quarta-feira, novembro 29, 2006





DEAMBULAR

Llueve lluvia en Madrid

Antunes Ferreira
Don Antonio Goméz, proprietário do Hostal Centro Sol, mete o cartão de plástico na ranhura da máquina de fazer chaves dos quartos. Já passou o tempo das Yalle, para não falar já das de argola e dentes cortados que se metiam – e ainda metem – em fechaduras de buraco por onde tantas vezes valia (e vale) a pena espreitar, dado o panorama que se revela ao curioso.

Mire Usted Don Enrique – tenho a certeza que é sem H, ao uso castelhano, para quê essa letra, ainda por cima mudíssima, pretensiosismo herdado de franceses, ingleses e outros mais ou menos imperialistas – como llueve. Mi abuelo decía que llueve lluvia. Así que es verdad. Sin embargo, no es normal para esta epoca del año en Madrid. El tiempo, óstia!, lo hemos mudado, nosotros los hombres, somos unos cabrones.

Concordo. Na Sierra da capital – o nome é da Guadarrama, mas toda a gente a conhece apenas por Sierra, era como a Ponte Salazar a que apenas se chamava a Ponte, desnecessária a mudança para Ponte 25 de Abril, justificável só como homenagem à data redentora – ainda não há neve. Diz-me o Fernando Barciela que já não se pode acreditar em ninguém e em nada, nem no astro. O Barciela, anote-se, fui eu quem o arregimentou como correspondente do DN em Madrid.

Excelente jornalista, multifacetado, brilhante no que escreve, viveu, aparentemente, numa duplicidade crónica: Quando em Madrid – só pensava em Lisboa. Chegado a Lisboa – só recordava Madrid. Tem currículo feito, por mérito e trabalho. Não volta a cara a nenhuma tarefa – desde que seja jornalística. E de cozinha, pois é um Chef de truz e até já teve um restaurante, por mal dos seus pecados financeiros… Agora, parece-me melhor. Pelo menos já não se zanga quando se diz menos bem de Portugal...

É um grande Amigo, o Fernando, meio galego meio portuga, devorador intemerato de bolo-rei, melhor, de bolos-reis. Levo-lhe sempre uns dois ou três, de dimensões aconselháveis à voracidade do cidadão. Pneus lhes chama ele, e começa logo por guardar no congelador um dos exemplares. É para as Festas, explica. É sempre, mesmo que os tenha encomendado, só para lhe dar prazer, em Junho. Nesse caso, quem sabe, para as dos Santos Populares.

Entre bacalhau e tortilla

Aterrar em Barajas, mesmo sob uma carga de água, sempre me foi tonificante. E, veja-se lá, também o é para a Raquel, de cepa goesa, bacalhau com batatas e grão só se habituou a comê-lo em Lisboa. Tornou-se uma verdadeira Pantagruela na preparação do peixe, dessalga-o com mestria, como se toda a vida o tivesse feito e, já no prato, rega-o conscienciosamente com o azeite que em Goa era chamado do Reyno. E, claro está, muita pimenta, alem da cebola e do alho migadinhos. Oriental degenerada.


Pela capital de Espanha – seja-me permitido o tradicionalismo conservador, mais adiante a isso iremos, são biliões de contas de outros milhões de rosários – somos mais de tortilla e de tapas mais. Riñones al Jerez, callos a madrileña, salpicón de marisco, albóndigas, pulpo a la gallega e por aí fora. Regalo-me com una paella ou un arroz a la banda, no que a minha cara-metade condescende em me acompanhar, porém sem grandes olés.

O casco viejo da cidade à volta da Plaza Mayor regurgita de gente avançando já nas compras navideñas. Ao lado um tudo-nada abaixo e à esquerda é a Puerta del Sol, agora e uma vez mais em obras, por mor do metro. Dizem os cartazes que encimam os taipais que rodeiam os locais de trabalho que se trata de fazer una nueva línea amarilla.

