró dis dium e ponto final no konkanim. E já era muito os bons dias altivos e distantes. No resto da jornada, Português correcto, irrepreensível.
Às várzeas mandava o capataz Franquelim, para contar os cocos, olhar os búfalos e ver a apanha do arroz.


De pecados, nem falar. A vida espartana, o vestuário sóbrio, mas de alguma forma elegante, as golas rendadas alvejando no negro de sempre, a prática quotidiana do terço acompanhada pelos serviçais, a romagem a Velha Goa para a visitação das igrejas e o culto do Santo Apóstolo das Índias, preenchiam-lhe o tempo que se arrastava sem sobressalto que fosse. Goesa.

Pelo Dia dos Defuntos, coroas de mogarins; pelo Natal, presépio do século XVII e cake, pela Páscoa, a ressurreição alumiada. Noman Moriê, Ave-maria, o Senhor é convosco. Saibinn de Fátima orai por nós. Esmolas e óbulos em tempo certo, também não convinha habituar mal sudras, até mesmo bonguis. A misericórdia e a clemência divinas eram mais do que suficientes para alimentar os inferiores.

Por uma manhã de monção, chuva em bátegas de arrepiar, as carepas das janelas quase estilhaçadas, Dona Umbelina soergueu-se por entre os lençóis, ajeitou-os, persignou-se e finou-se. Assim mesmo, tranquilamente, sem um ai, com a devida sobriedade para momento de tamanha solidão e solenidade. Funeral bonito, missa naturalmente cantada, com bispo e tudo, banda acompanhando os passos do cortejo ao cemitério.

Naturalmente que a alma, libertada da grilheta corporal, nem parou na poole position. Meteu a sétima velocidade, e subiu ao céu em velocidade estonteante, qual gaddi, qual quê, mais rápido que um qualquer vaivém espacial. A ausência de pecado, por menor que fosse, ainda que venial, justificava a celeridade da alma umbeliniana.


De tal modo que São Pedro, à porta do Paraíso, fiscalizando os anjos da recepção e os computadores celestiais, pegou no telemóvel e gritou-lhe, sem hesitações: Dona Umbelina, diga merda, já! Se não, não pára cá, entra em órbita!...

Pequeno glossário Konkanim - Português

Aiá - Aia
Bab - Senhor
Bai – Senhora
Baizinha – Menina
Baji – Estufado de batata, lentilhas, grão e outros
Bakri – Papas de farinha de trigo
Battcar – Proprietário rural, para quem trabalham os seus manducares
Bonguis – Homens de casta inferior que despejavam as latrinas
Carepas – Lamelas duras, nacaradas e translúcidas, depois substituídas por vidros nas janelas
Chardó – Casta segunda, depois dos brâmanes
Descendente – Produto da mestiçagem imposta por Afonso de Albuquerque
Deu boró dis dium – Bom dia
Gaddi – Carrocinha
Konkanim – Língua de Goa, oficial
Mogarins – Florzinhas perfumadas
Pacló – Branco, Português
Paclina (fem. de pacló)
Padmestre – Padre professor
Patmarim – Barco artesanal
Péz – Canja, caldo só de arroz
Saibinn – Nossa Senhora
Soirique – Arranjos para o casamento, feitos por interposta pessoa
Sudras – Casta inferior em Goa, a terceira na hierarquia

Com os meus agradecimentos ao Prof. Teotónio de Souza


Goa – Promessa e adenda
Uma vez mais estive em Goa. Bastantes vezes lá fui, minha mulher é goesa, sou um admirador, mais, um apaixonado pela terra, linda, e pela gente, magnífica. Desta feita 15 anos depois da última estada. Do que vivi e espreitei e conversei por ali, da água do Índico a 25 centígrados, da calma e da tranquilidade, aqui darei conta, com maior ou menor aptidão ou habilidade. Hoje, trata-se de uma adaptação fictícia de anedota com barbíssimas. Que me desculpem os leitores e, sobretudo, os goeses pelas heresias que tenha cometido, nomeadamente no konkanim. Não se esqueçam: sou um pacló… A.F.

quinta-feira, dezembro 27, 2007





À RODA DOS DIAS

Dezembro

Maria Lúcia Garcia Marques
D
e onde quer que se olhe, Dezembro é um mês difícil. Paradoxal, diria eu.

É o último mês do calendário, mas celebra o começo de um tempo novo. Quer se creia quer não, o nascimento do/dum Deus-Menino passou a balizar a contagem do tempo – anno Domini (a.D.) – a ser marco universal da História – antes e depois de Cristo (a.C. e d.C.). E, quer se queira quer não, globalizada a festa deste advento, mercadeja-se um regozijo de circunstância, vive-se de luzes e outros brilhos, e a alegria parece multiplicar-se como que reflectida num jogo de espelhos paralelos. Há o calor das tradições sobreviventes, uma ou outra amizade ressuscitada, reencontros felizes, benevolências e reconciliações. Paz na terra...

Mas porque todos os espelhos têm o seu lado baço, esta é só metade da legenda e é nestes dias de Festas que se querem Felizes, que dói mais a dor do mundo. É o tempo de todos os balanços e os negativos vêm à tona com especial crueza e acutilância – e, quer o queiramos quer não – há uma culpa difusa que nos magoa por dentro e nos embacia o júbilo. São os desastres da Mãe-Terra, as fomes, as pragas e a doença, as injustiças e as humilhações, a exclusão, as solidões – tanto as próximas como as longínquas – que nos assolam a consciência e nos travam o coração.
É o tempo da Caridade induzida (antes esta que nenhuma ...) por esta Pobreza polimórfica cuja fome jamais se mitigará porque é o avesso perene de toda a Abundância e alerta, incessante e vivo, para toda a humana falência.

