O Andorinha e o Livro do Géneses
Antunes Ferreira
O Andorinha tinha um bom vinho. Há quem o tenha mau, alguns mesmo péssimo. Mas o Andorinha, não. Quando avançava no copo não era sujeito para cantar o hino nacional a três vozes, nada disso. Esvaziava conscienciosamente a garrafa, gole a gole, saboreando o néctar, e ficava-se por aí. Por vezes, raras, diga-se, encetava uma segunda botelha. Mas persistia no seu modo de procedimento: pouco tinto no copo, de cada vez, alumiando-o parcimoniosamente em seguida.
Nunca ninguém o vira amarrotado num passeio, nada disso. Nunca ninguém o ouvira em alta gritaria por mor da bebida. Nunca ninguém pudera afirmar que ele fora apanhado pelo balão da GNR. Nunca ninguém, por conseguinte, lhe pudera apontar um dedo que fosse, vituperendo-o por mau comportamento alcoólico, honra lhe seja feita.
O próprio Noé, depois de abandonar a barca do longo cruzeiro, comportara-se pessimamente, emborrachando-se dia sim, dia sim, com a vinhaça que produzia de videiras dele mesmo. Há, até, quem diga que o dilúvio vinícola era pior e mais vasto do que o universal, de 40 dias. Mal intencionados os que tal defendem. Não se tratava de mais do que uma etilização permanente, que o levou, uma vez, a ser descoberto por um dos seus filhos, Cã, prostrado e nu até ao pescoço, na tenda patriarcal.
Ora, de acordo com o Livro do Géneses, esse amante do sumo de uva (fermentado) terá alcançado a bonita idade de 950 anos, mais coisa, menos coisa. Encarregado por Jeová de repovoar a terra totalmente inundada, tinha levado na famosa arca um casal de cada um dos animais existentes ao cimo da terra. De homens, nada mais do que ele e a sua família. O descendente em linha recta de Adão estaria, assim, conservado em álcool. O que só abona as virtudes da cepa.
Recordo aqui que, na sequência da cena triste na tenda, durante a qual Cã e seu filho Canaã o tiveram de pudicamente o cobrir, o profeta Nuh, como é chamado no Alcorão, ficou pior que estragado e amaldiçoou para sempre esses descendentes. O avô do Noé, de seu nome Matusalém, tão conhecido como o neto, ainda que sem arca, mas também longevo, tinha sido quem prepara as coisas para a ocorrência da inundação total. Em comparação com ela, qualquer tsunami, por mais violente que seja, não era mais do que entretenimento pueril.
Não se persista, entretanto, nos caminhos bíblicos. Tudo se passou há uma porrada de anos e nada se ganha, nada ganha o escriba com tais surtidas nas páginas a que chamam sagradas. O Andorinha, que é ele a quem vimos nestas mal alinhavadas linhas, era, por consequência, muito mais comportado do que o Diluviano. Nada de confusões, Amigos. Tal como o Povo diz – dos enganos vivem os escrivães. Não se cometa aqui um tal pecadilho, ainda que infringindo as tábuas da lei que o Moisés trouxe do alto do Monte Sinai, para cumprir o recado divino.
O Andorinha era amolador de facas, navalhas e tisoiras, com gaita e tudo. Dizia-se dele que quando embeiçava o instrumento era certo e seguro que lá vinha água celestial. Daí que também se dissesse, em jeito de graçola, que ele se vingava no vinho. Aliás, também corria que fora ele o protagonista de estória que não resisto a contar aqui.
Um belo dia o amante dos copos comentava assisadamente para alguns amigos que o corpo humano era uma máquina perfeitíssima concebida por Deus à sua imagem e semelhança. Só que, como tudo o que é próprio deste bicho raro, erecto, alegadamente pensante e frequentemente falante, não se podia proporcionar-lhe sempre a satisfação dos seus desejos. Havia que, tal como se devia proceder para com as crianças, pelo menos em tal tempo.
O corpo, por vezes, tem de ser contrariado, aditava o Andorinha. Por exemplo: quando ele, o dito corpo, pede vinho – faz-se-lhe a vontade e dá-se-lhe vinho. Quando, noutras alturas, pede água, é o momento de o contrariar – dá-se-lhe... vinho.
Pois, a dado momento, o Andorinha deixou de se enfrascar. Os amigos e conhecidos não queriam acreditar. Porém, a Alzira apanhadeira que dele se divorciara por mor da bóbida e com ele fabricara cinco filhos, garantia a quem a ouvia que sim, que era absolutamente sim.
Situação incrível, quiçá mesmo impossível. E era então que a senhora, retorcendo as mãos, complementava: «O pobre, coitado, lá se foi através do forno crematório. É a única coisa certa que nós temos. Ninguém cá fica para semente». Perante isso, terminavam as dúvidas. O Andorinha, ainda que tal parecesse impossível, deixara mesmo de beber.
quinta-feira, abril 06, 2006
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