Têm a sua graça, os taipais. Na chapa ondulada de que são feitos, estão reproduzidas fotos e gravuras da cidade há uns largos anos atrás. Ao mesmo tempo que os construtores pedem disculpas a los madrileños por las obras que terminarán lo más pronto posible, oferecem a quem por ali passa a possibilidade de saber dessas memórias antigas.



Imperturbável está a estátua do brasão de Madrid, o urso empinado junto ao medronheiro (el oso y el madroño, como dizem) que parece não ligar absolutamente nada à poeira, às máquinas e aos obreros. A Puerta será sempre a Puerta, com mais crateras de trabalhos, ou menos. Já a equestre de Filipe III – recordam-se? O II de Portugal… - parece menos imune à azáfama. Ainda que nem monarca nem cavalo se mexam. Bronze. Feitios.

A praça continua a ser o ponto zero de todas as ruas da cidade e de todas as estradas que saem dela. No edifício principal, hoje a sede do Governo Autonómico de Madrid, já viveram os da antiga polícia política da ditadura do generaleco galego, a Seguridad Nacional. Tenho um bom Amigo, o Jaime-Axel Ruiz, que na sua juventude e quando universitário por aqui passou e donde não guarda recordações gratas, bem pelo contrário. Curioso: na passagem do ano é o sino da torre do palácio que dá as doze badaladas. Acompanhadas por outras tantas uvas brancas. Passas - nunca.

Na parede frontal há uma nova lápida, o mármore ainda é liso e branco, não o atacou a poluição. Homenagem simples e sincera às vítimas do 11 F, data maldita por obra de um dos piores males que afligem os homens, o terrorismo. Está afixada no lado esquerdo de quem está virado para a porta do edifício.

A contrapartida, do lado direito é uma outra, bem mais anciã, encomiando os que se bateram contra as tropas napoleónicas aquele lugar. Duas épocas e dois acontecimentos que, de uma forma ou doutra nos tocam, me tocam, a mim, particularmente, que me considero (para não dizer metade, metade) ¾ lisboeta e, adivinhem,… ¼ madrileño. Já estou a ver os nacionalistas exacerbados a apontar-me o dedo, miserável iberista.

Tenho-o dito muitas vezes, com convicção cada vez mais ampliada, que, em 1640, quem deveria ter sido defenestrado no Terreiro do Paço (sem qualquer acinte, sequer má intenção ou vindicta…) era o João Pinto Ribeiro. O Miguel de Vasconcelos, esse, teria direito a estátua, aliás justificada e justa. Mas a História foi o que foi, os fastos outros e os resultados vêem-se.

Tínhamos andado para a frente, ainda que sob a manápula de outro ditador, o Franco, que, pelo menos, permitiu o desenvolvimento espanhol, enquanto que, por cá, o pacóvio e salazarento energúmeno defendia a teoria do atraso que preservava a tradicional maneira de ser dos lusos. Progresso era sinónimo de perigo. Uns bananas, em suma. Região Autonómica, falando português, com Parlamento e Governo próprios, até tinha um rei que maneja a língua de Camões sem falhas nem sobressaltos. Não é que seja eu monárquico, mas.


Espanha ou Espanhas?

Estes dias passados pelas calles, glorietas, plazas, y barrios da capital espanhola levam-me a dizer, uma outra vez, o que penso da grande nação nossa vizinha porta com porta. Disse nação e repito. Explico, começando mal, ou seja por uma pergunta: quantas Espanhas existem? Um só país? Penso que não. O sonho, aliás concretizado de Fernando e Isabel, cada vez é mais sonho e menos concreto. Para mim, claro.

José Luiz Zapatero, na senda das autonomias cada vez mais alargadas que vigoram nas Regiões, está, neste momento, atravessando um precipício pisando uma corda verdadeiramente bamba. Já o novo Estatuto da Catalunya causou amargos de boca a muitos amantes dos bons tempos do Cara al Sol. As actuais conversações com a ETA são, agora, o maior busílis da questão complicadíssima.