E por isso se acordam os homens de boa vontade, se chamam universalmente os pastores/curadores dos bens do mundo, nos interpelam a nós, nas nossas posses e poderes, no nosso afecto, para que se acorra aos multiplicados presépios do infortúnio e da exclusão, com as nossas dádivas – não apenas de socorro mas também de irmandade e esperança. Algo que, à nossa escala comum, se assemelhará à imagem que o Poeta (Ruy Belo) traçou de “Um Rosto no Natal”:


(...) Eu caminhava e como que dizia
àquele homem de guerra oculta pela calma:
se cais pela justiça alguém pela justiça
há-de erguer-se no sítio exacto onde caíste
e há-de levar mais longe o incontido lume
visível nesse teu olhar molhado e triste
Não temas nem sequer o não poder falar
porque fala por ti o teu olhar
Olhei mais uma vez aquele rosto. Era Natal
é certo que o silêncio entristecia
mas não fazia mal, pensei, pois me bastara olhar
tal rosto para ver que alguém nascia.


Nascer é ter Futuro e futuro é ter Esperança, esperança fide-digna, verdadeiramente digna de Fé. É dizer como Scarlett O´Hara, algures em “Tudo o Vento Levou”, sentados no último degrau deste ano que finda, olhando bem em frente: Amanhã, amanhã é outro dia!


***
E
aqui se me acaba o calendário. (Vitória, vitória, acabou-se a história!)! Foram folhas que caíram num chão amigo. Foram palavras com alma que vos fui encomendando. E agora acendamos a Estrela de 2008 com a esperança de que ela fique brilhando para todos, desanuviada e feliz.

NE - Ora muito bem. Terminou este ano desmiolado, começa um 2008 qual melão: só depois de aberto é que. De resto, o João Pinto portista ficou para a pequena história: previsões... só no fim do jogo.
Maria Lúcia: Está vocemecê intimada a continuar à roda dos dias. Não faltava mais essa que a minha voluntária & ilustre colaboradora acenasse e abalasse. A ser assim, aventava-a pela janela - de rés-do-chão, baixinho, está visto, se não ninguém mais aturava o JASGM. Principalmente, eu.
Por isso, menina: Janeiro, a tempo e horas, sem horas extraordinárias. Dizem que se está em tempo de crise. Crise estranha, em que os restaurantes caros estão a abarrotar de malta em crise; em que os andares de luxo de carradas de euros, são comprados na planta por malta em crise; em que os automóveis, os telemóveis, os computadores, os frigoríficos, o digital recheiam os haveres da malta em crise; em que as férias na estranja, Brasil, Tailândia, Leste, México, Maurícias, eu sei lá, aumentam exponencialmente para a malta em crise. Viva, pois, a crise. Com ela é que se vive bem, de preferência em economia subterrânea, ainda que o Teixeira dos Santos não goste nada.
Donde, querida Maria Lúcia: nem o Apóstolo das Índias a dispensaria da Travessa do Ferreira. Lázara: Levante-se e ande. A.F.

domingo, novembro 11, 2007



À RODA DOS DIAS

Novembro

Maria Lúcia Garcia Marques
N
ovembro sempre se me afigurou um mês pacífico e feliz, algo sério e muito ponderado, de quem faz contas à vida e toma o peso à consciência. Parece antecipar um qualquer fim anunciado e, pausadamente, na madura idade dos seus dias, vai pondo ordem na casa.

É o senhor absoluto do Outono, vestido dessas cores brunidas pelo tempo, em ouropéis de folhas, céus velados, fins de tarde de veludo a descair na noite – e os mil brilhos que se acendem nela mais parecem as velas de uma procissão que piedosamente vai fechando a ronda dos dias.

É o penúltimo dos doze meses do calendário de Júlio César que reformou o anterior calendário romano em que o ano começava em Março e, portanto, ele era o nono. Daí NOVEmbro (como SETEmbro era o sétimo, OU(C)TUbro era o oitavo e DEZembro o décimo). E eis que o número 11 que adquiriu na nova datação surge, na simetria dos seus dígitos, portador de harmonia e equilíbrio. Repare-se nestes dois 1s perfilados que nem soldadinhos de chumbo, sólidos e irmanados na sua postura vigilante e protectora numa paridade de pura simetria.

E a simetria dá segurança, conforta, repousa os olhos e a mente. No “efeito espelho” que lhe é próprio, tanto para os similares como para os contrários, retrata a dualidade de que os homens, a natureza e a própria vida somos feitos: o nosso corpo quase todo construído em duplicado (dois olhos, dois ouvidos, duas mãos...) e, no cosmos, a água e o fogo, a terra e o ar, o dia e a noite, o calor e o frio, como, na existência dos homens, o bem e o mal, o amor e o ódio, a guerra e a paz, o perdão e a culpa ... e, para todos, o inexorável dual, sempre em duelo, da Vida e na Morte.

Será por isso talvez que em Novembro, na espiritualidade católica, se celebram, geminados, o Dia de Todos os Santos – não apenas os dos altares mas também os vivos, que os há... – e o Dia de Finados, con-sagrando a memória dos que caminham, a par mas apenas sem se verem, dos dois lados do rio da existência: os Vivos e os Mortos. E nisso eu creio: tanto afã, tanto sofrimento, tanto trabalho duro e querer constante, tanta esperança e risco empenhados nesta vida têm de ter uma paridade: um lugar eterno de refrigério e paz, um tempo de justiça (de expiação, talvez, de regeneração, decerto), no outro lado, na outra margem, em terra de plena e límpida Alegria.


Uma paridade que, no registo terreno, São Martinho, o Santo do mês e tão do culto popular, intuiu, ao dar, numa noite de invernia, a metade da sua capa a um pobre que lhe pediu auxílio. Veja-se a inteligência do gesto: a caridade não esteve em dar tudo, pois despojar-se inteiramente mais não fazia que inverter as posições e manter intacta a injustiça; esteve sim em repartir, dando do que era seu em quinhão igual, exemplo vivo da partilha equitativa dos bens deste mundo pelas criaturas de Deus.


E ponto final em tanta “filoteologice”! Vamos mas é àquilo com que Novembro rima mesmo: um bom punhado de “quentes e boas” com um copinho de jeropiga. E venha de lá esse Verão de São Martinho!

NR - Castanhas - caras. São Martinho - raro. Prefiro agua-pé. AF




Rouquidão


Antunes Ferreira
P
adre Francisco não falhava um sermão. Pároco de uma freguesia, São Crispim, à direita de quem sobe e, curioso, à esquerda de quem desce para Viseu, guardava a oratória e os muitos saberes para os domingos, um a seguir ao outro, sem hiatos, sem falhas. O João Mendes da venda de jornais - hoje o Diário não traz oferta, comprem que é muito raro – à entrada da freguesia, galhofava que domingo xem prelexão era como o Benfica xem o Rui Costa. Um fiasco.