Segue-se o quê e quem? Os galegos? Os valencianos? Os andaluzes? Os extremenhos? Uma Espanha federal? Os castelhanos interrogam-se. Se calhar com motivos sérios para dúvidas – sérias. No que parece continuar a haver unanimidade é no jamon e no queso manchego. No restante, ainda não vigora o salve-se quem puder, mas já se descortina o tudo ao molho com ou sem fé em Deus. Se existe.

Mi hermano Enrique, sin H, Araoz, boliviano/espanhol, jornalista como eu, ex guerrilheiro e apoiante, naturalmente, de Evo Morales, disse-me, um dia, durante um repasto de cozinha peruana, com seviche e tudo o mais, que a Espanha era un gran punto de interrogación. Uno, no, acrescentei, dos, pues que lo ponen al reves en el principio de la frase interrogativa… Entonces, dos no, sino que 333. Lúcido, uma vez mais, o plumitivo índio.

Aliás, este outro magnífico periodista tem coisas que não enganam ninguém, para além, claro, da competência e profissionalismo que ninguém lhe regateia. É um homem de sete ofícios, até sabe de informática, o que me enche de invidia. E sabe muito. Culturalmente, nem se fala. Quando um dia lhe perguntei se conhecera o Che - respondeu-me com una sonrisa beatifica. E tem, com o pedido de desculpas e vénia à Amália, um harem em constante mudança. Nem um Casanova, muito menos um Barba Azul lhe chegariam aos pés. Caminha, tranquilo, para a jubilación.

Pronto. Já passaram a correr uns brevíssimos seis dias. Feitas as maletas – que entretanto aumentaram, por passe de mágica que normalmente se verifica por estas latitudes, rumamos ao aeroporto, a Raquel e eu. Desta feita nem consegui falar com outro Amigalhaço, o Rodolfo Lavrador maila sua Luisinha, jurista e aficcionado a los toros, companheiro de muitas lides e noites nas Finanças e de viagens agradabilíssimas. Fica para a próxima – em que tentarei convidá-lo a… pagar-nos um jantarzito no El Botín.

Lisboa é Lisboa, ainda que chova a potes. Chove chuva, em tradução literal. O Sporting ganhou ao Marítimo, na Madeira. Excelente. Venho um tanto constipado, uma pieira assobia-me dos brônquios ou quejandos, com alguma persistência e muita desafinação. Já começara no país de onde, dizem os lusitanos mais empedernidos, não vem nem bom vento nem bom casamento. Atoardas.


O jarabe que me forneceu um outro compincha, mais um Enrique sin H, este da Farmácia del Globo, ali à calle Carretas 12, rua de putas e de chulos, não aquentou nem arrefenta. Nem como paliativo. A propósito: entre Henriques com H e Enriques sin H existe quase que um sindicato de mafiosos, tantos somos.

Uma gaiola no peito

A pluviosidade lísbia parece ter ampliado os decibéis da caixa do peito. Pelo sim, pelo não, xarope às urtigas e Centro de Saúde. Médica correctíssima, é melhor ir a São José, leve esta carta, por favor às Urgências. Se para tal vim, cumpra-se o fado. Vou.

Cinco horas no banco, entre doentes, doentinhos, acidentados, escalavrados, todos no masculino e no feminino, uns mais idosos outros mais jovens, quase todos suplicantes, a maioria de olhos arregalados e lábios mudos, alguns em berraria alcoolizada, aqueles sussurrando suspiros.

Quem me vier falar sobre o estado caótico das Urgências, a partir de agora, é tiro na nuca com a bala paga pela família – à maneira china. O signatário jura dizer a verdade, só a verdade e aos costumes diz nada. E exige acta e atestado reconhecido notarial e privadamente. Acentua, ainda, que não está a fazer o frete ao Amigo Correia de Campos, seu colega no Camões, que muito tem já com que se preocupar. A saúde é uma ganda alhada. E ele é reincidente.



Fizeram-me tudo, desde análises q.b. até Rx torácico, passando por ECG, que agora já sei que significa electrocardiograma, pessoal estupendo, muitos sorrisos de amparo, poucas filas, quase nenhumas, numa tarde de domingo a entrar pela noite. Médicas/os, enfermeiras/os, técnicas/os de saúde, auxiliares, boa gente, até simpática.

Isto com o serviço em obras, num atendimento entre paredes improvisadas de tabique branco e cortinas de plástico para preservar alguma privacidade, a possível e aceitável. Diz-me uma médica que aquilo vai ficar um brinquinho, não pedindo meças a ninguém por este Mundo fora. Acredito. Pelo andar da carruagem.

Saio com um resultado ligeiramente preocupante. O que ganhei foi um pequeno edema pulmonar, que parece ter que ver com a minha condição de antigo e desregrado fumador. Fluidos e coisas assim fazem um leigo apanhar o táxi de volta a casa com uns quantos macaquinhos na tola e as avezinhas ainda pipilando no interior à direita de quem sobe e à esquerda de quem desce com o GPS apontado à traqueia.

Desta feita (e desta fita) Madrid começou com chuva nas ruas e acabou com chuva nos interiores deste cidadão, honesto q.b.. Porra, até parece a minha antiga casa, na Lapa.

sexta-feira, novembro 10, 2006




Parabéns Mister


Braz Ferreira
Correspondente nos EAU
Acabei de ver a lista dos convocados para o próximo jogo da selecção nacional e com uma agradável surpresa vi que o Mestre injectou sangue novo no nosso team. Poderia gabar-me dizendo que finalmente ele escutou-me, mas quem sou eu para ser escutado pelo grande Scolari. No entanto ele entendeu que é o momento de inovar, de trazer gente nova para começar um novo trajecto pela selecção.

Pode ser até que tenhamos que perder a próxima contenda, mas se assim for, perderemos com a cabeça erguida e com a consciência que algo de novo foi tentado. Por favor povo português não critique o “nosso Filipão” por ele ter tentado....lembrem-se de Einstein.... Apoiemos sim o Daniel Fernandes, o Nelson, o Tonel, o Raul Meireles e até mesmo o Quaresma, Carlos Martins e João Moutinho ainda que estes últimos não sejam completos neófitos na selecção. Mas apoiemos sobretudo o nosso Scolari. Ele sabe que só a juventude é sinónimo de progresso no futuro.

Os Costinhas, Maniches e outros que tais já souberam honrar o nome da nossa Pátria. Agora terão de passar a chama olímpica para os que se seguem.
Talvez ainda eles tenham de representar a equipa das quinas, mas deixemos os novos se afirmarem, mesmo que para isso tenham de errar. Não sei se recordam mas errar é próprio do homem.

E esses estreantes também são homens a 100% na equipa nacional. Mais uma vez parabéns Scolari pois a ousadia só pode trazer o sucesso. Seria bom se o nosso Governo se espelhasse nesta iniciativa do nosso técnico. Não é só trazer gravatas da cor portuguesa durante os jogos, não é só torcer e vibrar pela selecção na bancada de honra. É também dar o exemplo da renovação nacional.

Senhor Primeiro Ministro, renove a sua equipa, ponha sangue novo nos responsáveis pelo nosso País. Siga o exemplo do nosso treinador, pois ele está certo no caminho tomado. Ousem, ousem, ousem e mudem as atitudes do Governo e talvez algo de novo aconteça em Portugal. Talvez não sejamos classificados como os melhores da Europa, mas pelo menos o Sr. Primeiro, tentou.

Lembre-se de Eistein...tal com o Sr. Scolari se lembrou. E lembre-se sobretudo do que acaba de acontecer nos EUA...O pretencioso senhor G.W. Bush achou que com as mesmas trapaças de sempre conseguia enganar o povo americano e guardar o poder. Enganou-se e enganou os Estados Unidos da America. Talvez tenha agora que aceitar que a mudança e fundamental para o êxito. Só que isto terá custado milhares de vidas dos jovens americanos.

Despertemos, sigamos o nosso guru do futebol, sejamos renovadores. Politica só pode ser como a moda...ou se renova ou é fod..... Tenham uma óptima semana e mais uma vez parabéns sinceros ao nosso Mister.