O Chico Martins, antigo taberneiro, hoje proprietário e gerente da pastelaria & restaurante A Latada, fabrico próprio e diário, pratos do dia e à vontade do freguês, não era tão radical. Era pior. Xe o Xenhor prior não dá xermão, é txunami pela xerta. Opiniões, corroboradas em esmagadora maioria pelos notáveis da freguesia, incluindo o cabo Ornelas, chefe do Posto da GêNêRê, que o Xócatres queria mandar fechar, mas o povo não vai deixar. E não se diz unanimidade, ainda que sem aplauso, porque a Dona Letícia, viúva surda que nem o ministro da Saúde – não faz mal, eu não oixo nada.

A prédica dominical e, claro, nos Dias Santos, era assim a modos que os meses do calendário: a Janeiro sucedia Fevereiro, a Maio seguia-se Junho e, até, Novembro antecedia Dezembro. Regularidade tal, nem um Seiko Velatura Kinetic, sem pilhas, portanto. E pontualidade concomitante. Não havia faltas, muito menos desculpas, aliás desnecessárias. Nenhuma ministra da Educação se arriscaria a defender tese similar na AR, nem, como é óbvio, a contrária. Políticos são multivalentes. Não disse muito valentes.

Domingo fatídico. O cura já na véspera sentira um formigueiro na gorja, coisa pequena, até a «mana» Hermengarda, antes de se deitarem, lhe trouxera um chazinho de limão com mel e uma bagaceira de medronho, de estalo, e o aconchegara, não só de cobertor, mas encostando-lhe a cabeça ao farto seio. Dorme, filho, que isso paxa-te.

A porra é que não passou. Levantou-se mais rouco do que um fagote enferrujado. E agora? O sermãozinho? Deixa lá, Fernando, um dia não xão dias, a glória divina é grande, mas também a xua paxiênxia. Paxiênxia. Tudo xe há-de compor. Para a xemana que vem, já bom, voltas à palavra e ao encanto dos paroquianos. Nauuuuda, Garooooda, nauuuuda, não pooouuude xer.

Chegado à sacristia, o Dionísio sacristão militante ficou-se nas covas. Podia lá xer, o padre Francisco não dava uma para a caixa. Mas que xe paxou, xenhor prior? Rooouuucnãoseiiii. Foi dum mouuuuumentooooo pró ouuuutro. Horrrouuccje não poxo dar xermão. É uma fataooouuuulidade, Deus xe amerxeie de mim, que xou pecadouuurrrrr.

Não pode voxemexê, mas poxo eu que o venho a ouvir há mais de 20 anos. Já xei os xeus xermões de cor e xalteado, olarila. Nem penxes nixo. Tu és um desbocado, só dijes alarvidades. Olhe que não, xenhor prior, olhe que não. E, para mais, quando eu xubir ao púlpito, fica o xenhor cá em baixo para emendar alguma coijita em que eu não axertar.

Dito e feito. Dionísio subiu ao púlpito, padre Francisco cá em baixo de orelha arrebitada por via das moscas. Irmãos. Hoje vamos tratar da rexureixão do Lázaro. Andava o Cristo com a xua malta pela terra… Rooouuuc, ó pá, não é axim, ruuuuuoooouuuuc, andava o Xenhor pela terra com os xeus disxipulos…

Pois, meus irmãos, descuidei-me, andava o Xenhor pela terra com os xeus disxipulos e vieram uma porrada de gajas, aos berros, ter com ele. Roooooooooooouuuuuuuuuuuucccccccó Dionijio, não é nada dixo, homem de Deus. Vieram ter com o Xenhor umas mulheres xuplicando chorando para que Ele as ajudaxe. Porque morrera o irmão delas, o Lájaro.

Assim disse o sacristão promovido, que prosseguiu. Noxo Xenhor acompanhou-as junto ao túmulo de Lájaro e dixe-lhes – mulheres de pouca fé, rejai e tende confianxa em mim. E dirigiu-se para o sarcófago onde o Lájaro jajia já há três dias de falecido absolutamente morto. Padre Francisco suspirou de alívio – parexe que o Dionijio entrou no bom caminho, graxas a Deus.

E o acólito – Noxo Xenhor pôs as mãos xobre a pedra do jajigo e disse: Lájaro, levanta-te e anda. E o Lájaro levantou-xe e andeu. Roooooouuuuucccc não é andeu, é andou, estúpido, é andou, estúpido! O Dionísio, obediente: Pois, pois, andou estúpido, mas ao terxeiro dia paxou-lhe…

quinta-feira, novembro 08, 2007




O SS e a artrite

Antunes Ferreira
S
everino Sereno ia aos arames com a graçola que os amigos (& similares) faziam com as iniciais do seu nome. Saíste-me um verdadeiro SS, ó SS. Coisa esta que o deixava podre de estragado, o que não impedia que a malta continuasse com a galhofa. Um dia, lá viria um dia, o tal, havia de os enxovalhar como eles persistiam em o fazer. Gente sem eira nem beira, nem pé de estribeira.

SS, perdão, Severino Sereno, andava já no terceiro ano do Técnico, vencera as dificuldades iniciais com brio, pundonor, trabalho, disciplina e empenhamento, a matemática não lhe era um bicho de sete cabeças, quando declarou aos pais que iria para o Seminário, pois queria ser padre. Justo Sereno, TOC, abstémio e falho em religião, passou-se.

Andou um homem a esfalfar-se a vida inteira para lhe proporcionar o curso superior, para dar nisto, comentou de olhos esbugalhados, quase apopléctico para com a cara metade, Adozinda da Purificação Sereno, trabalhadora da Função Pública, no quadro, ainda que quase no fundo da carreira administrativa. Que ganda sacana me saiu o gajo.

Deixa lá, filho, vocação é vocação, Deus chamou-o, e ele ouviu-o. Estaria guardado para outros cometimentos, e quem diz isso diz paramentos ou mesmo sacramentos. Ó mulher, se continuas por aí, ainda acabo a chamar-lhe sacrana em vez de sacana. Eu à espera de que me desse uns netos, pensava três, dois putos e uma… menina e saiu-me um gajo de saias.