NR - Este correspondente que, como sabem, também é meu irmão, não perde uma. Lá longe, pelos Emiratos, pelas Áfricas, pelas Américas, por tudo o que é sítio e há tantos anos longe de Portugal (só cá vem uma vez, duas quando muito, passar uns dias e umas quadras festivas ), continua e continuará a vibrar com o futebol tuga. Depois de algumas críticas ao Sargentão, as coisas, agora, são mais soft e até entusiásticas. No comments. A.F.

domingo, novembro 05, 2006



Está explicada a Vida...

No primeiro dia, Deus criou a vaca e disse: "Tens que ir para o campo com o agricultor durante todo o dia, sofrer debaixo do sol, e dar leite para sustentar o agricultor. Dar-te-ei uma vida de 60 anos".
A vaca disse: " É uma vida dura. Para que é que tu queres que eu viva durante 60 anos? Dá-me somente 20 e eu devolvo-te os outros 40".
E Deus concordou.

No segundo dia, Deus criou o cão e disse: "Senta-te o dia perto da porta da tua casa e ladra para qualquer pessoa que entre ou que passe por perto. Dar-te-ei 20 anos de vida".
O cão disse: "Isso é muito tempo para estar a ladrar. Dá-me somente dez e eu devolvo-te os outros dez". Deus concordou.

No terceiro dia, Deus criou o macaco e disse: Distrai as pessoas, faz truques de macaco e fá-los rir muito. Dar-te-ei 20 anos de vida".
O macaco disse: "Que cansativo, truques de macaco durante 20 anos!? Acho que não. O cão devolveu-te dez eu vou fazer assim também, ok?". Deus concordou.

No quarto dia, Deus criou o Homem. Deus disse: "Come, dorme, brinca, faz sexo, diverte-te. Não faças nada, simplesmente diverte-te. Eu dar-te-ei 20 anos de vida".
O Homem disse: "O quê!? Só 20 anos? Nem pensar! Vamos fazer o seguinte: eu fico com os 40 anos que a vaca devolveu, com os dez do cão e os dez do macaco. Isso faz 80. Pode ser?". "Ok" disse Deus "Negócio fechado".

É por isso que durante os primeiros 20 anos comemos, dormimos, brincamos, fazemos sexo, divertimo-nos e não fazemos nada. Os 40 anos seguintes, sofremos ao sol para sustentar a nossa família, os dez seguintes fazemos figura de macaco para entreter os nossos netos, e os últimos dez anos sentamo-nos na varanda e ladramos a toda a gente.



Obrigadinho, Olga

A Olga Berens é uma boa Amiga, vive em Évora e é médica. Fomos apresentados, vejam lá, por uma bateria descarregada. Como? Não acreditam? Pois aí vai. Eu era o desesperado que não conseguia pôr em marcha o meu triste Hyundai Accent de 99; ela foi a fada benfazeja que me deu corrente, o que, face à minha azelhice sobre pólos e outras confusões mais negativas do que positivas, ia resultando em explosão. Passou-se tudo no parque de estacionamento de um outro Amigo, o Jean Charles Baudouin, ali à Rua do Salitre.

Fiquei-lhe internamente grado, perdão, eternamente grato. De uma doutora com juramento de Hipócrates e tudo, ainda que sem bata nem estetoscópio naquele momento, ninguém esperaria uma tal atenção, bem como uma tão simpática disponibilidade e uma magnífica demonstração de solidariedade.

Depois da patética peripécia e de nos termos despedido já amigos, seguiu, incólume e sorridente, com a filha ao lado, a caminho do Alentejo Alto. Eu fiquei-lhe muitíssimo agradecidíssimo, mas sem conseguir arrancar, nem pedindo de joelhos ao mafarrico coreano. De repente – passou-lhe a birra. Engrenei a primeira e fui-me à vida, que a morte é certa.

Daí por diante temos trocado mails, isto é, a Dr.ª Olga tem-me aturado as catadupas que lhe mando e mandado timidamente uns quantos. O texto acima veio num deles. Alem de irónico, é fascinante. Por isso – blog com ele. Com um pedido, desta feita não de corrente eléctrica de bateria. Mas sim uma bateria de textos, pois fica desde já a Olga Berens nomeada correspondente do travessadoferreira em Évora. Reconheça-se a assinatura, nihil obstat, imprimatur.
A. F.






VIDA, VIDAS

Como chove

Antunes Ferreira
C
hove se deus a manda. A rua transforma-se num caudal cada vez mais espesso e negro. E para que não se diga que é só isso, uma bela trovoada começa a faiscar no negrume do astro a transbordar de nuvens. O primeiro trovão rebola-se no estrondo, afoito. Jerónimo pensa no dito da avó Marcelina – a chover e fazer sol, andam as bruxas enroladas num lençol. Parvoeira. Aqui não há réstia do astro a que chamam rei. Melhor fora presidente, já que estamos em regime republicano desde o 5 de Outubro.

Mas, com a trampa do Estado Novo em que se está atascado, tudo fede, até mesmo os revoltosos da Rotunda. Foram-se as barricadas, os civis armados, os magalas de Kropatcheques aperradas. O António da calçada, que lá continua alapado, mandou como diz a cantiga, fogo já se não faz mais, só tu é que fazes festa. Por entre as cortinas de água e do ribombar celestial, de novo uma recordação.

Na Rua do Ferragial, de putas e maus fados, corre um poema que é de se lhe tirar a cartola. Também não pode correr muito mais, até no Parque Mayer as revistas são censuradas, ainda que consigam passar algumas piadas. Pois diz assim a versalhada. Dos dois Antónios, de que Lisboa desfruta, um é filho da Sé; o outro… também é. Se calhar…

O umbral pacífico e complacente de uma porta de prédio dos anos quarenta que se foram, dá-lhe guarida quando começam a engrossar os pingos de chuva, até se transformarem em bátega aparentemente eterna. Logo hoje, logo hoje, há-de desfazer-se o Mundo em água. Ia a caminho da casa da Matilde, um ramo de rosas vermelhas como ela gostava.

As pétalas, desgraçadas, já não estão lá, desertaram dos pedúnculos, limita-se a ter na mão um desfloramento aquático. A moça queria que os pais o conhecessem, assim as coisas vão no caminho certo, nos meados dos anos cinquenta, a janela já foi. Mas ainda não parece bem namorar às escondidas dos progenitores. Mas sabe que nem ginjas. Até num vão de escada, um olho nela, outro nalgum vizinho que possa aparecer.

Monsanto ou monte santo?

Os passeios a Monsanto são o máximo. As bermas fáceis de ultrapassar, vai um saltinho, menina, e logo uma cama macia de ervas diversas, às vezes com alguns espinhos, mas não faz mal, até entusiasma mais a malta. Como se eles precisassem de ser picados. Engalfinhados, ele por cima, ela por baixo como mandam as regras, desaperta aqui, baixa acolá, uma efervescência que nem de panela ao lume alto.

A merda da chuva não pára. Apalpa o chumaço que lhe sai das virilhas, basta lembrar-se da Matilde e é o que se vê, mais ainda, se sente. As pernas longas dela ao alto, as unhas escarlates cravadas nas costas peludas dele, és o meu urso cabeludo, ai que me matas, suspende, tira fora senão engravido, é um sarilho. Ele acrescenta que é mas é um saralho do carilho. Riem-se em casquinadas.

E se anda por aí alguém? Um guarda-florestal, um sacana desses, um filho da mãe fardado, acrescenta ele. Se cabrão houvesse e viesse espiá-los ou até interrompe-los, partia-lhe os cornos. Não fales assim, Jerónimo, não gosto disso, bem sabes. E os seios orgulhosamente empinados arfam mais ainda em face do possível susto. Que não vem.