Tens de ser justo, Justo. A carne é fraca… E o marido, a interrompe-la, come-se peixe, ainda que esteja pela hora da morte, num País como o nosso com mar a perder de vista e costa acolhedora tal não era possível, isto está cada vez pior, democracia lhe chamam os gajos. Antigamente é que tudo andava na linha, havia respeito, ordem e sossego, agora nem o bacalhau se pode pagar.

Fiel amigo, uma porra! Já fora. Nos dias de crise que se viviam, nem carapau de gato. Joaquinzinhos com açorda? Um luxo, Zinda, um luxo, quase ao preço da lagosta, não é que ele soubesse a cotação do crustáceo, mas lá que era caro, era. Justo, atenta homem, o nosso Severino vai ser um padre de estalo, quem sabe se bispo, upa, upa, quiçá cardeal. Há mais coisas para alem das mulheres…

Ouve, minha sonsa, sabes o que o meu falecido avô Felismino dizia ser um padre? Pois um gajo vestido de negro e com a braguilha até ao pescoço. E venham para cá com essa da castidade, chiça, isso era um castido, perdão, um castigo e nada mais. Que eu saiba, nos Seminários não capam os que para lá vão, um homem é um homem, o prior da nossa aldeia tinha oito afilhados, oito, sabe-lo bem. Cinco eram a cara chapada dele e as três cópias a papel químico da menina Rosalinda, criada de dentro. Afilhados… Oito…

Mas, a vida, com mais solavanco daqui, mais empurrão dacolá, patinanços nas subidas, destravanços nas descidas, foi seguindo e o Severino, cada vez mais sereno (com caixa baixa, para que conste e os revisores não metam o bedelho), lá foi recebendo as ordens mais diversas, canonicamente falando, está bem de ver, de menores a cada vez maiores, até chegar à prostração. Eclesiástica, obviamente.


Enquanto os dois mancebos se prostravam no chão, à espera de que o Espírito Santo os cobrisse, salvo seja, prostrado estava o Técnico Oficial de Contas, que não tinha maneira de conseguir superar a frustração dos hipotéticos netos desconectados. Dona Adozinda limpava lágrimas de comoção com um lenço de papel Renova, gabe-se a produção nacional e passe-se a publicidade.

A cena meteu copo de água nos Olivais, as famílias dos recém sacerdotizados tinham-se esmerado, só não existia bolo de noiva, por falta, óbvia, desta. Porém, a panóplia pantagruélica era um regalo. Das gambas de Moçambique, enormes, até aos leitões, divididos entre a Bairrada e Negrais, tudo de bom enchia as mesas. As meninas em idade de penduravam-se dos braços dos novos curas. Primas, diziam. O Guedes promotor de vendas sempre ia chalaceando, quanto mais prima, mais se lhe arrima. Ímpio.

Depois viera a paróquia, as beatas, as conferências de São Vicente de Paula, as catequeses, os baptizados, os casamentos, mesmo os funerais e, principalmente, os confessionários. O padre SS, digo, Severino Sereno, em passo, se não de corrida, verdadeiramente célere, viu-se prior, com novas responsabilidades e novas habilidades nos sermões e nas missas cantadas. E aí passaram a chamar-lhe de novo SS mas significando Sua Santidade. Sereno também não gostou.

Corria uma tarde outonal, e o padre Sereno ia sentado no metro, tinha o carro na oficina a fazer a revisão dos 20 mil, quando se lhe juntou no assento ao lado, acabadinho de ser desocupado por uma ucraniana boa, ou seja, com ar de quem dava esmola aos pobrezinhos e assim, um sujeito bêbedo como um cacho.

O recém-chegado abriu com mãos tremelentes o Destak, e começou, ainda que com alguma dificuldade a ler o jornal gratuito. O pároco censurou-o in mente. Uma alma perdida, uma ovelha fora do rebanho, dar-se assim ao álcool, uma tristeza, ainda por cima um tipo com excelente moldura, fato italiano, camisa azul de colarinho branco, até botões de punho. A gravata de seda estava um tanto desgravatada – mas não se pode ter tudo.

De repente, com uma voz entaramelada, o ébrio voltou-se para o sacerdote: o camarada sabe, hic, o que é artrite? Eu não sei, arrooot, mas vem aqui no periódico e o Senhor, hic, que usa batina e cabeção deve saber o que é. Penso, arrooot, que não deve ser coisa de comer..

Sereno, severo: Olhe, de beber também não é. Trata-se duma doença provocada pela vida pecaminosa e sem regras; mulheres, promiscuidades, farras, excessos alcoólicos - e outras coisas que nem digo! No nosso dia-a-dia é cada vez mais frequente. Ataca as articulações, provoca dores imensas, encrava as nossas dobradiças, enfim. Arrepie caminho, irmão, arrepie caminho. As vias da perdição são horrendas, há que remar contra a maré, combater o pecado.

O bêbedo, um tanto assarapantado, calou-se e voltou os olhos para o jornal.
Alguns minutos depois, o padre Severino achou que tinha sido muito duro com o seu companheiro de assento, disse-lhe, tentando amenizar a intervenção anterior: Pronto, não se fala mais nisso, desculpe a maneira como lhe respondi. E olhe, irmão, há quanto tempo o senhor está com artrite?



- Eu? Eu não tenho artrite! Segundo este jornal, quem tem é o Papa…


(Com a colaboração muito especial do meu cunhado Raul Palhau. Um gajo bué de fixe)


segunda-feira, novembro 05, 2007



Suíças há muitas

Antunes Ferreira
O
mal é um homem ter nascido ingénuo e manter-se assim depois de largadas as fraldas, jogar Play Station, comprar um curso universitário e um carro, namorar e dar o sagrado nó. A ingenuidade tem um preço, que difere de titular para titular, de acordo com o militante dela, com a galhofa dos que o rodeiam – os humanos são muito maus, mesmo péssimos – e com os cromossomas. Não sei bem porquê, mas fica sempre bem utilizar termos genéticos.