Ele, pelo contrário, sim e abundantemente, entre as pernas dela. No meio, um monte santo e encaracolado. Gostas? Muuuuuiiiito. Fala, diz o que queres que te faça? Mas com as palavras certas, agora sim, daquelas de que tu gostas. Aqui não existem palavrões. Enterra-mo todo, amor, até às bordas, vem, meu ursão. E não queres que te lamba a coisa, antes? Quero, quero, quero que me faças um mimi e na greta, não na coisa. Eu, depois, chupo-to até ao fim, para saborear…

Estes passeios de fim-de-semana são o clímax. Com tempo seco, então é que são elas. E os meus pais pensam que estou em casa da Manuela, a estugar geometria descritiva. Esta é a melhor geometria, o teu pau sempre em pé, eu sempre de perna aberta, vá morde-me os bicos das mamas, vê como estão rijos. Túrgidos, amor, túrgidos, - é como se diz. Nem o Leite de Vasconcelos, muito menos o Padre Raul Machado.

A sacrista da chuva parece que engrossa, se é possível.Ele já se solitarizou, os dedos escorregadios no mastro, no calado da noite de breu, com cuidado para não lambuzar as calças, braguilha aberta q.b. Bom, assim não pode ser nada. Os carros que passam, poucos, espalham faúlhas aquosas, em espichos altíssimos. Está que nem um pinto. Sendo assim, vá de meter pernas a caminho até à Graça.

Eu venho pela Matilde

Degraus, foi um ar que lhes deu. Nem parou no patamar do meio para tomar fôlego. Batida a porta, veio uma senhora, presumivelmente a mãe da jovem. Entre o tímido e o envergonhado – eu sou o Jerónimo. Ah sim? E que tenho eu com isso? Perdão, mas não mora aqui a Matilde. Um franzir de cenho. Não. É no andar de cima. Desampare-me a loja. Aí vai ele, num foguete.

Campainha a fundo. Abre-se a porta. Uma boazona em combinação transparente, vê-se-lhe tudo, os mamilos, o escuro no baixo-ventre, até a cicatriz da operação ao apêndice. Que raio de família. Se calhar é uma irmã, mas que irmã. Só curvas, ainda por cima nos lugares certinhos. Eu venho para me encontrar com a Matilde, sabe, uma rapariga…

Sei muito bem, entre, entre, que vou chamá-la. É para já. Volta-lhe as costas e dirige-se à porta que dá para o interior. As nádegas que dar a dar, rijas e arredondadas são um espectáculo. Jerónimo pensa que ela sabe que é boa e gosta de o mostrar. Que rica mana tem a Matilde. Não se parecem de cara, mas no resto.

Olha em redor. Decoração apessoada, um cortinado de veludo grená escuro, apanhado aos lados por dois cordões presos a pregos grande e doirados. Uma mesinha central, a imitar queen anne, com naperon rendado e uma moldura trabalhada com a foto de outra beldade, sumariamente despida. Que rica casa. Vê-se que é gente de posses – e boa.

Na volta, abre-se a porta e surge a sua Matildinha. Em nêgligê ainda mais revelador, se possível, do que o da suposta irmã. Um ah de espanto. Tu, por aqui, Jerónimo? E corre para os braços dele, anicha-se, quente e saborosa. A água que o ensopa, ela nem a nota, tal a sofreguidão do amplexo. Treme, porem, ele nunca a vira assim. Que se passa amor?

A porta do fundo abre-se de novo, sai dela uma mulatinha em sutiã e calcinhas, mais pequenas que parra de uva. Traz pela mão, como se fora pela arreata, um sujeito gordo e balofo, um bigodinho ridículo, casaco assertoado, azul-escuro com botões de metal dourado e emblema no bolso do lenço. Então até depois, queridinho. E a mulata, requebrando-se, abre a famosa porta e vai à sua vida.

Jerónimo arregala os olhos, levanta a cabeça da Matilde, uma interrogação muda. Ela, grudada a ele que nem lapa à rocha, sem dar conta do caldo de carne, já azedado, em que a chuva o transformara, sorri-lhe com o ar de gaiato apanhado com o boião da marmelada na mão. Sorriso que o faz ficar fora dele, com ela. Amor, desculpa, enganei-me. Dei-te a morada do trabalho, não a da minha casa.