No fundo ela é uma ilha. Rodeada de malandragem por todos os lados. Claro, menos por cima e muito menos por baixo. Uma ilha só, nada de arquipélagos ou regiões autónomas, tal qual a do Robinson e do Sexta-feira, istmos à parte. Que o Mister Daniel Defoe não se melindre com a comparação quiçá espúria. Mas, neste isolamento, o protagonista é só um, nada de comparsas mais ou menos selvagens a anteriori.

Segismundo Palha tem 26 anos, um metro e setenta e nove, bem medido, setenta e dois quilos, em pelota, tem o canudo de Gestão, vota num partido do centro, embora não saiba muito bem o que é isso politicamente. Não milita, apenas deita o papelinho na urna de quando em vez, outras falta, nada de brancos – e nem é racista. Muito menos nulos. As coisas são muito desanimadoras, é o que é.

Comprou um T3 no Alto de Carnaxide, oitavo andar e meteu-lhe ar condicionado. É, ainda, proprietário de um BMW sem pedigri especial, segunda mão, mas em muito bom estado. Três anos, 42 mil quilómetros, ainda não precisa de ir à inspecção e 18 mil euros a seis anos. O seu gestor de conta no Banco do Jardim – atenção às caixas altas, é assim mesmo – confidenciou-lhe que fora um bom negócio.

Namorava há dois anos e uns ameaços, quando deu por si a propor à Rosalina, Chininha, nas revistas cor-de-rosa, casamento. Nesse período de tempo não tinham ido alem de uns beijinhos pouco repenicados, ela dizia que seria virgem até ao himeneu, ele concordara, o pai da pequena nem tinha receio de alguma derrapagem, os tempos vão como vão, e é raro encontrar um rapaz assim, bué de fixe.

Cerimónia a preceito, na Estrela, basílica cheia de flores e de pessoal, fotos no jardim também estrelado, não confundir, façam o favor, com ovos. Arroz, sim, muito, aspergido pelos colegas do noivo, do ISEG e da companhia de seguros, onde o Palha debutara e já chegara a responsável por departamento, muitos parabéns.

Lua-de-mel nas Maurícias, está na moda, do fino e do melhor. Lua, sim; mel, não. Bem se esfalfava a recém casada - e o ex-nubente, nada. Santa ingenuidade? Entrou a Ludovina por desanimar. Logo lhe havia de acontecer essa cena. Afinal, tanto se guardara para o branco do vestido de noiva do Tenente, e só o branco se justificava. Do estilista – no comments.

Retornados a Lisboa diz-lhe o esposo bendito que tem de se deslocar a Zurique, reunião da seguradora, coisa diminuta, daqui a três dias já estou de volta para o pé do meu amorzinho. Chequin informático e lá vai ele. E ela a desfazer-se em lágrimas com a mamã Ester, ó filha isso passa-lhe, deve ser só timidez.

O tanas, mamã. Vou toda descascadinha para a cama e ele, népia. E agora, baza para a Suiça. ‘Da-se! Isso são maneiras, menina? Não te ensinei a dizeres coisas dessas. E, alem do mais, até é bom que ali vá. As Suíças são sabidas. Não as das patilhas… O quê? Esquece. Vais ver que o Segismundo vem com outro entusiasmo e outras intenções.

Da Portela a casa é um pulo, a Segunda Circular está mais fácil com o viaduto do Lumiar. Amorzinho, quero fazer-te uma surpresa. Não pode ser, então as Suíças… Fecha as janelas do nosso quarto para que fique tudo escuro, ok? Oqueijíssimo, q’rido. E, já agora, dá folga à Olga (Olga é a empregada ucraniana, na outra vida, salvo seja, médica). Quero que estejamos sós.


Bendita viagem. Quarto apagadíssimo, nem cinzas, ucraniana a milhas, Chininha vai à casa de banho, roupas fora, colónia da Fátima, a Senhora da Azinheira ou o clube maravilha não têm nada com esta estória. Entra de mansinho no ninho de amor. Chega-se ao seu homem. E este, mostrando-lhe o pulso esquerdo onde avulta um relógio: Vê quiducha, luminoso, luminoso…

Puta que pariu as Suíças.

(Estória, com barbas, a que eu dou uma arquitectura nova, que me perdoe Siza Vieira)

sábado, novembro 03, 2007




Não há duas…

Antunes Ferreira
Filipe Sargedas era um quarentão com a sua barriguinha, coisa de pouco cuidado, mas já saliente. Na Conservatória do Registo Predial, os colegas, na brincadeira, por certo, referiam-se ao pneu Filipestone e o segundo oficial não ia muito à bola com isso. Sacanas, resmoneava de si para si, gandas sacanas, um destes dias dou-vos o arroz. Quem sabe se até à sevilhana.

A digna e dedicada esposa, de seu nome Ludovina, prós amigos Vina ou mesmo Vininha, bem lhe dizia que devia ir perder os quilos excedentários, se até a Função Pública andava a dar cabo deles, excedentários, está visto, porque não havia ele de também o fazer. Na rua perpendicular, mais coisa, menos coisa, à sua, havia um ginásio, Health and Flexões, onde se podia praticar tudo, até hidroginástica, num antigo tanque para patos, avantajado, existente no quintal das traseiras.

Sargedas hesitava, porem. Porra, aquilo era carote, e ainda era preciso comprar o tal body-não-sei-quê, os ténis, essas coisas imprescindíveis para a função. Tudo na Sport Zone, embora. E, depois, vá lá saber-se se a estragadeira eurótica e neurótica não daria nenhum resultado na eliminação das adiposidades. Mais a mais, ele não era obeso, tinha apenas uns quilitos a mais. Uns vinte e tais, dó.

Tinha pensado em pedir ao Sôr Vieira para interceder junto do Camacho e ir para a Luz dar à dita, digo, dar umas voltinhas ao relvado, pois a Caixa Campus ficava na outra margem e ele vivia na Rua da Guiné, perpendicular à de Angola, no Bairro das Colónias – que, hoje, já deveria chamar-se das ex ou, quem sabe, dos PALOP.

Era uma outra característica que possuía, o benfiquismo agudo. Até fizera uma novena ao Santo Padre Cruz para que acontecesse o que aconteceu: o engenheiro Santos bazar. Reforçara, assim, a confiança no ilustre sacerdote em vias de, ao mesmo tempo que renegava sem tibiezas as claques que insultavam o Presidente, a quem o Benfica tanto devia. E outros havia que se atreviam a criticar. Porra!

Vieira não fora de modas. Andava um homem a sacrificar-se pelo clube e uns despeitados a ratar na pele dele. Portanto, «Basta! Intriguistas, invejosos e incompetentes não têm lugar no Benfica!» Parece que o Tinoco Faria não gostara, mas que se lixasse. E repetia que ao Presidente, realmente sim, o Benfica tanto devia No bom sentido do termo, diga-se, ainda por cima tristezas não pagam dívidas.

Mas os encarnados desmaiados, por vezes até cor-de-rosas, não eram a sua única consumição. A Vininha era a maior chatice. Que porque sim, que porque não, que ele já não era o mesmo de antes, havia por ali muita falta de tes…, perdão, desejo, entusiasmo, não a satisfazia. Isto porque a cama se tornara numa verdadeira terra de ninguém, obviamente para ele. Murcho a maioria das vezes, ela dizia que se tratava de reforma temporã. Se calhar o peso a mais.

O Pinto, subchefe da secção, era o amigalhaço do peito, vermelhusco também, mas apaniguado do Veiga (no que diferiam totalmente, o gajo era um bandalho, sempre se aproveitara do clube). Tinha uma foto da águia Vitória na carteira, junto a outra da mãezinha dele, felizmente ainda viva, lúcida e escorreita nos seus oitenta e tais, e bem lhe dissera, ó filho não te rales, vai tudo acabar em bem.

Filipe deixa-te de merdas e começa a tomar Viagra. Vais ver como isso se resolve. Não é que eu faça uso do medicamento, graças aos céus não preciso, abrenúncio, t’arrenego Satanás. Mas alguns compinchas que já recorreram aos comprimidos azuis, dizem que são bué de fixes. Nem pó. Com essas e outras ainda dizes, Fernando Pinto, que eu passei para o outro lado. Safa! Há muito gajinho que diz que do nosso lado para o dele muitos têm passado, mas do dele para o nosso não conhece nenhum, absolutamente nenhum.

As coisas iam assim, a Vina lamentando-se dia sim, dia sim, ai a minha vida logo esta desgraça me havia de cair em cima. Ainda se caísse outra coisa, vá que não vá. O Filipe não era um Felipão, como o Scolari, era apenas um Filipinho sem Luís, muito menos Vieira. Mas, quem sabe, melhores dias virão, esperançava a sofredora cara-metade.

Já passava da uma da madrugada, o Sargedas, repimpado no sofá da sala, a terceira cervejola na mão, uns tremoços para ajudar, seguia pela televisão o jogo entre o Inter e o Milan, repetição, cada um come do que mais gosta. Pensava mesmo em voltar ao frigorífico para mais uma bem geladinha. Ou quiçá um uísque, nada, não havia Castello em casa. Gelo, sim, mas não bastava. One de roques só de aperitivo.

Nisto, um berro tonitruante veio do quarto do casal, que estava às escuras, completamente. Filipe levantou-se de um salto e correu para o quarto, nem dava com o interruptor, mas acendeu a luz. A mulher, estendida na cama, nua em pelota, voltou a gritar. E um gajo abriu a janela da habitação, um rés-do-chão para o baixote, saltou e pernas para que te quero.

Vininha, que aconteceu, mulher? Entre o espantado e o acagaçado, ela respondeu-lhe com voz histriónica: esse filho da mãe fez sexo duas vezes comigo! Duas? E porque não gritaste logo da primeira vez? Ela, ensaiou uma resposta, mas saiu-lhe a verdade: Porque eu pensei que as coisas tinham mudado e eras tu! Só desconfiei quando ele começou a dar a segunda...

(Com um abração ao Claudino Henriques, meu comparsa apneico, que me enviou a estória em formato reduzido e que eu me dei o luxo de ampliar)

sexta-feira, novembro 02, 2007




Estrelas no céu

Marina Dinis
Já não há estrelas no céu. Apagaram-se, fecharam a porta e foram-se embora
deixando-a para trás, sem saber para onde ir, sem ninguém que a possa
salvar.

Na verdade ela o que queria era a lua, para nela pendurar um baloiço feito
de cordas e madeira, onde se sentaria a balouçar lentamente, cantarolando e
sonhando. Mas sabe que a lua não pode ter, pois está já demasiado distante e
inacessível...não, a lua já não é para ela. Essa lua já foi sua, mas agora
está ocupada, nem sequer a olha de lado, nem se preocupa se ela existe. Não!

A lua já não é para ela mas sim para outros felizes e esperançados.
Porém, todas as noites ela continua teimosamente a caminhar para a janela à
espera. Será assim eternamente, esperando a sua estrela sem convicção.
Aquela que lhe permite voar um pouco para longe da negra imundice que a
rodeia, para longe da dor surda que não alivia nem agudiza, para aquele
lugar que conheceu por breves instantes, onde as cores eram vivas, os aromas
pungentes e todos os sons melódicos.

Um sonho? Talvez. Mas pelo menos um sonho ou uma ilusão, pois a isso todos
têm direito. Para ela já não existem mais sonhos e não restam ilusões,
apenas o azul-escuro do mar sem fim, o silêncio do sepulcro, a agressão crua
do sol e o vazio eterno.

Tal como as marés, sempre assim será. A maré alta traz apenas tumulto e
sobressalto e a maré baixa deixa escassos detritos aos quais se apega
furiosamente, como se a sua própria existência disso mesmo dependesse.
Os seus dias são passados amarrada à terra e à sua impiedosa realidade,
vivendo-a no limbo. Um fio fino sob o qual se equilibrar de forma
periclitante, no risco constante de resvalar para o abismo...a queda apática
sem fim, quebrar-se-á se ela ousar pestanejar.

Não respires, não te mexas nem te atrevas a pestanejar. Podes cair a qualquer momento, apagando-se a tua chama para sempre, tal como as estrelinhas desaparecidas.

Ela sabe bem que ainda há algumas coisas a perder, mas a sua maior perda está já dentro de si e perante esta, todo o resto é poeira insignificante. Não faz falta.

Querer é poder, mas nunca é poder ter, nem tão pouco poder amar.

quinta-feira, novembro 01, 2007



GARGALHAR

Ai verdinho, meu verdinho

Antunes Ferreira
O
Santos, Adalberto da Cunha, e o Silva, Júlio Pintado da, eram amigos desde que andavam de bibe no jardim de infância. Bibe azul aos códradinhos, com o nome dos putos numa tira branca por baixo do nome do estabelecimento de ensino. As miúdas usavam cor-de-rosa. Enfim, tradições, mais ou menos estúpidas. Quer-se lá ver: cor-de-rosa são as camisolas de alterne do Benfica. Ou melhor, alternativas, não vá a Carolina chatear-se.

Continuaram pela vida fora, claro, sem bibe, essa amizade de quase fraldas. Chumbaram ao mesmo tempo na Faculdade de Direito e empregaram-se os dois na Santo Vinho, Lda., ali ao Poço do Borratem. Um como contabilista, o outro como ajudante de. Já eram também compinchas dos copos. Estavam, agora, no lugar mais indicado.

Só que o engenheiro (silvicultor) Saraiva, patrão com pedrigui não era de modas. Que se enfrascassem, lá fora – mas se viessem apenas toldados para o serviço, olho da rua, com comissão de trabalhadores, ou sem. A Santo era uma casa séria, vinhos das melhores proveniências, import-export, descontos a partir das 50 caixas de 12 garrafas, também tinha de seis. Representantes em todo o Mundo, ou quase.

No tempo da outra senhora dizia-se que beber vinho era dar de comer a um milhão de Portugueses. O Santos e o Silva, ou vice-versa, eram fieis praticantes do axioma, embora não soubessem muito bem o que era isso. Militantes das bóbidas, era vê-los pela noite dentro, entrar em capelinhas seguidas qual comboio correio que pára em todas as estações e apeadeiros. Assim a modos que um TGV à portuguesa, como o cozido.

Infelizes nos amores, ambos rejeitados pelas namoradas que iam coleccionando por mor dos excessos e do mau hálito, estavam a ficar para tios. De resto, tarefa impossível, já que eram filhos únicos. Botelha que viesse a lume, marchava. Verdadeiras gargantas fundas, sem intuito pejorativo, muito menos sexual. Longe ia o tempo das tardes no Capitólio com o filme porno no ecrã.

Uma noite vinham para as respectivas casas, dois apartamentos T2, naturalmente no mesmo prédio. Quarto e quinto andares, com elevador, homessa. Caminhava o relógio para a matina, eram já umas quatro e picos. O Gaspar, um amigalhaço bacana, tinha-os convidado para umas garrafósias sem rótulo, provenientes de uvas verdadeiras, a sério, que cultivava no seu quintal na Porcalhota.

Um forró de maravilha, malta porreiraça, vinho ainda melhor. Foram-se cinco garrafas. Duas meias sandes de queijo flamengo com manteiga, ena pá, tanto pão para tão pouco vinho. Rasgavam-se os elogios ao néctar e emborcava-se de vento em popa. À saída, o Guedes, nada, o Gomes, hic, perdão, o Gaaaaspar, hic, ameaçara que tinha lá mais na cave da sua vivenda e que, hic, voltariam logo que calhasse às libações previamente enunciadas, nunca programadas.

Amparados um ao outro, trocando pés e passos, deu-lhes para cantar. Ó Berto, hic, saaaabes aquela velhinha do vinho verde, hic? O Juca entre dois arrotos afiançou que sim. Vá de unirem vozes, decibéis para que vos quero, ai verdinho, meu verdinho, hic, esquecer-te não há maneira, hic; tu pra mim és pão e hic, vinho, e cor da minha bandeira. Qu’importa o verde ser verde, hic, se me faz dançar na rua, hic, ai verdinho, meu verdinho, não há cor igual à tuuuuuuua...

O agente da autoridade acorreu ao chinfrim, e depois de os mandar calar, como eles se estivessem nas tintas para o digno cívico, deu-lhes voz de prisão, os senhores acompanham-me à esquadra, estão num estado lastimável, embriagados como o Noé depois de sair da arca. O arvorado Fidalgo justificava o nome. Todo ele era coltura e palavras bonitas.

Antes porem, as vossa identificações, rapando do canhenho para os devidos apontamentos. Como se chama? Onde mora, com código postal? Ó sor guarda, eu cá, hic, chamo-me Silva. Morada incerta. Mau, Maria, o sacrista além de bêbado dava uma de brincalhão. Já veria, não perdia pela demora.

E você? Eu chamo-me Santos e vivo no apartamento, hic, por cima do dele, hic. E o Fidalgo, ora porra, logo me haviam de sair na rifa estes dois manguelas. Vá, meninos, calem o bico e vão para casa e não chateiem. Por esta vez, passam. Sim, hic, senhor. O chui, hic, era bué de fixe.

(Com a prestimosa colaboração das Selecções do Reader’s Digest)

terça-feira, outubro 30, 2007




HISTÓRIAS DA PJ

Coincidências ...

José Augusto Garcia Marques
Costumo dizer que não acredito em coincidências. No entanto, a vida profissional, designadamente, o tempo passado na PJ, proporcionou-me, por vezes, a demonstração de que as “coincidências” existem. Uma noite, a minha Mulher recebeu, em nossa casa, um telefonema do padre N .... Tratava-se de um Sacerdote, antigo colega dela da Faculdade de Letras, que, tendo conhecimento de que eu trabalhava na Polícia Judiciária, lhe expôs o caso que passo a relatar em resumo.

Uma senhora, de seu nome Isabel, amiga e paroquiana do referido sacerdote, travara, há alguns meses, conhecimento com um indivíduo que se encontrava em cumprimento de pena no estabelecimento prisional de Paços de Ferreira. Na tentativa de lhe prestar algum acompanhamento espiritual, começara a corresponder-se com ele. Depois da troca de algumas cartas, e a pedido insistente do preso, chegaram ao conhecimento pessoal. O detido começou então a pedir-lhe pequenas quantias em dinheiro, para fins diversos – normalmente, segundo dizia, para gastar em saídas precárias, tendo em vista a preparação de condições para uma reintegração na sociedade, como elemento útil e sério que se propunha vir a ser.

Aproveitando algumas dessas saídas precárias, marcaram encontros e passeios, continuando a Senhora a prestar ajuda económica ao seu protegido, que não deixava de lha solicitar, com os mais variados pretextos. A relação entre ambos foi-se estreitando, tendo passado a tratar-se com maior intimidade à medida que o afecto recíproco parecia ir crescendo.



Um belo dia, já em liberdade, o referido indivíduo teria mesmo proposto casamento à Isabel, a qual, algo desconfiada da fartura, tratou de recolher elementos mais detalhados acerca do passado prisional do pretendente. Constatou, então, que se tratava de um burlão com casos semelhantes no currículo. Era um sedutor encartado, especialista em “promessas de casamento”. A minha Mulher pediu ao seu interlocutor, como normalmente fazia, as “coordenadas” do “cavalheiro” – designadamente, o nome, idade aproximada, aspecto físico ou sinais característicos, dados que o sacerdote lhe transmitiu.

Acabada a conversa telefónica, veio então para o escritório, onde eu estava a trabalhar, e contou-me o que se tinha passado. Disse-me que se tratava de um indivíduo com idade compreendida entre os trinta e cinco e os quarenta anos, com bom aspecto, chamado Valentim Gregório Moreira. Nessa altura, interrompi-a, dizendo-lhe que esse era o nome de um funcionário da PJ, mais concretamente, do Laboratório de Polícia Científica (LPC), onde era tido como uma unidade exemplar.


A minha Mulher retorquiu-me que não podia ser, uma vez que o burlão referenciado tinha estado em cumprimento de pena até há pouco tempo. E que, além disso, era portador de um sinal característico: tinha um defeito numa perna, que o fazia coxear. Ao que, cada vez mais surpreendido, lhe disse que também o Valentim Gregório Moreira do LPC coxeava, aliás, de forma notória. Como é natural, pensei na possibilidade de usurpação de identidade por parte do burlão, o qual, eventualmente, pretenderia fazer-se passar por um homem de bem, portador de uma deficiência física semelhante à sua, de mais a mais, funcionário da PJ.

No dia seguinte de manhã contei o sucedido ao meu saudoso Colega e Amigo Dr. Eduardo Baptista, que logo me disse que já tinha ouvido falar num indivíduo com cadastro, de nome Valentim Gregório Moreira, facto que, tanto quanto sabia, era já do conhecimento do “nosso” Valentim Gregório Moreira. Manifestei a minha estranheza pela circunstância de poder dar-se a coincidência de existirem duas pessoas com o mesmo nome, sendo que não se tratava de um nome comum ou frequente. Na verdade, temos de convir que, designadamente, “Valentim” e “Gregório” não são nomes muito correntes. Então, a combinação dos três nomes é muito invulgar. Acrescendo a circunstância de ambos coxearem.

Chamei o Senhor Valentim Gregório Moreira que me confirmou ter já conhecimento da existência daquele tão inconveniente “homónimo”, que, no entanto, não conhecia pessoalmente. Sabia, porém, que era um delinquente cujo modus operandi preferido consistia na burla mediante “promessas de casamento”. Mais se constatou que o nome era, efectivamente, autêntico. Tivemos oportunidade de o confirmar, ao compulsar o registo existente no ACRI, que nos deu uma panorâmica do passado do indivíduo em matéria de delinquência.

Tratava-se de uma coincidência mais, a comprovar que, no trabalho de investigação criminal, não se pode recusar a priori qualquer pista, por mais disparatada, improvável ou, até, inverosímil que possa parecer. Lembrei-me do caso “Roy Hood” e da confusão dos “James”, que já relatei neste blogue. O mais curioso é que a história teve desenvolvimentos a breve trecho.

Numa noite, encontrando-se o Eduardo Baptista de passagem pelo Piquete - o que era prática frequente -, o telefone tocou. Do outro lado da linha, uma Senhora queixava-se de ter sido burlada pelo método da “promessa de casamento”. Esclareceu que tinha um encontro marcado, no Príncipe Real, para dali a uma hora, com o indivíduo que a defraudara e pretendia que a Polícia actuasse. Algo displicentemente – o trabalho de piquete era muito intenso e árduo e podia ocorrer a participação de crimes de maior gravidade a suscitarem necessidade de intervenção imediata -, o agente de serviço pediu os elementos de identificação do suspeito.

Ouviu o nome, que repetiu em voz alta: Valentim Gregório Moreira. O Eduardo Baptista, que ouvia a conversa um tanto distraído, deu ordens imediatas para que dois funcionários do piquete se deslocassem ao sítio do encontro e o conduzissem, sob detenção, à Polícia. E logo se organizou o esquema para a acção. Com a colaboração da queixosa, o Valentim foi detido em flagrante, no exacto momento em que recebia das mãos da vítima mais uma vultosa quantia em dinheiro.

Quando, dali a algum tempo, pretendendo ostentar o ar mais inocente do mundo, bem vestido e bem falante, a coxear levemente, entrou nas instalações do Piquete, exibindo o aspecto de cidadão exemplar, vítima de um lamentável engano policial, foi confrontado pelo Eduardo Baptista com dados detalhados e precisos acerca da sua pessoa e da sua actividade criminosa passada. O homem ficou siderado. A sua postura simpática de burlão caiu por terra. Nunca pela cabeça lhe passara que a PJ soubesse tanto acerca da sua vida de delinquente.
A coincidência do nome – se alguma vez lhe pôde ser útil -, foi-lhe, naquele caso, negativa e prejudicial, levando-o de novo ao cumprimento de pena num estabelecimento prisional.

NOTA: Como é de regra, nestas histórias reais da PJ, é fictício o nome dado ao autor dos delitos. Posso, porém, afiançar que o nome autêntico – dele e do funcionário do LPC – era, pelo menos, tão invulgar como o que foi utilizado.

segunda-feira, outubro 29, 2007




A casa da sogra não se quer tão perto que ela possa vir de chinelos, nem tão longe que ela queira vir de malas.

(Mais uma colaboração do Luis Melo Torres, Amigão e sportinguista, malgré tout)